Universidade de Brasília – UnB Instituto de Ciências Sociais Departamento de Antropologia Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social Quem são os humanos dos direitos? Sobre a criminalização do infanticídio indígena Marianna Assunção Figueiredo Holanda (Dissertação de Mestrado) Orientadora: Rita Laura Segato Brasília, agosto de 2008 1 Ao Caetano e sua aparição inesperada em minha vida; confusão necessária para uma imersão em novas vertentes criativas. 2 Resumo O projeto de criminalização do que vinculou-se chamar “infanticídio indígena” é fruto de uma concepção hegemônica do que é vida, do que é ético e do que é humano, demarcando quem tem legitimidade para outorgar estas fronteiras. Contudo, os direitos indígenas, sobretudo o direito à diferença, só poderão ser garantidos por meio da superação do pensamento jurídico moderno e de sua ficção monista, que supõe o Estado como único produtor de juridicidade. Meu exercício etnográfico foi então de contrastar cosmologias – as ameríndias e o discurso político-jurídico do ocidente cristão – no intuito de compreender as perspectivas ameríndias deste aparente “infanticídio” e, de outro lado, elaborar como esta figura jurídica se construiu e solidificou como um crime no Estado de direito. O que está em jogo aqui é quem detém o poder de nomeação de humanidades e alteridades. Palavras-chave: infanticídio, condição humana, direitos humanos, pluralismo jurídico Abstract The criminalization of the called "indigenous infanticide" results from a hegemonic conception of what is life, ethical and human, defining who has the legitimized authority to delimit this subjects. However, the indigenous rights, specially the right of difference, can only be guaranteed by the overcome of the juridical-modern thought and its monist fiction, that entitle the State as the only owner of the right to legislate over this juridical matter. My ethnographic exercise was to contrast cosmologies - the amerindians' and the political-juridical speech of the western occident – trying to understand the perspective of the “infanticide” by indigenous people and, on the other hand, understand how this is figured is defined as a crime in the State of Law . The main issue is to determine who is invested with the legitimacy to nominate humanity and diversity. Key words: infanticide, human condition, human rigths, juridical pluralism 3 Agradecimentos Do emaranhado de trocas, sensações e descobertas que compartilhei, me aproximando ou fugindo – em vão – deste texto, sou grata aos constantes emeios, indicações literárias e bibliográficas. Indignações e interesses de alguma maneira mútuos fomentaram esta dissertação. Menciono também que no ato de refletir e escrever sobre a criação jurídica do infanticídio e sua utilização para o encarceramento das alteridades eu estava também repensando a produção moderna da maternidade, e assim, a minha própria condição de mãe. Caetano nasceu e cresceu ao longo do mestrado e me ensinou que para ser socialmente “mãe” é necessário ajuda. Este texto não seria possível sem minha família, amigos, as escolas e suas cuidadoras. Tia Leila, Cida, avós Marilena e Mônica, Rodrigo e Ana Luiza, Luciana e Vanja, tia Lila, além das equipes do Sibipiruna e da Vivendo e Aprendendo, muito obrigada. Aos antropólogos da 6ª CCR do Ministério Público da União, sobretudo Marco Paulo Schettini e Ângela Baptista, agradeço pela oportunidade do estágio. Lá pude tomar conhecimento de diversos processos administrativos envolvendo conflitos legais entre o Estado nacional e “povos tradicionais”. Foi participando de um encontro nacional de procuradores da república que entrei em contato com a polêmica gerada no fim de 2005 sobre o “infanticídio indígena”; naquele momento delineei meu tema de mestrado. Agradeço aos colegas katacumbeiros pela convivência diária e nossos inúmeros cafezinhos. Conversas boas para escrever e escritas sempre carentes de serem conversadas. De lá, recebi três referências bibliográficas sintonizadas com minhas demandas: sou grata à Andréa Grazziani Otero, por Clarice Conh, à Sônia Cristina Hamid, por Elizabeth Badinter e à Lilian Leite Chaves, por Donna Haraway. Com Marcela Coelho de Souza e José Pimenta pude mergulhar em universos ameríndios e iniciar alguns devaneios que, posteriormente, foram de grande valia. Nesta seara, também sou grata à Rita Heloísa de Almeida e Paulo José Brando Santilli, pelo aprendizado trabalhando na Funai e pela resistência às suas burocracias. Cleide, bibliotecária da Funai, pouco antes de ser procurada por mim, havia coincidentemente feito uma busca detalhada “infanticídio” no acervo da Biblioteca Curt Nimuendaju. Devido a essa iniciativa e à sua memória acurada, ela me poupou de parte do exaustivo trabalho de garimpo de dados que eu já vinha realizando. Ademais, a bibliografia recolhida lá foi o pontapé etnográfico que estava faltando. Ao Chico, livreiro da UnB, que sensível à minha pressa se desdobrou para conseguir os livros à tempo, retribuo com a fidelidade. À Mônica Pechincha, que gentilmente me disponibilizado sua dissertação de mestrado sobre “as histórias de admirar” Kadiwéu, me introduzindo a novas possibilidades de parentesco, assim como à Danielli Jatobá, por ter me relatado suas experiências pessoais como antropóloga da procuradoria do Pará, devo algumas intuições importantes. Seus 4 trabalhos me instigaram e contribuíram para me sensibilizar aos novos dilemas das mulheres indígenas. Agradeço à amiga Taís Itacaramby, que por compartilhar comigo o interesse pelo tema, me fazer lembrar rotineiramente que valia a pena escrever sobre. De Lu Villas-Boas, Rugê Schmidt Campos e Sara Gaia recebi afeto e paciência nas horas imprecisas. Das amigas, mães e guerreiras, Andréia Bavaresco e Aina Guimarães agradeço a força compartilhada. Além deles, uma sintonia instigante com Bárbara Oliveira e Tiago Eli, comparsas nas críticas de mundo, fomentou muitas das páginas que se seguem. À amiga Tatiana Mota, pela revisão do abstract. À Rita Segato, minha orientadora e amiga, serei sempre grata por me mostrar as muitas antropologias possíveis – embora saibamos por qual rumo caminhar. Das conversas, aulas, bibliografias, reuniões e insurgências cotidianas, aprendi também novas formas de me colocar no mundo. Suas ausências que tanto me inquietaram, foram fundamentais para me pôr em movimento, aprendendo a conviver com a solidão da escrita. Ademais, sua leitura teimosa, críticas necessárias e sugestões preciosas, foram o fôlego final para alinhavar e concluir esta dissertação. Menciono com gratidão os professores Paul Little, Mariza Peirano e José Jorge de Carvalho, pela sensibilidade com minha condição de mãe e bolsista. Ao CNPq enfatizo que sem a bolsa não haveria possibilidade de cursar o mestrado. À Adriana e à Rosa agradeço pela eficiência nos trâmites necessários e às constantes ajudas nas horas confusas. Por fim e lisonjeada, agradeço o carinho e a presença dos amigos na banca: Rogério Campos, Sara Gaia, Júlia Otero, Valéria Martins, Domitila Mesquita, Marianna Queiróz, Blanca Rojas, Taís Itacaramby, Juliana Watson, Fabíola Cardoso, Carmela Zigoni, André Rego, Sônia Hamid, Carolina Pedreira, Pedro MacDowell, Elena Nava, Maria Soledad Castro, Yoko Nitahara, Andréia Otero, Júlia Brussi, Alda Lúcia, Luís Guilherme de Assis, Diogo Goltara, Eduardo Nunes, Roderlei Goes e Rosa Virgínia. 5 Índice 7 Prólogo – “A vida está acima da cultura” 10 Alinhavando... 16 Capítulo 1 – As elaborações ameríndias da pessoalidade 18 A fundação do social e seus cotidianos 25 A vida e o sentimento de respeito-vergonha 31 A morte e o cultivar 37 Tornado-se (não) pessoa 45 Capítulo 2 – Sobre os interditos de vida 50 A gemeleidade e outros dilemas 55 Elaboração corporal e expectativas sociais 61 Outras relações 65 Da criação antropológica e dos contrastes 69 Capítulo 3 – A criação jurídica do infanticídio 69 Origens 78 A hierofania do discurso colonial 80 Grandes descobertas 85 O encarceramento disciplinar 87 O encarceramento jurídico 91 O encarceramento colonial 95 O nascimento econômico e sanitarista da filantropia 99 A base colonial das políticas indigenistas 101 O estatuto jurídico da infância e do infanticídio 107 Adendo 109 Capítulo 4 – Da economia do sacrifício 116 Capítulo 5 – Sobre a nova natureza, “humana”? 118 Psicologia evolutiva, sociobiologia e outros ismos 125 A cosmologia ocidental e a Alma Mater 128 As metamorfoses do natural 130 Sem fronteiras? 133 Outras traduções de mundos 136 O espelho e a reflexão 142 Da não conclusão: expansão 147 Referências bibliográficas 156 Anexo - Projeto de Lei nº 1057/2007 Prólogo “A vida está acima da cultura” 6 Não é saudável tratar os índios como se fossem dissociados da sociedade brasileira. Porque não querem inserir os índios, as nossas aldeias indígenas, nas transformações que são necessárias? As culturas indígenas precisam de transformação nos seus aspectos sombrios e negativos. E o deputado Afonso Henrique conclui: Nos achamos impedidos, muitas vezes, de passar por cima de um sistema de crença ou um código moral para defender aquilo que, internacionalmente, já é consenso nos marcos do séc. XXI, exatamente o direito à vida (Audiência Pública 2005). Autor do projeto de lei nº 1057/2007 (anexo) que visa a criminalização de “práticas tradicionais que atentem contra a vida e a integridade físico-psíquica” o deputado foi peça importante no debate de grande interesse midiático suscitado no Brasil: a punição e eliminação do que vinculou-se chamar “infanticídio indígena”. Caracterização que explicita as fronteiras políticas e morais entre Povos Indígenas no Brasil e o Estado nacional. Foi a partir da saída de uma aldeia Zuruwahá de duas crianças que tiveram o status de pessoa indeferido por seu povo: Tititu, que nasceu com indefinição sexual, e Iganani, com paralisia cerebral, que o “infanticídio indígena” começou a se delinear como tema de interesse público. A ação foi elaborada pela missão evangélica de origem estadunidense – Jocum – com o intuito de retirar as crianças de seu povo para “receberem tratamento médico adequado”. Entrou em cena uma mídia direcionada a sensibilizar a sociedade civil a uma barbárie. A missão “de caráter filantrópico” e atuante entre vários povos indígenas no Brasil é formada por “pessoas dedicadas a apresentar Jesus pessoalmente utilizando todas as formas possíveis afim de cumprir esta tarefa”1. Eles se instalaram entre os Zuruwahá – povo até então considerado isolado pela Funai – na década de 1980. Dessa convivência surgiu a ONG Atini, que segundo os missionários, significa “voz pela vida” em zuruwahá. A Atini nutre profundo respeito pelas culturas indígenas, mas, em conformidade com a Organização das Nações Unidas (ONU), entende que nem todas as práticas tradicionais são válidas em nome da cultura. Sobretudo, quando afetam os mais vulneráveis, como as crianças indígenas submetidas a práticas infanticidas2. Sua principal atuação tem sido a produção de materiais publicitários que violentam estratégias e filosofias ameríndias generalizando-as pela imposição de um fenômeno “infanticídio indígena” de forte apelo publicitário. A rápida repercussão nacional sobre “a retirada ilegal de índios isolados de sua aldeia” e o entrave jurídico que originou, impulsionou uma participação mais atuante do Estado brasileiro. O resultado foi uma 1 Fonte: www.jocum.org.br, em 18/07/2008. 2 Fonte: www.atini.org, em 18/07/2008. 7 audiência pública, em dezembro de 2005, na qual ficou o vácuo das vozes indígenas, sobretudo Zuruwahá3. Na sala do congresso nacional, um crucifixo na parede direita indicava o horizonte moral do monólogo que se seguiu. Os protagonistas são, de um lado, as duas crianças Zuruwahá, do outro, a Jocum e sua missão de garantir o dom da vida a estas meninas. Entre eles, biomédicos e diagnósticos, a Fundação Nacional do Índio, a Fundação Nacional de Saúde, procuradores da república e a bancada evangélica parlamentar. Um dos deputados esclareceu o objetivo da audiência pública, acionada pela Comissão da Amazônia, Integração Nacional e Desenvolvimento Regional: “debater uma atuação mais incisiva, humanitária e governamental nestes casos de abuso dos direitos humanos”. Ao longo das falas, foi notável uma dupla produção da vitimização indígena: vítimas de sua própria cultura opressora e arcaica (para os missionários / parlamentares) ou vítimas do “contato interétnico”, sobretudo com a presença dos missionários (para a Funai / Funasa), a tal ponto que o representante da Funai concluiu “não há possibilidade de eles resistirem ao trabalho de convencimento ou à catequese”. O direito à diferença foi enfaticamente negado em prol de “uma dimensão superior humana”, cujo critério é a imposição da vida. Notemos a fala da missionária, Márcia Suzuki, na qual ela desenvolve o foco de atuação da Atini. Estamos lá com o objetivo de fazer amigos, de ajudar as culturas naquilo que é necessário, de atender em ocasiões de emergência. Fazemos isso com constância (Audiência Pública 2005). Ademais, explica Bráulia Ribeiro, a presidente nacional da Jocum, A única diferença entre nós e os Zuruwahá é que eles falam a língua deles, exclusivamente (idem). Contudo, os últimos parecem carecer de princípios humanitários e eis sua diferença negativa, nomeada para ser corrigida. Vamos para lá para ensinar aquilo que é ético, aquilo que é moral, aquilo que é bom, aquilo que edifica, e não aquilo que destrói a vida (idem). Pastor Frankembergen, um dos deputados presentes na audiência nos lembrou: “Desenvolver a cultura é um dos dons que o Criador deu aos seres humanos”. Então ele lança uma pergunta: São esses aspectos sombrios da cultura indígena que os torna mais índios? É o fato de preservarem uma tradição que os enfraquece, que os constrange, que os mata, que os torna índios? (idem) Em sua fala, a advogada da Jocum, Maíra de Paula Barreto comenta: 3 Durante a escrita desta dissertação, uma nova audiência pública – em agosto de 2007 – foi organizada pela Comissão de Direitos Humanos e Minorias para discutir “a prática de infanticídio nas áreas indígenas”. Desta vez, após as críticas e depois de uma articulação mais intensa do movimento indígena, a audiência contou com a participação de lideranças indígenas e antropólogos, além de reiterar a presença da Atini. Sobre o evento ver: Segato s/d. 8 Sou a favor dos direitos humanos como algo universal, comum a todos os povos. Acredito que quando há choque com a cultura, o que prevalece são os direitos fundamentais (idem). Mas que “cultura” está em choque? Ela responde. Existe sim o certo e o errado (...). A humanidade toda se reuniu em torno de noções claras. É como a luz e as trevas. Está bem claro diante de nós o que é certo. A vida não deixa de ser vida se alguém tem uma concepção de religião diferente, a vida tem valor intrínseco. Por isto estamos aqui, somos gente que entende que a vida está acima da cultura (idem). 9 Alinhavando... Estas falas são desdobramentos de uma concepção hegemônica do que é vida, do que é ético e do que é humano. Ademais, elas permitem transparecer quem tem legitimidade para outorgar estas fronteiras. Se o direito à vida é uma garantia fundamental dos Direitos Humanos universais e é pilar de inúmeras constituições nacionais, o problema é antes a sua interpretação exclusiva por parte de legisladores que compreende estes direitos como do indivíduo, com base em uma igualdade que não permite discriminar por “raça, cor, gênero” e, portanto, suprime a possibilidade de diferenças. Esta perspectiva liberal é a base da carta constitucional brasileira, vinculada à fundação do Estado e a um sistema jurídico-político. Dessa maneira, embora no Brasil se reconheça aos Povos Indígenas o direito de viverem segundo seus “usos, costumes e tradições” diferenciados da sociedade nacional, neste tipo de política eles desaparecem juridicamente como sujeitos de direito coletivo. A noção de “igualdade” presume uma integração total que não pode abarcar a idéia de coletividade – central para que possamos compreender as sócio-lógicas ameríndias e sua relação com a elaboração da vida e da morte. Esta noção de indivíduo, esta metafísica da experiência interior ou a interioridade como fundamento da metafísica, são emblemas modernos (Milovic 2005) assim como o projeto de por fim às ambivalências, aos múltiplos, às diferenças (Bauman 1999). Como conseqüência, a teia moral que balizou e sustenta os Direitos Humanos foi se constituindo também pela imposição de inumanidade às alteridades, sempre portadoras de falhas morais a serem corrigidas. Por meio da criação da “diferença cultural” enquanto projeto colonial, questões como a “intervenção humanitária”, gerada e geradora dos Direitos Humanos, ganharam relevância nos debates internacionais e solidificaram-se como dever das metrópoles. O conflito e as desinformações gerados quando nos colocamos diante de um Outro levaram o projeto de modernidade a negar similitudes tentando englobar, a produzir diferenças com o intuito de colonizar e à criação contínua de substâncias que fixem as ambigüidades, para então justificar. Este é também o projeto democrático. Prevalece a idéia de que declarar – e impor – a igualdade resolve o problema da marginalização e da incompreensão diante das alteridades. Mas sabemos que a igualdade não é suficiente. Toda negação de especificidades faz parte de um esquema discriminatório e racista. A discriminação não se circunscreve ao preconceito ideológico, o racismo hoje é um racismo institucional (Stavenhagen 2008). Ele perpassa a distribuição seletiva de dinheiro público, as prioridades estratégicas de governo, as informações produzidas nos grandes veículos de comunicação, os parlamentares, seus projetos de lei e a pertinência de determinados acordos internacionais. O racismo institucional é o fracasso coletivo de uma organização em prover os direitos de um grupo ou de um povo, colocando-os em desvantagem (Wiecko 2008). Há uma pressão muito grande do direito estatal para que as organizações indígenas tomem a 10
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