OU A REVOLTA OU A OBEDIÊNCIA ESTÚPIDA: ALDÍSIO FILGUEIRAS E A DITADURA CIVIL-MILITAR (1964-1968) ∗ VINICIUS ALVES DO AMARAL Um jovem lutando contra o pai, os militares e a província. Sua arma? A arte. Esta é a guerra de Raimundo Mattoso – chamado por todos de Mundo –narrada em Cinzas do Norte. Há mais de uma semelhança entre o protagonista do livro de Milton Hatoum e o personagem que analisaremos no presente trabalho; os inimigos, com a exceção da figura paterna, são os mesmos, bem como as armas de que se utilizam. Na poesia de AldísioFilgueiras encontramos elencados todos aqueles que considera adversários de um mundo justo e digno, sobressaindo aqui os militares e a mentalidade conservadora da cidade de Manaus. Nos fragmentos autobiográficos tecidos aqui e acolá, o poeta se define pela indefinição, afinal teria escolhido desde a tenra idade não crer, mas conhecer, o que significa, ainda segundo o próprio, duvidar do conhecimento (FILGUEIRAS, 2007: 145). As palavras finais de Mundo – “ou a revolta ou a obediência estúpida” – portanto, poderiam muito bem ser ditas pelo artista (HATOUM, 2010: 7). Sua obra que se espraia para o teatro, o audiovisual e a música popular, hoje possui reconhecimento suficiente para que seja inclusive incluído na Academia Amazonense de Letras. Interrogado pelo amigo Roberto Kahané da razão de ter penetrado num dos templos mais tradicionais e conservadores da literatura regional, Filgueiras teria dito: eu vou lá por causa do chá (Roberto Kahané, 2012). Propomos aqui analisar as fecundas questões suscitadas pela sua trajetória, iniciada naqueles tempos sombrios, sem perder de vistas as ambiguidades e contradições presentes em suas narrativas. As quatro entrevistas que realizamos com este personagem intrigante entre julho de 2012 e novembro de 2013 foram pontuadas pela informalidade e seu humor ácido. As três primeiras foram realizadas na sacada do jornal Amazonas Em Tempo, tendo em vista o pouco tempo que ele como editor possui, enquanto a última e mais longa fora gravada em sua casa no bairro D. Pedro numa oportunidade em que ∗ Mestrando em História Social pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas e bolsista do Centro de Aperfeiçoamento de Gente de Nível Superior (CAPES). podemos encontra-lo menos ocupado.Evidente que trabalharemos mais com algumas entrevistas que outras. Nosso estudo também se baseia no depoimento concedido pelo cineasta e amigo de longa data de nosso protagonista, Roberto Kahané. Como chegamos ao “poeta dos estilhaços da amazonidade” (SOUZA, 1977: 179)? Em 2012, ainda integrando o projeto de extensão do Centro Universitário do Norte (Uninorte), decidimos produzir um vídeo sobre a ditadura civil-militar em Manaus e o nome do autor de Porto de Lenha (hino não-oficial da cidade) despontou na lista dos possíveis entrevistados. Infelizmente, a falta de recursos e de tempo impediu que o documentário fosse concluído, mas os poucos depoimentos colhidos foram extremamente úteis para entender como aquele contexto teria se desenrolado em terras barés. Especialmente o relato de Filgueiras que nos apresentou de forma introdutória muitos aspectos da resistência ao regime ditatorial. Decidimos, portanto, em nosso projeto de pesquisa de Mestrado em História Social abordar estes aspectos. Como eles se relacionavam com a vida desse personagem? Como podemos entender a ordem autoritária em Manaus, através da trajetória inicial do menestrel do asfalto? No presente texto, contudo, objetivamos demonstrar a fertilidade de seus depoimentos para se pensar esse painel sombrio. Não confrontamos a todo instante as afirmações do entrevistado, como que motivados pela “falta de objetividade” do depoente. Sabemos que a História Oral deve ser encarada como um campo de possibilidades, como quer Alessandro Portelli (PORTELLI, 1996: 71). O mito da imparcialidade há muito fora destronado. Contudo, isso não significa aceitar acriticamente tudo o que é dito. Lembremos antes que a narrativa biográfica constitui um esforço de dotar sentido á uma vida, em si intraduzível tamanha a sua complexidade e abrangência. Assim, as ações e fatos ocorridos precisam ser hierarquizados e sequenciados para que percam sua aleatoriedade. A biografia, como ensina Pierre Bourdieu, é uma ilusão (BOURDIEU, 2002: 185). Ela se torna uma produção oficial de si e isto se torna claro quando o pesquisador confronta o discurso com suas contradições internas. Uma vez dito isso, concentremos nossa atenção na baliza temporal adotada: se estamos falando de um poeta geralmente considerado como representante maior de uma geração de artistas de 1970, por que retroceder uma década? Entre 64 e 68 o movimento cultural brasileiro não apenas intensificou-se: ele tomou uma feição ainda mais marcadamente esquerdista por unir atores, cantores, diretores, peças, filmes e público numa espécie de resistência do espírito contra a ditadura. (...) Política nunca foi o meu forte. Mas vi-me em meio a uma perene exigência de caracterização política das criações artísticas e dos atos individuais (VELOSO, 2008: 308-309). Não é só Caetano Veloso que considera o ínterim citado essencial em sua formação. Para além de ser reconhecido como o prelúdio dos anos de chumbo, esse momento tem um significativo valor para o poeta, pois nele situam dois acontecimentos marcantes: em 1964 opta pelo jornalismo como profissão e em 1968 seu talento poético é reconhecido em um concurso literário, embora seu debut fora da imprensa tenha sido adiado uma vez que seu livro Estado de Sítio fora recolhido por conta do clima de medo instaurado com o AI-5. Nascido em 1947 em Manaus, Aldísio Gomes Filgueiras cresceu no popular bairro da Cachoeirinha e lá vivenciou de perto os difíceis anos que se seguiram á crise da borracha, principal fonte de renda do Amazonas. Por isso seu relato estabelece a todo instante um confronto entre a Manaus dos anos 50 e 60 com a Manaus de hoje, situando aquela como uma cidade limitada, mas ligada por um laço comunitário muito forte. Um adulto que iria chamar atenção de um garoto, um menor de idade na rua ainda era agradecido pelos pais. Hoje se você fizer isso leva uma porrada do pai do garoto – leva um tiro preferivelmente. Então a cidade, ela funcionavaassim como aquela paideiados gregos, você nascia dentro de uma estrutura social, dentro de um mecanismo de educação, de cultura, de informação que funcionava coletivamente (AldísioFilgueiras, 2013a). Filho de funcionários públicos, AldísioFilgueiras tinha saído há pouco do prestigioso Colégio Estadual D. Pedro II quando o general Olympio Mourão Filho saiu de Minas Gerais com suas tropas em direção ao Rio de Janeiro para retirar o presidente João Goulart do poder. (...) Quando se instalou o golpe eu tinha 17 anos de idade, estava entrando na Faculdade de Direito. Eu tava indo pra faculdade de Direito porque meu pai queria que eu fosse doutor de alguma coisa, tinha que ter o diploma de curso universitário. E ele tinha razão, porque eu não tinha o diploma universitário e Manaus não oferecia nada para você. (...) Pô, aí no meio do curso eu descobri que seria um advogado medíocre e eu não batia muito bem com o curso de Direito porque eu não podia ver um professor de Direito Constitucional justificar um golpe de Estado. Porque as Forças Armadas existem pra manter, pra assegurar a vigência a estabilidade e a segurança da Carta Constitucional (Aldísio G.Filgueiras, 2012). Após abortar o futuro traçado pelo pai teria ficado meio desnorteado, sem saber ao certo qual caminho escolher profissionalmente. Em um poema publicado no suplemento literário d’ O Jornal de maio de 1964 assina como membro do Clube Mário de Andrade1. Ora, a imprensa estudantil e as agremiações literárias representavam um investimento numa potencial carreira intelectual2. Assim fizeram estudantes e professores em novembro de 1954 quando fundaram o Clube da Madrugada. Mal suspeitavam que sua pequena entidade cultural tornasse um movimento artístico que inspirado nos ideais modernistas renovou a arte amazonense. E eu fui parar numa redação de jornal, porque eu já fazia umas contribuições literárias e tinha contatos também com o pessoal do Clube da Madrugada. Tinha contato com o pessoal do Partido Comunista Brasileiro, com várias tendências de esquerda da Igreja Católica também. Porque Manaus era um ovo! O Serviço Nacional de Informações sabia da gente, mais do que a gente sabia da gente. E todo mundo se conhecia e de repente o nome da gente tava dentro de uma redação de jornal. “Tem o fulano, tem o sicrano” (Aldísio G.Filgueiras, 2012). Num contexto de fraca expansão editorial, os jornais representavam não apenas uma fonte de sustento como o veículo por excelência dos intelectuais brasileiros. Por meio dos suplementos literários divulgavam eventos e obras. O Clube Mário de Andrade, por exemplo, passou a figurar nas colunas do Jornal do Comércio. Claro que seu espaço era muito mais humilde se comparado com aquele reservado ao Clube da Madrugada em O Jornal. Contudo, trabalhar em jornais também podia ser muito arriscado a partir de 1964. Principalmente porque o novo governador indicado pelo marechal-presidente de plantão não dispensava muita simpatia para com as críticas da imprensa local. Como conta o jornalista Orlando Farias, o governador-historiador Arthur Cezar Ferreira Reis não hesitou em empastelar alguns jornais como O Trabalhista, de propriedade do ex- governador Plínio Ramos (FARIAS,2010: 62). Como esquecer a faceta autoritária que encobria as medidas modernizadoras de Reis? Tal como a destruição da Cidade Flutuante, espécie de apêndice fluvial de Manaus, em 1965. A iniciativa, encarada pelas elites locais como necessária do ponto de 1FILGUEIRAS, Aldísio. Tédio. O Jornal, 03 mai 1964, Manaus, p. 12. 2 Sobre as relações entre o Colégio Estadual D. Pedro II e a intelectualidade amazonense ver LIMA, Elissandra Lopes Chaves. Dimensões da República das Letras no Amazonas: A intelectualidade gymnasiana em Manaus (1900-1930). Dissertação (Mestrado em História Social). Programa de Pós Graduação em História, Universidade Federal do Amazonas: Manaus, 2012. vista logístico para uma cidade que abrigaria futuramente a Zona Franca, foi vista pelo poeta e seu amigo do Cineclube Lumière Roberto Kahané como uma afronta aos modos de vida da população carente. Foi á essa população que ambos dedicaram o filme Igual a Mim, Igual a Ti (1965) (Roberto Kahané, 2012). Percebam que as colaborações com os amigos são constantes. Seus depoimentos sugerem que existia então um círculo de jovens realizadores em Manaus que abraçavam essa contribuição coletiva e a experimentação artística. A formação desse grupo remontava na maioria das vezes aos tempos de ginasial, afinal a “(...)a escola também democratizava os contatos. Tinha uma classe média que tinha acesso á livros, que podia comprar livros, mais livros. E aquilo criava um circuito, sem nenhuma pretensão” (Aldísio G.Filgueiras, 2013a). Mas as sessões de cineclube também foram responsáveis por muitos encontros. Roberto Kahané e Márcio Souza, por exemplo, tornaram-se amigo de nosso entrevistado por meio delas. Há na construção de grupos o sabor das circunstâncias e a formação de uma identidade. No caso, qual era a afinidade destes jovens? O próprio depoente dá uma pista: “E era uma geração que no ginásio, desde a formação fundamental, desde a alfabetização, a gente tinha uma noção de... tinha uma causa, uma causa mesmo. Não era só estar vivo, não era o bastante, era preciso estar vivo de certa maneira” (AldísioG. Filgueiras, 2012). Não estavam sozinhos nesse clamor. A proposta de uma arte comprometida com a transformação social da realidade, que passa pelo comunismo e pelo trabalhismo, já vinha sendo gestada na década anterior antes de se tornar hegemônica nos anos 60. “Cultura popular” e “nacional” eram palavras-chave; alimentavam um sonho de revolução popular que retiraria o Brasil enfim do subdesenvolvimento. Segundo Daniel Pécaut, o nacionalismo se impunha como fórmula da modernização, sempre atravancada pelas forças conservadoras e o imperialismo estrangeiro. Já as massas são sempre vistas como“incapazes de se elevar ao nível de sua vocação histórica” (PÉCAUT,1990: 148) (a revolução), necessitando assim de uma vanguarda. Os intelectuais, assim, se representam como parte do povo, embora estejam conscientes de que são muito diferentes dele. A profissionalização do campo cultural demonstra isso. A universidade se situava como um meio de adquirir um saber especializado e posicionar-se no cenário político seja por meio dos partidos ou do movimento estudantil. A imprensa, principalmente por meio de seus suplementos literários, fornecia um espaço valioso para o debate. Mesmo após 1964, esta expansão continuou por meio de instituições estatais (como a Embrafilme, o Conselho Federal de Cultura ou o Instituto Nacional do Livro) e privadas (englobando aqui redes televisivas, indústria fonográfica, mercado editorial, etc). Como entender então a presença de Márcio Souza, extremamente simpático ao marxismo ortodoxo, na assessoria do Departamento de Imprensa, Turismo e Propaganda do Amazonas em 1965? Como explicar que um intelectual extremamente simpático ao comunismo pudesse encabeçar uma pasta de um governador biônico da ditadura? Filgueiras, ao tentar defender o amigo, lembra que o governo de Arthur Reis foi bem atípico, uma vez que foi um dos que mais publicou livros e prêmios literários (Aldísio G.Filgueiras, 2013b). De fato, o historiador por meio das Edições Governo do Estado, do Prêmio Estelita Tapajós e da fundação da Universidade do Amazonas deu novo alento ao campo cultural naquele momento. Nem de perto suas ações se originaram de um liberalismo ousado em tempos obscurantistas. Renato Ortiz afirma que a normatização do campo artístico correspondia a uma diretriz da nova ordem que pretendia controlar a expansão do mercado cultural no país e com isso frear a hegemonia cultural da esquerda (ORTIZ, 2012: 89). Assim em 1967 as diretrizes para uma política cultural são discutidas no Seminário de Revisão da Cultura Amazonas e no ano seguinte é criada a Fundação Cultural do Amazonas. A instituição, que contou com esparsos recursos, abrigou até mesmo artistas ideologicamente contrários ao governo, como o poeta Aníbal Beça. Podemos acreditar que estavam tão engajados na profissionalização do campo artístico na precária Manaus daqueles anos que isto tenha suplantado suas divergências políticas? Ou realmente foram cooptados pela máquina estatal e a indústria cultural? Podemos suspeitar também que flertar com o poder foi também uma forma de expandir o reconhecimento de seu grupo artístico. Afinal, tratava-se de um círculo que desejava se afastar da sombra dos senhores do Clube da Madrugada, acreditando que estes ainda eram muito primários ou legalistas diante do que propunham. Por mais que o literato afirme que o circuito não tenha tido muitas pretensões, em outro trecho do depoimento já atribui a ele o status de vanguarda. Seria o caso de pretensões que surgem após o ginasial ou que apenas são amadurecidas? Seja como for, o DIPTEA, principalmente no governo de Danilo Mattos Areosa, tornou-se um dos locais das habituais reuniões do grupo. Pelo menos enquanto o radialista Joaquim Marinho esteve á frente do órgão. Sob sua batuta foi promovido o folclórico Festival Norte de Cinema em 1969 onde não apenas Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade fora premiado, como também fora homenageado um velho e quase esquecido pioneiro do cinema nacional, Silvino Santos. Mas voltando ao autor de A República Muda(1984), estenão participara de nenhum gabinete. Nem por isso deixou de ser menos influente, como deixa entender no fragmento abaixo: E na minha casa acontecia tudo, todo mundo ia pra lá, bicho. Eu precisava nem sair de casa pra ver Manaus, Manaus ia lá pra casa. Se discutia tudo: o festival de música, música, poesia... O próprio governo ia pra lá, ás vezes, pra discutir! A secretaria de educação e coisa e tal. Então, era uma loucura. E tinha gente de esquerda engajada no governo também. Que queria ver o diabo, mas não queria ver a esquerda, mas tava lá como se fosse um progressista, né? (...) Acho até que a gente da informação passava lá. E era tudo muito aberto! Ninguém escondia nada. A gente de vez em quando ia para uma beira de igarapé discutir marxismo. Jogava futebol e discutia marxismo. Uma coisa bem modo baiano! (Aldísio G. Filgueiras, 2012). Influente, mas não benquisto. Ainda segundo ele, o motivo maior de ser “visado” pelo governo não se encontrava em sua obra. Seu visual – “A gente tinha o cabelo comprido, andava com aquelas bolsas de couro a tiracolo, sandálias de couro também, um jeans que a gente não lavava, só assobiava e ele andava atrás da gente de manhã” (AldísioG. Filgueiras, 2012) –e seus hábitos (referindo-se aqui ao fato de fumar maconha) chamavam mais atenção. Seu semblante era muito mais eficiente em incomodar os corações e mentes que propriamente sua arte. O que era extremamente intencional. Tratava-se então de atacar as rígidas convenções sociais da pequena e pacata cidade e as reações eram as mais adversas: xingamentos, palavrões e agressão física só em última instância (Aldísio G. Filgueiras, 2013b). Filgueiras não chegou a ser preso, o que pode refletir tanto o raio de sua influência quanto a indiferença do governo. Porém, seu livro Estado de Sítio – que ganhara o Prêmio Jaraqui de Literatura da União Brasileira dos Escritores Seção Amazonas em 1968 –foi impedido de ser publicado. Sobre o fato, o poeta esclarece: O que aconteceu foi que o Roberto Kahané – que tá vivo aí contando a história – tirou uma foto muito legal de uma exposição que o Exército tinha feito numa vitrine ali da Eduardo Ribeiro. Como o nome do livro era Estado de Sítio e a poesia tinha forte cunho social, eu peguei a foto do Roberto Kahané. Mas a seção amazonense da União Brasileira dos Escritores achou mais prudente não publicar o livro. Então não foi uma censura externa, foi uma censura interna. Então, sabe, eu faço questão de contar essa história, porque existe muito heroísmo nessa época. E não houve heroísmo nenhum, foi uma sacanagem. Eles premiaram e depois disseram “não, vamos esperar que acabe a ditadura daqui a trinta anos pra publicar o livro”. O livro saiu depois, mas ninguém presta atenção no livro (Aldísio G.Filgueiras, 2012). Nas páginas do livro em questão, com poemas escritos entre 1965 e 1967, é perceptível uma transformação nos versos. Em todos perdura o tom de denúncia, envolvido que estava ainda naquele modelo de arte compromissada, e aos poucos vemos delinear-se uma interpretação do golpe de 1964 que ao admitir que “venceram as tradições de comércio” se aproxima das considerações de uma linha de pensadores, tais como Octavio Ianni, que concebem o golpe como o desdobramento da expansão capitalista no Brasil.3. Mas chamamos a atenção para o longo e fatalista poema que dá título ao livro por simbolizar tão bem o impacto do golpe para uma intelectualidade até então crente na inexorabilidade de uma revolução social e estética: Os escaravelhos tomaram a cidade e os namorados morreram surpresos nos bancos elétricos da praça. De repente, as abelhas aprenderam a fazer urânio com as flores envenenadas e os pássaros verdes ensinaram ao sol como chocar granadas. Ninguém gritou o ventre do tempo cheio de hóstias anticoncepcionais 3Interpretação essa, chamada por Lucila Delgado Neves de estruturalista, que foi predominante durante os anos sessenta e setenta e está intimamente associada às análises marxistas de então, reféns de esquemas gerais.Ver Delgado, Lucilia de Almeida Neves. 1964: temporalidade e interpretações. In: REIS, Daniel Aarão; RIDENTI,Marcelo; MOTTA, Rodrigo Patto Sá. O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004). São Paulo: Edusc, 2004, p.15-26. contra a pluralidade dos séculos. O poeta é responsável pela Humanidade. Mas o poeta tem cu e tem medo. O poeta tem conta no banco (FILGUEIRAS, 2004: 111). Repentinamente o amor dos namorados é ameaçado pela feição apocalíptica desperta nos elementos que os rodeiam: bancos, abelhas, flores, pássaros e até o astro rei se tornam instrumentos mortais. É o fim da inocência. Aquele romantismo revolucionário esbarra contra a parede do capitalismo e do militarismo. Depois de 1964, o poeta, responsável pela Humanidade, descobre que tem cu e tem medo. Com isso, Filgueiras reflete sobre os limites dessa relação entre cultura e política. A arte, antes alçada á condição de instrumento essencial á revolução, torna-se insuficiente diante dos tangues e granadas. Algum desatento poderia interpretar os versos acima como um adeus á militância política. Longe disso. O poeta expressa sua perplexidade com a crise de um paradigma político na arte. Busca então, como boa parte de uma geração que se aventurou pelo tropicalismo e a contracultura, uma nova forma de pensar e manusear a arte e a política. Seu livro seguinte, Malária e Outras Canções Malignas (1976), representa um avanço nesse sentido. Senão vejamos o poema abaixo: CORREIO DA MANHÃ Os governos carnívoros Iniciam O diálogo diário Da violência ? Um violão ? Uma ? Canção ? Que ? Linguagem ? Usarão ? As populações subterrâneas Do amor ? Contra ? (cartas para a redação) (FILGUEIRAS, 1996: 48). A tensão sujeito-linguagem é explorada mais enfaticamente, absorvendo e desconstruindo o jargão jornalístico. Ao mesmo tempo em que ascende á postos mais elevados a partir de 1968, como responsável ao lado de Joaquim Marinho do caderno JC Jovem no Jornal do Comércio, aventura-se em iniciativas ousadas como a produção do combativo Jornal da Amazônia em 1978, um dos maiores nomes da imprensa alternativa manauara. Em 1969 funda ao lado do ator paulista NielsonMenão o Teatro Experimental do SESC. Tornou-se emblemática a encenação de sua peça Como Cansa Ser Romano nos Trópicos (1969), uma adaptação livre de Calígula de Albert Camus. Sobre a origem da obra o escritor Márcio Souza nos informa: As leituras oswaldianas de AldísioFilgueiras indicavam que estava na hora de fugir das tragédias, era necessário deglutir o arbítrio. (...) Em Camus a discussão do poder escapava da História, reinava a individualidade, nada mudava e a criatura humana estava congelada. Para o grupo, era chegada a hora de debater o poder da ditadura militar, e isto deveria ser feito com humor, fora da seriedade tão oficial dos lacrimejantes espetáculos políticos daquela época (SOUZA, 1984:16). A peça pegara os críticos de plantão de surpresa, tamanho era seu experimentalismo – com direito a jovens seminus besuntados em pomada Minâncora se contorcendo no palco. Apesar da moção pública contra a encenação divulgada na
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