Rafael Henzel V IVA COMO SE ESTIVESSE DE PARTIDA U M RELATO OTIMISTA E EMOCIONANTE DO JORNALISTA QUE SOBREVIVEU C À TRAGÉDIA DA HAPECOENSE S UMÁRIO Pular sumário [ »» ] Um sonho interrompido A solidariedade deixa marcas A motivação é estar vivo Coragem em cada abraço Uma mensagem de esperança Tempo de serenidade Uma regra sem exceção O milagre existe Felicidade que transborda O futuro me reserva gratidão Hora de olhar para a frente Nós não estamos sozinhos Posfácio Caderno de fotos Agradecimentos Notas Sobre o autor Créditos Este livro é dedicado a todas as vítimas do voo da LaMia e seus familiares e a todas as pessoas mundo afora que oraram por esses amigos que nos deram grandes alegrias. Dedico esta obra também a todos aqueles que, numa rede infinita de solidariedade, me deram a oportunidade de levar a mensagem de que muitas vezes o impossível é possível. E, por fim, dedico Viva como se estivesse de partida aos sobreviventes: os membros da tripulação Erwin Tumiri e Ximena Suárez e os jogadores Neto, Follmann e Alan, provas de que Deus é poderoso. Que os vossos esforços desafiem as impossibilidades, lembrai-vos de que as grandes coisas do homem foram conquistadas do que parecia impossível. — CHARLES CHAPLIN U M SONHO INTERROMPIDO O RELÓGIO MARCAVA MEIA-NOITE do dia 23 de novembro de 2016. Eram os últimos momentos do jogo que alçaria uma equipe de futebol, e também uma cidade e uma região, a um patamar jamais imaginado. Anos antes, a Chapecoense costumava apenas sobreviver no Campeonato Catarinense. Dessa vez, não. Era a semifinal da Copa Sul-Americana. O estádio estava iluminado, não apenas pelos refletores, mas pelas luzes dos celulares de 16 mil torcedores. Alegoricamente, iluminado ainda pelo brilho de atletas que chegavam ao penúltimo degrau de uma das competições mais importantes da América do Sul. Na cabine da Arena Condá, eu estava tenso. Afinal, do outro lado atacava o San Lorenzo, time tradicional da Argentina, que em 2014 havia conquistado o título da Libertadores da América. Um gol adversário, àquela altura do segundo tempo, poderia interromper um sonho — e isso quase aconteceu, trinta segundos antes de o jogo terminar, num cruzamento para a área, seguido por um chute a poucos metros da linha do gol. Com o pé direito, quase por reflexo, Danilo evitou o gol argentino que poria um ponto-final na competição para a Chapecoense. Fui junto com o goleiro. Vibrei com ele e chorei como muitos quando o árbitro encerrou a partida. Numa torrente, palavras e lágrimas faziam a alegria transbordar nas frases ditas ao microfone. A final da nossa “Copa do Mundo” se aproximava. A classificação para a final tinha um sentimento de novidade, tal qual a primeira vez em que eu entrara no estádio Índio Condá. Como nas tardes de domingo nas quais eu vendia pastel ou picolé na porta do estádio para ajudar a família. Lembrei as tantas vezes na adolescência, sem dinheiro para comprar ingresso e ver a Chapecoense, que esperei até os quinze minutos do segundo tempo pela abertura do portão para entrar de graça. Ou que contei com a boa vontade do porteiro em permitir meu acesso às arquibancadas no segundo tempo. Mesmo com vários anos de jornalismo, eu ainda me impressionava com as entrevistas após as partidas. Na maioria das vezes, jogadores e treinador exaltavam os torcedores e a cidade. Essa cumplicidade se comprovava nas ruas, nos supermercados, no shopping center, nas escolas, nos diversos cantos da nossa cidade de 210 mil habitantes. Cada um dos jogadores parecia um vizinho mais próximo, um amigo sempre disposto a nos saudar. Eles podiam ser considerados os nossos embaixadores pelo país e pelo mundo. A nossa “Copa do Mundo” começou a ser disputada em Cuiabá, contra o time que tem o mesmo nome da capital do Mato Grosso. Era dia do meu aniversário. Naquele 25 de agosto, longe de casa e da família, eu estava pronto para narrar o que seria uma trajetória histórica para a Chapecoense. Os duelos, vencidos nos últimos minutos de jogo e nos pênaltis, foram repletos de emoção. O pé salvador de Danilo no último lance da semifinal era mais uma dessas alegrias transbordantes. O ano de 2016 foi intenso para o clube e para quem o acompanhava. Até aquele momento, eu já havia narrado vinte jogos do Campeonato Catarinense — que culminaram no título da Chape —, 36 jogos do Campeonato Brasileiro e outros oito da Copa Sul-Americana. Além disso, eu mantinha o foco nos programas matinais e vespertinos que apresento na rádio. Mas eu imaginava que o principal estava por vir. O principal para mim, para a cidade e para a Chapecoense. Seria o maior ano de todos. Com a permanência na elite do Campeonato Brasileiro do ano seguinte garantida semanas antes, a final da Copa tornara-se uma realidade. Vencê-la era um objetivo comum para todos nós. Apenas na sexta-feira, dia 25 de novembro, pude programar a viagem para a Colômbia, onde ocorreria a primeira partida da final. Foi quando a diretoria definiu a empresa que nos levaria com a delegação e os valores que pagaríamos para acompanhar o primeiro jogo da decisão. Eu sempre compartilhava com minha família esses momentos. Nossos encontros eram regados por fatos e fotos das viagens que o trabalho me proporcionava, e, daquela vez, a expectativa pelo próximo roteiro, a Colômbia, era grande. Apesar de meses antes ter visitado a trabalho a cidade de Barranquilla, no mesmo país, a ocasião seria completamente diferente. Por causa da correria do cotidiano, não costumávamos almoçar na casa da minha mãe tanto quanto gostaríamos. Mas no sábado, antes da viagem para a final, estive com ela. Nesse almoço, compareceram também a família da minha irmã, o meu filho e a minha esposa. Todos ficaram por dentro da minha agenda para os dias seguintes e se animaram com tudo aquilo que acontecia na minha vida e com a equipe da Chapecoense. Eu partiria no domingo cedinho para São Paulo, pois haveria o jogo contra o Palmeiras pelo Campeonato Brasileiro, e na segunda-feira para a Colômbia. Naquela ocasião, nos despedimos — e mal sabíamos que poderia ter sido a última vez em que nos veríamos. A madrugada de domingo começou com um grande encontro de amigos que fariam o mesmo itinerário do nosso grupo da rádio Oeste Capital FM. No aeroporto de Chapecó, o assunto era unânime: aquele seria um momento muito importante para o oeste de Santa Catarina. Entretanto, era impossível prever que torcedores, dirigentes e colegas da imprensa partiam para a jornada da qual, infelizmente, não retornariam. Já em São Paulo, seguimos para o Allianz Parque, onde gravamos vídeos, almoçamos e recebemos a Chapecoense. Foi tudo perfeito. Não houve nenhum erro técnico na transmissão, nenhuma desilusão com a derrota para o Palmeiras. Acima de tudo, aquele era um sonho que se tornava realidade. No dia 7 de dezembro, no último jogo do ano contra os colombianos do Atlético Nacional, realizaríamos a mesma festa de campeão que o Palmeiras estava fazendo com a vitória sobre a Chapecoense pelo placar mínimo. Nada nos tirava a alegria. “Hoje, o Palmeiras comemora. Quarta-feira, na Colômbia, será a nossa vez”, eu disse ao microfone, após o apito final em São Paulo. Lembro que não foi fácil dormir naquela noite. A ansiedade me tirava o sono. Pensava como seria a viagem, como seria o primeiro embate da final. Na manhã da véspera, ficamos sabendo que a empresa LaMia, que nos levaria a partir de São Paulo, não tinha sido autorizada pela Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) a pousar em aeroportos brasileiros. Sinceramente, isso não foi marcante, já que, na ida para Barranquilla, em outubro, a nossa viagem com a empresa também começara a partir da Bolívia. Assim, a segunda-feira, 28 de novembro, iniciou de forma normal. Acordei às seis e meia da manhã para gravar o primeiro programa do dia, que ia ao ar das sete às dez horas. Pelo grupo de um aplicativo, recebi a informação de que a delegação chegaria por volta das onze e meia ao Aeroporto Internacional de Guarulhos. Chegamos antes deles para despachar a bagagem. No entanto, eu e os demais colegas ficamos mais de três horas esperando para despachá-la e pegar os bilhetes com outra empresa boliviana, que nos levaria até a conexão em Santa Cruz de la Sierra. Apesar da espera prolongada, não podia haver clima melhor no grupo. Jogadores, dirigentes, comissão técnica, convidados e jornalistas contavam histórias, comentavam o jogo anterior e projetavam o confronto na Colômbia. Todos estavam unidos. Todos queriam participar daquela história de um time que alcançava a glória vindo de uma cidade do interior. A decolagem do nosso voo para Santa Cruz de la Sierra estava prevista para as 3h15 daquela tarde. Porém, por causa da demora da companhia aérea em imprimir os cartões de embarque, nossa saída atrasou mais de uma hora. Entre um suco e outro, gravamos uma conversa com Neto, um jogador que no início do ano havia sofrido uma lesão na coluna, mas que, com muita fé e tratamento, conseguira se recuperar. Como muitos, chegava a um momento especial na carreira. Neto falou em Deus, em mérito, em destino. Menos de doze horas mais tarde, nossos destinos seriam separados das outras 71 pessoas com quem compartilhamos o segundo voo. Eram cinco horas da tarde de segunda-feira quando o avião finalmente decolou da pista do aeroporto de Guarulhos. A delegação, misturada aos demais passageiros, viajou tranquila. Houve apenas uma pequena turbulência. Poucas horas depois, pousamos no aeroporto boliviano. Por causa do atraso no Brasil, a troca de aeronave foi rápida. Fomos recebidos pela tripulação da LaMia, praticamente a mesma que nos levara para Barranquilla no mês anterior. O voo fretado não tinha de obedecer aos mesmos procedimentos de um voo comercial. Antes de decolarmos, saímos algumas vezes da aeronave. Numa delas, fiz uma selfie com o jato ao fundo, personalizado com o emblema da Chapecoense, por achar interessante as plotagens que a empresa fazia com a marca das equipes que contratavam o seu serviço. Quatro horas e meia, aproximadamente, nos separavam do aeroporto de Rionegro, localizado a quarenta minutos de Medellín. Cada passageiro encontrou uma maneira de passar esse tempo. Alguns atletas jogavam cartas, outros ensaiaram um pagode, um grupo levou um videogame. Nós, os jornalistas, conversávamos sobre nossas carreiras, histórias de futebol, memórias pessoais. Éramos 22 jornalistas, radialistas e técnicos de emissoras de TV. Além de mim, oito colegas da imprensa de Chapecó viajavam entusiasmados com a oportunidade de testemunhar a maior decisão dos 43 anos da Chapecoense. Tentei dormir durante a viagem. Apesar do cansaço por acordar cedo e viver um dia intenso, não consegui. Busquei me distrair trocando de lugar várias vezes. Em instante nenhum recebemos da cabine informações sobre o tempo de voo, escalas ou hora do pouso. Como sentei na penúltima fileira, na poltrona do meio, perguntei algumas vezes para os tripulantes que estavam próximos quanto tempo restava de viagem. Todas as perguntas foram respondidas com “dez minutos”. Nem eu nem qualquer outro passageiro tinha a mínima ideia do que se passava. Apenas aqueles que estavam na cabine de comando tinham algum conhecimento da situação. Mesmo do banco do meio, tentei visualizar pela janela alguma luz que pudesse indicar que estávamos chegando. O voo seguia tranquilo, ainda que cansativo. Particularmente, eu não imaginava que o tempo no ar já alcançava o limite da autonomia da aeronave. Era quase 1h15 da madrugada da terça-feira, horário de Brasília, quando algo muito estranho aconteceu. Notei os motores desligarem. Houve um silêncio horrível. Não bastasse isso, todas as luzes da aeronave se apagaram, e as de emergência se acenderam. Fiquei preocupado, assim como alguns dos demais passageiros que ainda estavam acordados. Alguns questionavam: “O que está acontecendo?”. Atrás de mim, alguns tripulantes diziam que estava tudo normal. Observei, à minha esquerda, que a comissária afivelava o cinto de segurança. Fiz o mesmo. Ela estava na parte de trás da aeronave, de costas para os passageiros e voltada para a parede que dava acesso ao banheiro. Meu
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