JUNQUEIRA, N. M. Uma viagem ao antigo Egito: a relação entre... 245 UMA VIAGEM AO ANTIGO EGITO: A RELAÇÃO ENTRE PRESENTE E PASSADO NA NARRATIVA DE BORDO DE GUSTAVE FLAUBERT A travel to Ancient Egypt: the relationship between present and past in Gustave Flaubert’s board narrative Nathalia Monseff Junqueira* RESUMO O Antigo Egito, ao longo do tempo, sempre atraiu a atenção de outras civilizações. A partir do final do século XVIII, o Ocidente, principalmente Inglaterra e França, volta o seu olhar, desta vez com mais interesse, para o Oriente, visando adquirir um maior conhecimento sobre essas civilizações e articulando um discurso denominado Orientalismo. Essa pesquisa procura demonstrar como este discurso esteve presente na sociedade européia, influenciando as relações entre orientais e ocidentais, valendo-se da obra literária produzida por Gustave Flaubert intitulada Voyage en Egypte: octobre 1849-juillet 1850. Com base nessa fonte, juntamente com a discussão bibliográfica proposta, pretendo analisar as representações idealizadas sobre o Antigo Egito, provenientes do discurso orientalista difundido no Ocidente ao longo do século XIX, que constrói o Oriente com o objetivo de justificar a dominação exercida nesta região. Palavras-chave: História; literatura; Egito. * Graduada em História pela Universidade Estadual de Campinas (2005) e Mestranda em História (Franca) pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2007). Doutoranda em História na Universidade Estadual de Campinas, sob orientação do Prof. Dr. Pedro Paulo Funari e co- orientação da Profa. Dra. Margarida Maria de Carvalho. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 245-264, 2008. Editora UFPR 246 JUNQUEIRA, N. M. Uma viagem ao antigo Egito: a relação entre... ABSTRACT The Ancient Egypt has always attracted the attention of other civilizations. Since the end of the 18th century, the West, mainly England and France, turns its eyes more carefully to the East in order to acquire a greater knowledge about those civilizations, articulating a discourse called Orientalism. Based on the literary work of Gustave Flaubert entitled Voyage en Egypte: octobre 1849-juillet 1850, the aim of this paper is to demonstrate how this discourse was present in European society, influencing the relationships among western and eastern peoples. An analysis of the representations that derived from the orientalist discourse idealized about the Ancient Egypt along the 19th century was carried out with the objective to show that such discourse created an image of the East in order to justify the domination exerted in that region. Key-words: History; literature; Egypt. Introdução O fascínio pelo Antigo Egito remonta à Antigüidade. E como exem- plos têm-se as obras de Heródoto, Diodoro da Sicília, Estrabão, Plutarco e Ptolomeo, que resistiram ao tempo e se tornaram referências para o estudo da sociedade egípcia, juntamente com a cultura material e os papiros rema- nescentes das épocas dos faraós. Durante a Idade Média, foram os peregri- nos, os antiquários e outros viajantes que incluíram o Egito em suas rotas e em seus relatos. As primeiras visitas em busca dos objetos de valor dessa região começaram nos anos finais do século XVI e no início do século XVII. Entretanto, a multiplicação de interesses pelo Egito ocorreu depois que Napoleão Bonaparte (1769-1821) invadiu Alexandria, em 1798 e, dessa forma, não somente o Egito, mas também todo o Oriente, tornou-se um lugar comum a novos estudos e viagens. A expansão da arqueologia no século XIX despertou a imaginação e a curiosidade dos europeus pelas antigas sociedades orientais. Assim sendo, as pesquisas científicas propagaram diversas informações sobre esse novo mundo. Nesse sentido, as viagens ao Oriente faziam parte do itinerário de qualquer pessoa interessada em conhecer novas culturas, como foi o caso de Gustave Flaubert (1821-1881), História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 245-264, 2008. Editora UFPR JUNQUEIRA, N. M. Uma viagem ao antigo Egito: a relação entre... 247 literato que escreveu o diário de bordo Voyage en Égypte durante a sua estada no Oriente entre 1849 e 1850. Nesse diário, o romancista narra todas as impressões e experiên- cias dessa viagem, uma fonte pouco explorada pela historiografia atual, ou seja, pela historiografia francesa, britânica, ibérica e nacional. No que tange à temática dos usos do passado, esse texto é somente citado em alguns trabalhos. Dentre estes, encontram-se estudos tanto sobre a sociedade do Antigo Egito quanto sobre o século XIX, já que se trata de uma boa fonte para se compreender o imaginário histórico da época. Os usos do passado: uma relação entre presente e passado Nos últimos anos, surge uma nova corrente de estudos na História Antiga que busca expandir a questão cultural e a formação da identidade nacional através dos usos do passado. Essa vertente apresenta a preocupa- ção de entender como houve a manipulação do passado por grupos no poder para legitimar os seus discursos e as suas práticas vigentes. Essa linha de pesquisa procura delimitar as variadas formas de apropriação do passado, através da relação de cada sociedade, seja com seu passado, seja com outras sociedades. Nesse artigo, procura-se estabelecer como a Fran- ça, durante o século XIX, apoderou-se da Antigüidade egípcia para cons- truir sua identidade nacional e sua idéia de herança cultural. Laurent Olivier1 afirma que a descoberta do continente americano nos séculos XVI e XVII e o achado de vestígios arqueológicos de outras sociedades pré-clássicas transformaram as bases sobre as quais a identida- de européia havia sido construída até o século XVIII – e o problema resul- tante dessas descobertas era como juntar em uma mesma história universal do homem os “selvagens” e os europeus. 1 OLIVIER, Laurent. As origens da arqueologia francesa, in Repensando o Mundo Antigo. Trad. Glaydson José da Silva. Textos didáticos n. 49, IFCH/UNICAMP, 2003, p.38. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 245-264, 2008. Editora UFPR 248 JUNQUEIRA, N. M. Uma viagem ao antigo Egito: a relação entre... A resposta foi mostrar, através da análise da cultura material en- contrada tanto na América como na Europa, que os ameríndios estavam em uma escala evolutiva anterior à européia, ou seja, que essas populações primitivas conservariam as marcas das origens do homem moderno. É dessa maneira que a arqueologia auxilia na construção de uma identidade européia e se torna um aparato científico das origens da Nação, havendo a transição dos gabinetes de curiosidade para o que se pode chamar de os primeiros gabinetes de Antigüidades. Um dos historiadores brasileiros que trabalha nesse campo dos usos do passado é Pedro Paulo Funari. Em seu artigo “Guerra do Peloponeso”, ele demonstra como essa guerra serviu de modelo para as análises realiza- das sobre as duas guerras mundiais ocorridas no século XX e, atualmente, para comparações com a guerra entre Estados Unidos e Iraque, em curso desde 20032. O assessor do ministro da Defesa americano Davis Hanson, segundo Funari3, traça um paralelo entre os Estados Unidos e Atenas, suge- rindo uma mudança dos sistemas de governos dos países invadidos para o democrático e buscando, dessa maneira, novos aliados no Oriente. Glaydson José da Silva é outro historiador nessa mesma linha de pesquisa. Seu livro História Antiga e usos do passado: um estudo de apro- priações da Antigüidade sob o Regime de Vichy (1940-1944), publicado em 2007, versa sobre a República de Vichy, implantada durante a permanência da Alemanha nazista na França à época da Segunda Guerra Mundial. O discurso vigente, após a invasão alemã, era em prol de uma nova França, descendente de um passado gaulês. Silva também aponta nesse trabalho como essa manipulação do passado francês cria uma nova memória coleti- va, reavivando figuras históricas pertencentes à tradição francesa. Como comenta Silva4, os estudiosos que se encontram no chama- do Terceiro Mundo, ao realizarem trabalhos que buscam essa temática de usos do passado, como é o caso deste artigo, percebem, ao longo das 2 FUNARI, P. P. A. Guerra do Peloponeso. In: MAGNOLI, Demétrio. História das guer- ras. São Paulo: Contexto, 2006, p. 19-45. 3 Ibid., p. 43. 4 SILVA, Glaydson José da. Antigüidade, Arqueologia e a França de Vichy: usos do pas- sado. São Paulo: Annablume; FAPESP, 2007. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 245-264, 2008. Editora UFPR JUNQUEIRA, N. M. Uma viagem ao antigo Egito: a relação entre... 249 discussões historiográficas, que os autores franceses estão comprometi- dos com os interesses europeus, tornando o trabalho mais crítico. Gustave Flaubert: obra e redes de sociabilidade A título de conhecimento, serão apresentadas algumas informa- ções sobre o autor e o contexto histórico em que viveu. O romancista Gustave Flaubert nasceu em 12 de dezembro de 1821, em Rouen, França. Era filho de um cirurgião de renome e pertencia a uma família aristocrática da região da Baixa-Normandia. Aos 20 anos, decidiu estudar Direito (1841-1843) em Paris, mas, devido a crises nervosas, abandonou o curso e retornou à sua cidade natal. Segundo Guy de Maupassant (1850-1893), Flaubert passava os seus solitários dias dedicando-se à lenta elaboração de suas obras no escritório de sua propriedade na cidade de Croisset, localizada perto de Rouen, de cujas janelas poderia ser observado o rio Sena. Deixava poucas vezes a sua propriedade para encontrar-se com os amigos, nas tardes de domingo, em um pequeno apartamento em Saint- Honoré, demonstrando participar de uma rede de sociabilidade: Ernest Chevalier (1820-1887), Alfred Le Poittevin (1816- 1848), Louis Bouilhet (1821- 1869), Máxime du Camp (1822-1894), que o acompanhou em sua viagem ao Egito, o já citado Guy de Maupassant (1850-1893), Ivan Tourgueneff (1818- 1883), Theóphile Gautier (1811-1872), Georges Feydeau (1862-1921), Charles Augustin Sainte-Beuve (1804-1869), Charles Baudelaire (1821-1867), Edmond de Goncourt (1822-1896), Leconte de Lisle (1818-1894), Alexandre Dumas Filho (1824-1895), Victor Hugo (1802-1885), Alphonse Daudet (1840-1897), Émile Zola (1840-1902), Jules Lemaître (1853-1914), Hippolyte Taine (1828- 1893), Ernest Renan (1823-1892), Edmond About (1828-1885) e George Sand (1804-1876), pseudônimo usado pela Baronesa Dudevant. As conversas e trocas de idéias que ali ocorreram influenciaram de alguma maneira as obras de Flaubert, como, por exemplo, o poeta Bouilhet, no tocante ao interesse pelo teatro, e Vitor Hugo e Renan como autores prestigiados por ele. Dentre as suas obras mais conhecidas, cita-se a primeira versão de La tentation de Saint Antoine (1849), inspirada em um quadro do pintor flamengo Jan Brueghel, “o velho” (1568-1625). Iniciou sua viagem no Orien- História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 245-264, 2008. Editora UFPR 250 JUNQUEIRA, N. M. Uma viagem ao antigo Egito: a relação entre... te, que duraria dois anos, em 1849. Segundo Eric Hobsbawm5, essa busca romântica levou exploradores até os grandes desertos da Arábia e do norte da África, entre os guerreiros e as odaliscas. A primeira obra do literato a ser publicada é Madame Bovary, em 1857, a qual obteve grande repercussão na sociedade francesa devido ao adultério cometido pela protagonista, Emma Bovary. Devido à repercussão dessa obra, o autor francês foi processado por ofender os preceitos da moral e da religião; Flaubert, em sua defesa, afirmou “Madame Bovary sou eu”6. Salammbô, lançado em 1862, apresenta ao leitor elementos da antiga cidade de Cartago, que foram colhidos na sua viagem ao sítio arqueológico localizado no norte da África. Nessa obra, de grande sucesso, têm-se como principais personagens o liberto Spendius, Mathô, que se apaixona pela filha do general Hamilcar, Salammbô, a perso- nagem que dá nome à obra. Flaubert publicou outros livros, como L’ Éducation Sentimentale (1869), a segunda versão de La tentation de Saint Antoine (1874) e Trois Contes (1877), apresentando três histórias escritas em estilos diferentes: Un coeur simple, representando o realismo; Saint Julien l’hospitalier, um con- to medieval, e Hérodias, seguindo o estilo bíblico. Em 1880, ano de sua morte, iniciou a redação da sua última obra, Bouvard et Pécuchet, em que critica a verdade vinculada de forma incontestável à ciência durante o sécu- lo XIX e que será lançada postumamente em 1881. Outra obra lançada após a sua morte é a fonte desse trabalho, Voyage en Égypte, que somente foi editada em 1910. Representação e análise de discurso Neste momento, atentar-se-á à maneira como o texto e o contexto interagem entre si, observando também conceitos da análise do discurso e da representação, pontos importantes em relação ao entendimento do texto 5 HOBSBAWM, E. J. A era das revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 289. 6 FLAUBERT, G. Madame Bovary. Paris: Gallimard, 1936, p. 5. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 245-264, 2008. Editora UFPR JUNQUEIRA, N. M. Uma viagem ao antigo Egito: a relação entre... 251 escolhido. Apesar da análise do discurso e a representação terem origens diferentes, a primeira na literatura e a segunda na historiografia, não são conceitos excludentes entre si. Eles auxiliam na observação de como são projetadas as prerrogativas imperialistas dos grupos dominantes na França nas sociedades orientais durante o século XIX, legitimando suas condutas e projetos nessas localidades, bem como esboçando uma nova identidade para esses grupos. A análise de discurso surge na década de 1960 indagando a manei- ra como o texto exprime a opinião do autor, havendo o retorno do estudo da literatura como uma produção discursiva. Através das teorias da critica literária e da filosofia da linguagem, de acordo com Eni Orlandi7, as Ciências Sociais e a Lingüística devem ser articuladas, a linguagem e a sua exterioridade. Sendo assim, o discurso é um produto da cultura, e a ciência e a arte, antes pensadas no século XIX como dois pólos opostos, estão interligadas no discurso das ciências humanas contemporâneas. Primeiramente, serão inseridas algumas reflexões de autores que conceituam a narrativa, como a de David Harlan8, que afirma que as narrati- vas são feitas de palavras e começam a gerar leituras múltiplas e sentidos divergentes, ou a de Laurence Stone9, que considera a narrativa como uma organização de materiais numa ordem de seqüência cronológica e a concen- tração de um conteúdo numa única estória coerente, embora possuindo subtramas. Retornando a posição de Harlan10, todo o discurso é político e cultural, havendo uma ação humana intencional. Esse resultado, segundo Orlandi11, é promovido por uma mediação entre o homem e o seu contexto. O referido discurso concatena uma produção de sentidos12, a qual está ligada 7 ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2003, p. 16. 8 HARLAN, David. A História Intelectual e o retorno da Literatura. In: RAGO, Margareth; GIMENES, Renato (Orgs.). Narrar o passado, repensar a história. Campinas: Unicamp, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, p. 15-62, 2000, p. 18. 9 STONE, Laurence. O ressurgimento da narrativa. Reflexões sobre uma velha história. Revista de História. Campinas, n. 2/3, p. 13-37, 1991, p. 13. 10 HARLAN, David. Idem. 11 ORLANDI, Eni P. Idem, p. 15. 12 Ibid., p. 43. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 245-264, 2008. Editora UFPR 252 JUNQUEIRA, N. M. Uma viagem ao antigo Egito: a relação entre... à inter-relação entre discurso, sujeito e ideologia; por sua vez, resulta em uma formação discursiva, que permite compreender a sua própria estrutura, a maneira como nele a ideologia mostra-se presente e como a mesma se relaciona com a linguagem. Afirma-se que essa formação discursiva é histórica e não podemos separá-la de sua época. Como salienta Jorge Lozano13, cada período estabe- lece critérios dominantes na constituição do seu discurso histórico. Logo, há a necessidade de relacionar o discurso com a posição de quem o profere, percebendo as lutas de poder e dominação que estão presentes na consti- tuição daquele discurso14. Seguindo essa linha de raciocínio, Michel Foucault contribui para esse debate, analisando o discurso por um outro prisma. Por exemplo, em seu livro A ordem do discurso15, ele critica a palavra como transparência no mo- mento em que não se consideram os seus possíveis sentidos. Para ele, o discurso é um produto da sociedade, sua produção é ao mesmo tempo con- trolada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedi- mentos que têm por função conjurar os seus poderes e perigos, dominar o seu acontecimento aleatório, esquivar a sua pesada e temível materialidade. Entretanto, o poder não está presente somente no discurso; ele também permeia as representações. E é exatamente essa a temática da Histó- ria Cultural, pensar como a realidade social de uma determinada localidade é criada através de interesses de grupos dominantes. Para Peter Burke16, a representação tem o poder de modificar a realidade que parece refletir. Já no caso de Roger Chartier17, a representação apresenta três modalidades: o trabalho de classificação; as práticas de se reconhecer uma identidade so- cial e as formas institucionalizadas que marcam a existência do grupo ou comunidade. 13 LOZANO, J. El discurso histórico. Madrid: Alianza Editorial, 1994, p. 11. 14 CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. Rio de Janeiro/ Lisboa: Bertrand/Difel, 1990, p. 17. 15 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France pronun- ciada em 2 de dezembro de 1970. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 9. 16 BURKE, Peter (Org.). O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 84. 17 CHARTIER, Op. Cit. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 245-264, 2008. Editora UFPR JUNQUEIRA, N. M. Uma viagem ao antigo Egito: a relação entre... 253 As representações não somente classificam as sociedades que criam, todavia há uma exclusão de alguns aspectos que seriam representados, por meio de práticas políticas, sociais e discursivas. Outro ponto destacado por Chartier é a chamada representação coletiva, que se preocupa em conciliar as imagens mentais claras com os esquemas interiorizados, as categorias incorporadas, que as geram e estruturam uma forma de constituir uma única representação que será compartilhada por uma sociedade18, como o caso das imagens do Oriente que veiculavam no Ocidente desde a Antigüidade. As representações do Antigo Egito na obra de Gustave Flaubert A partir de agora, analisar-se-ão algumas passagens selecionadas da obra Voyage en Égypte referentes à Antigüidade egípcia e que apontam para a relação entre a sociedade ocidental e o Oriente no século XIX. Primei- ramente, esse era caracterizado como um lugar onde o exótico e o maravilho- so habitavam, mas, depois do contato com os nativos, ao Oriente restou desempenhar o papel de antagonista em relação ao europeu; um território ideal para a Europa comparar sua cultura com uma cultura diferente e afirmar a sua superioridade e o seu domínio sobre o Leste. Essa dominação resulta na última etapa da relação entre Ocidente e Oriente: a pilhagem de todas as riquezas, inclusive a cultura material, que se torna propriedade de seus invasores e irá compor os acervos particulares e dos museus da Europa. Em meados do século XIX, todo o Oriente já havia sido mapeado e estudado e uma série de trabalhos foi publicada sobre o Egito na França, como Viagem no Baixo e Alto Egito, do barão Vivant Denon (1747-1825), Descrição do Egito, por ordem de Napoleão Bonaparte e Sumário do Siste- ma Hieroglífico dos Antigos Egípcios, de Jean-François Champollion (1790- 1832), que se tornaram leituras indispensáveis para um conhecimento pré- vio do território a ser visitado. 18 Ibid., p. 19. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 245-264, 2008. Editora UFPR 254 JUNQUEIRA, N. M. Uma viagem ao antigo Egito: a relação entre... Flaubert, em algumas passagens do seu diário, apresenta indícios de que teria consultado esses trabalhos antes de sua partida para o Egito. Em Mahatta, ele vê dois turcos fumando perto de um muro circular, o que, para ele, “era como uma gravura, uma visão do Oriente em um livro”19. Em Beit-el-Ouali, ele escreve: “Ver a descrição de Champollion, o jovem, no seu Cartas sobre a Núbia” 20, e em El-Kab ele faz a mesma anotação, citando além do “Egito de Champollion”, “Figeac, Universo pitoresco”21. Conclui- se, portanto, que o escritor francês teve acesso às pesquisas que foram realizadas no Egito durante esse período. Entretanto, essas pesquisas estavam baseadas em uma prática do Orientalismo, que é definido por Edward Said (1935-2003) como uma disci- plina científica que focaria seu objetivo em uma aquisição e acumulação de conhecimentos sobre o Oriente. O intuito dos orientalistas era o de provar as informações científicas levantadas nas bibliotecas européias através da leitura de textos datados desde a Antigüidade sobre o Oriente. Esse conhe- cimento produzido por esses estudos influenciou a literatura ficcional euro- péia, criando uma experiência homogênea e reforçando, segundo Said22, as divisões estabelecidas pelos orientalistas entre Ocidente e Oriente. Essas informações também favoreceram as invasões e ambições coloniais ocidentais no Oriente, uma vez que os invasores tinham muitos dados sobre a cultura das populações locais, viabilizando a ocupação des- sa região, além de se tentar salientar fatores da corrida imperialista do século XIX. Uma primeira análise a que se recorre acerca desse assunto é a de Hannah Arendt, que afirma que as práticas imperialistas se iniciam no último terço do século XIX. No livro as Origens do totalitarismo, escrito em 1950, ela discutiu o tema do imperialismo através do viés político e econômico, caracterizando-o como oriundo do colonialismo e nascido pela incompatibi- 19 FLAUBERT, G. Voyage en Égypte: octobre 1849-juillet 1850; présentation de Catherine Meyer; photographies de Maxime Du Camp. Paris: Editions Entente, 1986, p. 114. 20 Ibid., p. 142. 21 Ibid., p. 152. 22 SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Com- panhia das Letras, 1990, p.108. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 48/49, p. 245-264, 2008. Editora UFPR
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