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Viver e amar para lá da heteronorma: Uma análise queer das relações pessoais no século XXI PDF

19 Pages·2007·0.86 MB·Portuguese
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Revista Crítica de Ciências Sociais, 76, Dezembro 2006: 33-51 SASHA ROSENEIL Viver e amar para lá da heteronorma: Uma análise queer das relações pessoais no século XXI O presente artigo propõe-se desenvolver uma abordagem queer do estudo das relações pessoais. Inserindo-se no contexto das importantes transformações ocorridas na organização da vida pessoal ao longo dos últimos trinta anos, ele defende que os sociólogos devem desalojar a família e o casal heterossexual do lugar central que ocupam no nosso imaginário intelectual. Faz-se uma crítica à sociologia, motivada pelos quadros heteronormativos em função dos quais esta tem estudado as relações pessoais. De seguida propõe-se um alargamento do quadro usado para a análise das transformações contemporâneas da intimidade, defendendo-se a importância de uma análise queer das mudanças sociais, e sugere-se a necessidade de uma investigação centrada nas pessoas que vivem na crista dessas mudanças. Por fim, termina-se com uma panorâmica dos resultados da investigação mais recente da autora sobre as prá- ticas de relação de quem vive e ama para lá da heteronorma. Há neste início do século XXI, no Ocidente, cada vez mais pessoas a passar períodos de tempo cada vez mais longos das suas vidas fora da unidade convencional família. Há processos de individuação que estão a pôr em causa o casal heterossexual romântico e a formação familiar moderna de que este tem sido suporte, ao mesmo tempo que tem vindo a abrandar o poder normativo em que se alicerça a família moderna no que respeita ao sexo e à diferença sexual. Neste contexto, muito do que acontece na vida pessoal de cada um tem lugar, cada vez mais, para lá de “a família”, seja entre parceiros que não vivem juntos “como família”, seja no interior de redes de amigos e/ou amigas. O presente artigo desenvolve uma analítica com vista ao estudo das relações pessoais, baseada numa avaliação da grande variedade de modos como as pessoas vivem fora da heteronorma. A tese central é que, para  O presente artigo baseia-se em grande medida em Roseneil e Budgeon (004) e Roseneil (005). Para um aprofundamento das propostas aqui contidas, ver Roseneil (007). 3 | Sasha Roseneil entender o estado actual e o futuro provável das relações pessoais, teremos, enquanto sociólogos, de desalojar a família e o casal heterossexual do lugar central que têm ocupado no nosso imaginário intelectual. A primeira secção faz uma crítica à sociologia, motivada pelos quadros heteronorma- tivos em função dos quais esta tem estudado as relações pessoais. A secção seguinte propõe um alargamento do quadro usado para a análise das trans- formações contemporâneas da intimidade, defendendo a importância de uma análise queer das mudanças sociais, e sugerindo a necessidade de uma investigação centrada nas pessoas que vivem na crista dessas mudan- ças. O artigo termina com uma panorâmica dos resultados da minha inves- tigação mais recente sobre as práticas de relação de quem vive e ama para lá da heteronorma. Pensar para lá da família heteronormativa Como pode ver-se pelo sucesso global alcançado por uma multiplicidade de séries de televisão de que são exemplo Friends, Seinfeld, Ellen, ou Will & Grace, a cultura de massas tem levado grande vantagem sobre a sociolo- gia no que toca à oferta de histórias em que se explora a florescente diver- sidade característica da vida pessoal de cada um. Em cada uma dessas séries de TV, é a sociabilidade de um grupo de amigos, e não tanto a família no sentido convencional do termo, que proporciona o amor, o cuidado e o apoio essenciais ao quotidiano das cidades. A popularidade destas séries é de molde a sugerir que estas transmitem algo de importante sobre as vidas dos respectivos espectadores. No entanto, se formos à sociologia em busca de bibliografia para procurar entender o mecanismo das relações, parece que o amor, a intimidade e o cuidado se desenrolam quase exclusivamente sob os auspícios da “família”. Têm-se efectivamente verificado, em subcampos específicos das socio- logias da família e do género, mudanças significativas. Estas têm, por exemplo, procurado dar resposta, quer ao desafio empírico colocado pelas alterações verificadas nas relações familiares e de género, quer ao desafio teórico advindo das perspectivas de ordem anti-essencialista, pós-moderna, feminista, étnico-minoritária, negra, lésbica e gay, mais a sua ênfase na diferença e na diversidade. Mais do que isso, essas sociologias, inicialmente centradas no estudo da “família e comunidade”, “agarradas uma à outra como gémeos siameses” (Morgan, 996: 4), iriam posteriormente debru- çar-se sobre a primeira fase da acção feminista, centrada nas divisões desiguais do género quanto à prestação de cuidados e à intimidade vivida na família (Graham, 987; Duncombe e Marsden, 993; Finch, 989), passando finalmente para uma preocupação predominantemente centrada Viver e amar para lá da heteronorma | 3 na análise das mudanças ocorridas na família – especialmente através do estudo do divórcio, da reconstituição de casais e da coabitação – e no reconhecimento da diversidade familiar (Smart e Neale, 999; Stacey, 996; Silva e Smart, 998). Além disso, muitos dos sociólogos que se dedicam ao estudo da família têm-se debruçado sobre o problema do próprio conceito de “família”, numa época marcada por níveis crescentes de desagregação e re-composi- ção familiar. Assim, David Morgan (996), por exemplo, sugere que use- mos a palavra “família” mais com um sentido adjectivo do que como substantivo, propondo a noção de “práticas de família” para contrariar a reificação do conceito. Outros autores, na tentativa de encontrar resposta para as transformações sociais e para os desafios colocados pelos movi- mentos gay-lésbicos e seus teóricos, têm pluralizado a noção de “família”, optando por isso, hoje em dia, por falar sempre em “famílias”. A aborda- gem actualmente dominante, nas sociologias anglo-americanas do género e da família, acentua a diversidade das suas formas e experiências e o modo como a pertença à família tem sofrido variações ao longo do tempo, à medida que esta se tem vindo, ela própria, a desagregar e re-compor. Não há dúvidas de que, nas suas incarnações mais progressistas, esta aborda- gem acolhe as “famílias de escolha” gays e lésbicas sob a “tenda da família” (Stacey, 00, 004). Esta mudança foi importante. Ela vem contrapor-se ao discurso político dos “valores da família”, um discurso anti-gay e antifeminista que ganhou força nos Estados Unidos da América e no Reino Unido durante as duas últimas décadas do século XX (Roseneil e Mann, 996; Stacey, 996; Weeks, 995; Wright e Jagger, 999). Mas estas tentativas de pluralizar as noções de “família”, mesmo quando acolhem o estudo de famílias gays e lésbicas, revelam-se insuficientes para a tarefa que é entender toda a gama de forma- ções contemporâneas da vida pessoal, e isso por duas razões. Primeiro, porque não mudam em nada a heteronormatividade do imaginário socio- lógico; e, segundo, porque se baseiam numa análise inadequada das trans- formações sociais contemporâneas. Não obstante ter alargado o âmbito do significado do termo “família” por forma a abranger um leque mais amplo de “famílias de escolha”, a sociologia continua a marginalizar o estudo do amor, da intimidade e do cuidado vividos para lá da realidade familiar. A disciplina estriba-se em  Ingraham (996) sustenta que a sociologia feminista e a sociologia do género, mais os estudos empreendidos por uma e outra sobre, especificamente, a violência sexual, o casamento e a família, dependem de um imaginário heterossexual, defendendo também que o estudo do género deve dar lugar ao estudo do heterogénero. 3 | Sasha Roseneil pressupostos heteronormativos; ou seja, em “instituições, estruturas de compreensão e orientações práticas que fazem com que a heterossexuali- dade pareça não apenas coerente – quer dizer, organizada como uma sexua- lidade – mas também privilegiada” (Berlant e Warner, 000: 3). Os inves- tigadores continuam a produzir análises esmagadoramente centradas nas relações (sobretudo hetero-)sexuais de tipo monógamo, diádico, co-resi- dente, e de que resultaram filhos, bem como nas transformações ocorridas no interior de tais relações. O inquérito sistemático sobre a investigação sociológica britânica levado a cabo por Jo Van Every (999) e os escritos publicados por esta autora em 993 sobre a realidade das famílias e dos agregados permitem concluir que existe “um esmagador enfoque na ‘famí- lia nuclear moderna’”, que, por sua vez, consta de casais unidos pelo matri- mónio e vivendo em agregados familiares apenas com os filhos. Van Every sustenta de modo convincente que, “não obstante as advertências da socio- logia quanto à dificuldade de definir a família e a pluralidade e diversidade das formas que esta assume nas sociedades contemporâneas (pós-moder- nas?), os sociólogos foram ajudando a construir uma família ‘normal’, pare- cidíssima com aquela que uma geração anterior de sociólogos se sentira à vontade para definir” (999: 67). As “intimidades situadas fora do padrão” (Berlant e Warner, 000), cria- das por aqueles que vivem sexualidades não-normativas, vêm colocar espe- ciais desafios a uma disciplina que sempre estudou a vida pessoal primor- dialmente por via do estudo das famílias. Alguns gays e lésbicas referem-se às redes afectivas em que se inserem, de modo muito deliberado – e muitas vezes com uma ironia intencional –, como sendo a sua “família”.3 Quando, porém, autores como Kath Weston (99), Jeffrey Weeks et al. (00) e Judith Stacey (004) adoptam a expressão “famílias de escolha” para se referirem às relações lésbicas e gay e às redes de amizade, tal facto pode efectivamente desviar a atenção da natureza extrafamiliar e radicalmente contra-heteronormativa de muitas destas relações. A investigação sociológica e antropológica demonstra amplamente que a amizade é especialmente importante para as lésbicas e os gays (Altman, 98; Weston, 99; Nardi, 99 e 999; Weeks, 995; Preston e Lowenthal, 996; Roseneil, 000; e Weeks, Heaphy e Donovan, 00). O contexto em que umas e outros vivem as respectivas vidas pessoais é formado por redes de amigos, que desse modo lhes oferecem estabilidade 3 Weston (99), Nardi (993, 999), Preston e Lowenthal (996), Weeks, Heaphy e Donovan (00). Debruçando-se sobre as diferenças dos respectivos entrevistados no que se refere à adopção do termo “família” para descrever as suas relações íntimas, Weeks, Heaphy e Donovan reconhecem que muitos deles rejeitam o termo. Viver e amar para lá da heteronorma | 3 emocional, companhia, prazer, e ajuda no plano prático. Por vezes alvo de rejeição, de objecção e de exclusão pelas respectivas famílias de origem, lésbicas e gays constroem e mantêm vidas que correm o seu curso fora do quadro da família nuclear heterossexual, estribando a sua segurança emo- cional e o seu quotidiano nos respectivos grupos de amigos. Estudos como os de Weeks, Heaphy e Donovan (00) ou como os de Roseneil (000) chamam a atenção para o esbatimento das fronteiras e para a fluidez das relações sexuais e de amizade que frequentemente caracterizam as intimi- dades gay e lésbica nos dias de hoje. Há amigos e amigas que se tornam amantes, amantes que evoluem para relações de amizade, e existe muita gente que tem parceiros sexuais com graus variáveis (ou nenhum grau) de comprometimento. Com efeito, a nossa “pessoa de eleição” pode ser alguém com quem não mantemos um relacionamento sexual. As intimida- des não-heteronormativas – ou seja, relações significativas e definidoras de toda uma vida, estabelecidas entre amigos, amantes não-monógamos, ex- amantes, parceiros a viver separados, ou entre pessoas que simplesmente não se encaixam no sistema de classificação binária “amigo(a)”/”amante” – e as redes de relações em que tais intimidades acham (ou não) o seu suporte, têm o seguinte significado: elas destronam a centralidade habitualmente conferida às ligações com parceiros sexuais, além de que questionam o privilegiar das relações conjugais por parte da investigação sobre a inti- midade. Tais práticas, relações e redes raramente são objecto de menção no contexto de uma literatura sociológica onde se conserva um imaginá- rio que, sem explicitamente o reconhecer, vê o casal heterossexual como sendo o cerne da formação social, o coração que bombeia o sangue da reprodução social. Na realidade, pouco mudou desde que, em 979, Beth Hess chamou a atenção para a circunstância de “não existir um grande corpus chamado ‘sociologia da amizade’”(Jerrome, 984: 699), que sirva de arquivo alter- nativo ao estudo da intimidade e do cuidado para lá da família. Mas não foi só a heteronormatividade da disciplina que remeteu a amizade para um estado de grande invisibilidade. Igualmente importante, nesse pro- cesso, foi o facto de a tradição sociológica, a partir dos seus fundadores – a distinção de Tönnies entre Gemeinschaft e Gesellschaft, o trabalho de Marx sobre a alienação, os contributos de Durkheim sobre as formas de solidariedade social, ou ainda os de Weber a propósito da burocratização e da Escola de Chicago sobre urbanização –, ter partido do pressuposto de que o desenvolvimento da modernidade torna as relações pessoais cada vez mais impessoais, com os vínculos afectivos a ser vistos como algo cada vez mais marginal. O resultado foi que a disciplina nunca conferiu ao 3 | Sasha Roseneil estudo das relações informais, privadas, e de sociabilidade uma impor- tância idêntica àquela com que tratou as questões de organização pública, económica e política.4 A amizade situa-se no âmbito daquilo que proporciona prazer, tanto emo- cional como afectivo, e essas são áreas relativamente descuradas pelos soci- ólogos sérios, apostados na pesquisa dos mecanismos de afirmação da ordem, e concretamente das questões de estrutura, da regulação e da instituciona- lização. É possível encontrar excepções, como sejam a obra de Simmel (950), os trabalhos etnográficos de Whyte (943) sobre a street corner society (“socie- dade da esquina”), os escritos de Litwak e Szelenyi (969) sobre os “grupos primários” constituídos por familiares e amigos, e ainda a investigação desen- volvida nas décadas de 950 e 960 em torno da tradição britânica dos com- munity studies. Em tempos mais recentes, surgiu um pequeno número de estudos sobre a amizade (Booth e Hess, 974; Fischer et al., 977; Fischer, 98a; 98b; Allan, 979; Hess, 97; 979), Jerrome, 984; O’Connor, 99; Hey, 997; Adams e Allan, 998; Nardi, 999; Pahl, 000; Pahl e Spen- cer, 004; Spencer e Pahl, 006), assistindo--se também ao crescimento de um campo de investigação sobre novas formas de sociabilidade impulsiona- das pelas novas tecnologias (Rheingold, 993; Shields, 996; Wakeford, 998), no entanto a disciplina não dispõe, para o estudo da amizade, de um subcampo que possa comparar-se à já bem firmada sociologia da família e do parentesco. É tempo de mudar tal situação, no sentido de uma investi- gação centrada na amizade, nas formas “não-convencionais” de relaciona- mento sexual/amoroso, e nas conexões recíprocas entre uma e outras. As transformações sociais queer e a análise da vida pessoal contemporânea Há toda uma vasta bibliografia que possui como ponto de partida a crença segundo a qual estamos presentemente a atravessar um período de profun- das transformações sociais no que se refere à organização da vida pessoal contemporânea. Assim, Manuel Castells (997), por exemplo, no contexto de uma tese mais abrangente e relativa ao desmembramento do sistema de patriarcado, propõe que a família patriarcal é hoje alvo de um questiona- mento intenso e que os movimentos lésbico, gay e feminista verificados em todo o mundo são fundamentais para se entender esse questionamento. A tese de Anthony Giddens (99) relativa à “transformação da intimidade” e o trabalho de Ulrich Beck e Elisabeth Beck-Gernsheim (995, 00) sobre 4 Esta mesma ideia é defendida por Graham Allan, um dos poucos sociólogos britânicos que fizeram do estudo da amizade o campo privilegiado da sua investigação (Allan, 979 e 989; Adams e Allan, 998). Viver e amar para lá da heteronorma | 3 os significados e as práticas em mutação no que concerne às relações amo- rosas e familiares são de molde a fazer crer que, no mundo contemporâneo, os processos de individuação e de des-tradicionalização e a auto-reflexivi- dade crescente estão a fazer com que se abram novas possibilidades e novas expectativas para as relações heterossexuais.5 Com não mais que uma apressada vénia na direcção do activismo femi- nista e da investigação efectuada nessa área, aqueles trabalhos reconhecem a relevância das mudanças ocorridas nas relações entre os sexos e devidas, na sua maioria, à alteração de consciências e de identidades vivida pelas mulheres na sequência do movimento de libertação da mulher. Giddens considera que as transformações presentemente em curso no domínio da intimidade são de uma “enorme e generalizável importância” (Giddens, 99: ). Este autor traça as alterações verificadas na natureza do casamento, como seja o surgimento da “relação pura” caracterizada pelo “amor con- fluente”, uma relação de igualdade sexual e emocional entre homens e mulheres. Giddens associa este facto ao desenvolvimento da “sexualidade plástica”, “liberta das necessidades de reprodução” (Giddens, 99: ). Por isso ele vê as lésbicas e gays como os “pioneiros” da relação pura e da sexua- lidade plástica, gente na vanguarda dos processos de individuação e de des-tradicionalização.6 Segundo Beck e Beck-Gernsheim, “a ética do êxito e da realização pessoal constitui a marca mais forte da sociedade moderna (00: ). Estes autores acreditam que o desejo de ser “um ser humano capaz de tomar decisões e de moldar a realidade, que aspira a ser o autor ou autora da sua vida”, está a dar origem a modificações inauditas na forma que a vida em família assume. A pertença a uma família deixa de ser um dado adquirido para passar a ser uma questão de escolha. À medida que os vínculos sociais se tornam reflexivos e que, cada vez mais, a individuação caracteriza as relações entre os membros de uma mesma família, avançamos para o mundo da “família pós-familiar” (Beck-Gernsheim, 00). Se é certo que todo este conjunto de trabalhos exagera talvez o grau das mudanças verificadas, subvalorizando, ao mesmo tempo, a persistência das desigualdades de género e das diferenças de classe no plano da vida íntima (Jamieson, 998), por outro lado ele desenha o terreno teórico a partir do qual a pesquisa do futuro da vida pessoal deve prosseguir, além de que demons- 5 A investigação sobre os deveres da família, levada a cabo por Finch (989) e por Finch e Mason (993), sugere que os laços familiares são hoje em dia entendidos menos como obrigações consti- tuídas por laços de sangue fixos do que como compromissos negociados, que se diferenciam de outras relações de uma forma mais ou menos clara. 6 Neste seu reconhecimento das identidades e práticas não-heterossexuais, a obra de Giddens difere das de Beck e de Beck-Gernscheim, uma vez que estas não têm em conta o facto de se ocuparem exclusivamente da heterossexualidade. 0 | Sasha Roseneil trou ser uma influência marcante para aqueles que estão a fazer investiga- ção empírica sobre as transformações da família. Contudo, toda essa lite- ratura referida está longe de esgotar os recursos necessários à análise teórica das mudanças sociais contemporâneas, de que deve lançar mão quem hoje quiser abalançar-se à compreensão das culturas da intimidade e do cuidado. É, com efeito, importante ver também as transformações que a organização sexual do social, considerada em sentido amplo, está actualmente a atravessar. Pretendo lançar a ideia de que assistimos hoje em dia a uma significa- tiva desestabilização do binário homossexual/heterossexual, tão caracte- rístico da ordem sexual moderna. A relação hierárquica entre os dois lados deste binário, bem como a sua transposição para uma oposição de tipo dentro/fora (Fuss, 99), estão a ser sujeitas a um questionamento intenso. Há no mundo contemporâneo um conjunto de “tendências queer”7 que estão a contribuir para a quebra desse binário. Há, por exemplo, na maio- ria dos países, uma corrente no sentido da “normalização” do homossexual (Bech, 999), e há também passos progressistas no sentido da igualização das condições sociais e jurídicas concedidas às lésbicas e aos gays.8 A apro- vação em 004, no Reino Unido, da lei das Uniões Civis (“Civil Partnerships Act”) é disso um dos melhores exemplos, já que concede um estatuto jurí- dico parecido com o do casamento aos casais de lésbicas e gays que desejem oficializar a respectiva união. Tal facto aproxima institucionalmente lésbicas e gays da heteronorma, assinalando uma viragem significativa no entendi- mento público da noção de casal de cônjuges. E desta forma, aos olhos da lei, das políticas sociais, e da cultura pública os modos de vida homossexual e heterossexual passam a ter diferenças menos vincadas.9 Mais relevante para a minha presente argumentação, porém, é a circuns- tância de existir uma tendência para o fim da centralidade das hetero-rela- ções, tanto no plano social como do do indivíduo. O casal heterossexual e, em especial, o casal heterossexual unido pelo matrimónio, com filhos e vivendo em coabitação, deixou de ocupar o lugar central que tinha nas socie- dades ocidentais, não podendo, por isso, continuar a dar-se como adquirido que seja tomado por unidade básica da sociedade. Tal aconteceu em resul- tado das transformações sociais acima esboçadas, com saliência para o 7 Para uma explanação mais pormenorizada, ver Roseneil 000 e Roseneil 00. Essas tendências queer são as seguintes: a autocrítica queer, a perda de centralidade das hetero-relações, o surgimento da hetero-reflexividade, e a valorização cultural do queer. A palavra “tendência” é aqui utilizada de modo deliberado, para traduzir a natureza ainda provisória destas alterações e tendo em mente a existência de tendências de sentido oposto. A utilização do termo deve-se a Sedgwick (99). 8 Adam, 00. Sobre o excepcionalismo norte-americano, ver Adam, 003. 9 Para uma crítica das limitações da Lei das Uniões Civis do ponto-de-vista queer, ver Roseneil, 004. Viver e amar para lá da heteronorma | 1 aumento da taxa de divórcio, dos nascimentos fora do casamento, da mono- parentalidade, do viver só e da ausência de filhos. As pessoas estão a liber- tar-se do guião heterossexual tradicional e dos padrões de hetero-relaciona- lidade que lhe costumam andar associados. Por toda a Europa, assim como na América do Norte e na Austrália, a família convencional é hoje, e cada vez mais, uma prática minoritária. No Reino Unido, por exemplo, entre 97 e 005 a percentagem de agregados constituídos por um casal heterossexual com filhos dependentes caiu de 35% para %, enquanto a percentagem da população a viver inserida em agregados caiu de 5% para 37% (Social Trends, 006). O número de agregados monoparentais aumentou de 3% para 7%, ou seja, para mais do dobro,0 enquanto o número de pessoas a viver sozinhas disparou de 8% para 9%, sendo que a subida mais acen- tuada, de 6% para 5%, se deu na população abaixo da idade da reforma e, concretamente, no grupo etário situado entre os 5 e os 44 anos, quer dizer, exactamente aquele formado por pessoas de quem mais se esperaria que se fixassem de acordo com o modelo do casal heterossexual e reprodu- tivo (Social Trends, 006). Tudo isto significa que os arranjos e disposições do viver contemporâneo são diversos, fluidos e estão ainda em evolução, e que as hetero-relações deixaram de ter a hegemonia que já tiveram. Alguns sociólogos têm vindo a reconhecer a importância destas mudan- ças ocorridas na organização sexual do social. Judith Stacey entende-as em termos de uma “queerização da família” (Stacey, 996): os significados asso- ciados à ideia de família estão a ser submetidos a desafios radicais, agora que um número cada vez maior de grupos de parentesco se vão mostrando capazes de aceitar toda a diversidade de práticas sexuais e de disposições de vida em comum adoptadas pelos seus membros. Stacey adianta que serão poucas, hoje, as famílias em que não haja pelo menos alguns membros – sejam mulheres divorciadas, mães e pais solteiros, lésbicas, homens bisse- xuais ou gays – que divirjam da prática hetero-relacional normativa e tra- dicional. A observação de Anthony Giddens segundo a qual lésbicas e gays estão a abrir caminhos novos tanto para si próprios como para as pessoas heterossexuais é retomada por Jeffrey Weeks, Brian Heaphy e Catherine Donovan, os quais sugerem que “um dos traços mais notórios das transfor- mações ocorridas no plano doméstico nos últimos anos é […] o surgimento 0 Número relativo a pais ou mães a viver sós e com filhos dependentes de si.  Reconheço que a maioria dos filhos nascidos fora do casamento pertence a casais em regime de coabitação, tal como reconheço, de uma maneira geral, o aumento da prevalência (Ermisch e Francesconi, 000; Lewis, 00) e da aceitação social da coabitação entre casais heterossexuais (Barlow, Duncan, James e Park, 000). Isso em nada retira força ao argumento da perda de cen- tralidade, em primeiro lugar, do casal heterossexual unido pelo casamento, e em segundo lugar, do casal heterossexual per se.  | Sasha Roseneil de padrões comuns nos modos de vida tanto homossexuais como heteros- sexuais, em consequência daquelas mudanças de longo prazo sofridas pelos padrões de relacionamento” (Weeks, Heaphy e Donovan, 999: 85). Para estes autores, homossexuais e heterossexuais anseiam, de igual modo, por uma “relação pura”, vivem o amor como algo de contingente e confluente, e procuram viver os seus relacionamentos sexuais em termos de uma ética da amizade (Weeks, Heaphy e Donovan, 00). O que tudo isto parece indicar é que é necessário aprofundar a inves- tigação, de maneira a explorar melhor as vidas de quem se encontra na vanguarda destes processos de transformação social. E foi isso, precisa- mente, que se propôs fazer o “Care, Friendship and Non-Conventional Partnership Project” (“Projecto sobre o Cuidado, a Amizade e as Uniões Não-Convencionais”). Viver e amar para lá da heteronorma A perda de centralidade das hetero-relações indiciada pelo conjunto dos dados estatísticos analisados fornece o pano de fundo à investigação de tipo qualitativo que eu próprio tenho vindo a levar a cabo, sobre as práticas contemporâneas da vida pessoal. O “Projecto sobre o Cuidado, a Amizade e as Uniões Não-Convencionais” partiu do reconhecimento de que é cada vez maior o número de pessoas a viver fora do convencionalismo das hetero- -relações, e centrou-se naqueles que pode dizer-se caracterizados pelo mais elevado grau de individuação na nossa sociedade – as pessoas que vivem sem companheiro ou companheira. A investigação debruçou-se, então, sobre quem é importante para as pessoas que vivem fora do casal heteronormativo convencional, o que é que essas pessoas valorizam nas respectivas relações pessoais, que atenções ou cuidados prestam àqueles que consideram impor- tantes para si, e que atenções ou cuidados prestam a si próprias. Foram feitas entrevistas em profundidade a 53 pessoas com idades entre os 5 e os 60 anos, em três localidades do Norte de Inglaterra: uma antiga cidade mineira, relativamente convencional no que concerne a relações entre os sexos e de família; uma cidade pequena, em que os estilos de vida alterna- tivos, “descontraídos” e de classe média e o desalinhamento dos padrões sexuais são uma realidade comum; e um bairro urbano multi-étnico, carac- terizado por um leque variado de práticas relativas à diferença sexual e à  O projecto, coordenado por Sasha Roseneil, contou também com os investigadores Shelley Budgeon e Jacqui Gabb. Para uma reflexão mais pormenorizada da metodologia seguida e dos resultados, ver Roseneil e Budgeon, 004. Para mais trabalhos relativos aos temas da inti- midade e do cuidado para lá da família convencional, ver os contributos incluídos em Budgeon e Roseneil, 004.

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Como pode ver-se pelo sucesso global alcançado por uma multiplicidade de séries de Bauman, Z. ( 003), Liquid Love. Cambridge: Polity. Bech
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