História e representação literária: Uma reflexão sobre Os demônios de Loudun, de Aldous Huxley History and literary representation: a reflection on Aldous Huxley’s The devils of Loudun Shirley de Souza Gomes CARREIRA¹ ABEU – Centro Universitário (UNIABEU) RESUMO: Em Os demônios de Loudun, Aldous Huxley traz à baila um acontecimento ocorrido em Loudun, no século XVII, utilizando estratégias que podem ser equiparadas às técnicas da micro-história, apesar de a obra ter sido escrita em 1952, cerca de três décadas antes dos estudos pioneiros de Carlo Ginzburg e Giovanni Levi. Para fins desta análise, abordaremos o conceito tradicional de romance histórico, bem como os diálogos entre ficção e história em suas diversas modalidades, focalizando, também, o conceito, a origem e as técnicas da micro- história, de modo a apontar seus pontos de convergência com o romance de Huxley. PALAVRAS-CHAVE: Huxley. Romance historic. Micro-história. ABSTRACT: In The devils of Loudun, Aldous Huxley brings up an event that took place in Loudun, in the seventeenth century, using strategies that can be associated with the techniques of micro-history, although the book was written in 1952, nearly three decades before the pioneering studies by Carlo Ginzburg and Giovanni Levi. For purposes of this analysis, we discuss the concept of traditional historical novel, as well as dialogues between fiction and history in their diverse forms, focusing, too, the concept, origin and techniques of micro-history, to present their points of convergence with Huxley’s novel. KEYWORDS: Huxley. Historical novel. Micro-history. Toda interpretação concorda com o modelo de pensamento dominante. Aldous Huxley Introdução Em Tempo e narrativa, Paul Ricouer (1997, p. 329) afirma que “a narrativa de ficção é quase histórica, na medida em que os acontecimentos irreais que ela relata são fatos passados para a voz narrativa que se dirige ao leitor”, assemelhando-se, assim, a acontecimentos passados, registrados pela historiografia. Ao fazê-lo, Ricouer (1997) se reporta à narrativa de ficção em geral, sem privilegiar um gênero específico, diferentemente do que Lukács faz em O Romance histórico (2011). Nesta obra, o autor define o romance como um gênero que surgiu na estética do romantismo, muito embora tenha características que podem fazer com que seja interpretado como antirromântico, posto que está intimamente ligado à ascensão da burguesia, às novas mudanças econômicas, relevância _____________________________________________________________________ ¹Doutora em Literatura Comparada. Professora Titular do UNIABEU; Curso de Letras; Rio de Janeiro, RJ. [email protected] Revista MOARA, n.39, p.1-18, jan./jun. 2013, Estudos Literários 1 Shirley de Souza Gomes CARREIRA econômicas, sociais e políticas do momento e à conscientização das pessoas em relação à relevância da história do próprio país e do mundo. De certa forma, o modo de narrar a ficção sempre esteve atrelado à maneira de pensar a historiografia, e esta, ao refletir sobre o processo de elaboração da narrativa histórica, passou por mudanças significativas. Em toda a discussão que promoveu tais mudanças, o questionamento primordial girou em torno da “veracidade” das narrativas históricas, uma vez que o passado é narrado através de textos. Na efervescência da oposição da École des Annales (BRAUDEL, 1969) à tradicional história dos acontecimentos (historie événementielle), em prol de uma história das estruturas, ou seja, substituindo o tempo breve da história dos acontecimentos pelos processos de longa duração, outras formas de narrar a História foram surgindo, entre elas a micro-história e a micronarrativa; a primeira, baseada na redução da escala da observação, com focalização em um determinado acontecimento empírico e no estudo intensivo do material documental, e a segunda, na narração de uma história sobre as pessoas comuns no local em que estão instaladas. Assim, a literatura pode apropriar-se dos fatos históricos em pontos de vista diferenciados: o da “história vista de cima”, ou seja, numa ótica política, que privilegia o olhar do dominador, ou da “história vista de baixo”, que dá primazia à ótica dos subalternos; em uma perspectiva que pode ser macro ou microhistórica. A proposta deste artigo é refletir sobre a ficcionalização de um acontecimento ocorrido em Loudun, no século XVII, no romance Os demônios de Loudun, de Aldous Huxley (1986), e o modo como a estrutura da narrativa aproxima-se das estratégias narrativas da micro-história, apesar de a obra ter sido escrita em 1952, cerca de trinta anos antes do surgimento da coleção dirigida por Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, denominada Microstorie, publicada pela editora Einaudi, entre 1981 e 1988. 1 A narrativa ficcional da história e suas possibilidades Narrar a História tem sido um desafio e uma atração para os romancistas, que, apesar da licença criativa que a ficção lhes concede, são obrigados a empreender pesquisas que envolvem documentos históricos, dentre outras fontes, que lhes permitam não apenas construir o enredo de seus romances, mas também contextualizá-los condignamente. A literatura do século XX, especialmente a da segunda metade, nos oferece muitos exemplos de romances históricos, bem como narrativas que podem ser consideradas como pertencentes a um subgênero, denominado por Linda Hutcheon (1991) “metaficção historiográfica”. Claro está que há diferenças entre o romance histórico tradicional e a metaficção historiográfica, passando principalmente por questões que envolvem o reconhecimento textual do estatuto de ficção. O romance histórico surge no século XIX, segundo estudiosos do gênero, como Lukács (2011), com a publicação dos romances de Sir Walter Scott: Waverley, em 1814, e Ivanhoe, em 1820, entre outros. A narrativa de Scott foi inovadora no que diz respeito à forma e ao conteúdo da expressão literária tradicional de seu tempo, moldando o curso do romance histórico, disseminando o historicismo e influenciando o trabalho de outros escritores. Para Lukács (2011), uma das características fundamentais para a existência dos romances históricos é a utilização de dados verídicos para a constituição ambiente. _____________________________________________________________________ Revista MOARA, n.39, p.1-18, jan./jun. 2013, Estudos Literários 2 Shirley de Souza Gomes CARREIRA Tradicionalmente, eles representariam um processo apresentado por meio de um universo específico generalizante, tendo como pano de fundo um ambiente histórico totalmente reconstruído, em que a ação se desenvolveria num passado anterior ao presente do escritor, por meio de personagens que constituiriam tipos bem marcados, sínteses do geral, relegando, na maioria das vezes, às figuras históricas papeis secundários. A sua presença no texto serviria ao propósito de ajudar a compor ou contar a história e a situar a época focalizada, agindo de acordo com a mentalidade do seu tempo. A descrição detalhada de lugares e personagens seria uma estratégia para a obtenção de uma veracidade histórica. Em contraposição à visão tradicional de Lukács, Joseph Turner (apud MARINHO, 1999), estabelece três tipos de escrita histórica, objetivando a análise dos romances do século XX: os romances históricos documentados, que empregam personagens fictícias e reais; os romances históricos “disfarçados”, claramente construídos como uma recriação histórica, mescla de documento e invenção; e os romances históricos inventados, em que o narrador desempenha o papel de um historiador, fingindo estar relatando uma realidade extratextual. A metaficção historiográfica, por sua vez, tem por objetivo “reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história” (HUTCHEON, 1991, p. 147), revelando- o ao presente e impedindo-o de ser conclusivo e teleológico. Os romances pós- modernos, então, se apresentam como uma ruptura com o aspecto totalizante, que revela a imposição de sentido, presente nos romances históricos tradicionais. Paralelamente, a metaficção historiográfica expõe-se claramente como ficção: Com esse termo, refiro-me àqueles romances famosos e populares que, ao mesmo tempo, são intensamente autorreflexivos e mesmo assim, de maneira paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens históricos […] Na maior parte dos trabalhos de crítica sobre o pós-modernismo, é a narrativa – seja na literatura, na história ou na teoria – que tem constituído o principal foco de atenção. A metaficção historiográfica incorpora todos esses três domínios, ou seja, sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção como criações humanas (metaficção historiográfica) passa a ser base para seu repensar e sua reelaboração das formas e dos conteúdos do passado. (HUTCHEON, 1991, p. 21-22). Diferentemente do romance histórico tradicional, os protagonistas são os marginalizados, favorecidos por uma ótica “ex-cêntrica”, relegando às personagens marcadas no antigo modelo um papel que é visivelmente ironizado. A eles cabe uma narrativa de múltipla focalização, de modo a evidenciar a relativização e a precariedade das narrativas sobre o passado. O que dizer, no entanto, dos romances que efetivamente trazem a figura histórica para o primeiro plano, que se fixam de fato no acontecimento empírico, fazendo-se valer dos registros historiográficos, dos documentos, na construção da narrativa ficcional? Parece-nos haver uma lacuna na teoria sobre as narrativas ficcionais da história, particularmente entre a concepção do romance histórico tradicional e a metaficção historiográfica, que não parecem dar conta de todas as narrativas associadas ao gênero. _____________________________________________________________________ Revista MOARA, n.39, p.1-18, jan./jun. 2013, Estudos Literários 3 Shirley de Souza Gomes CARREIRA Na medida em que alguns romances ditos “históricos” aproximam-se dos relatos inerentes à micro-história e à micronarrativa, surge a necessidade de uma teorização que os privilegie. 2 A história como tema em Os demônios de Loudun A leitura de O queijo e os vermes, de Carlo Ginzburg (1987) torna perceptível o fato de que o processo de construção de alguns romances que abordam fatos históricos apresenta-se similar àquele da micro-história. Segundo Ginzburg (1987), o desânimo provocado pela pesquisa de fontes escritas, a partir da evidência da ligação de seus autores às classes dominantes, pode ser superado pela pesquisa dessas mesmas fontes em uma outra perspectiva: a de como esses registros podem fornecer dados sobre a opressão sofrida pelos subalternos. Pode- se dizer, assim, que “a micro-história opera com escala de observação reduzida, exploração exaustiva de fontes, descrição etnográfica e preocupação com a narrativa literária” (GUIMARÃES, 2003, p.317). Dedica-se a “temáticas ligadas ao cotidiano de comunidades específicas – referidas geográfica ou sociologicamente –, às situações- limite e às biografias ligadas à reconstituição de microcontextos ou dedicadas a personagens extremos, geralmente vultos anônimos, figuras que por certo passariam despercebidas na multidão” (GUIMARÃES, 2003, p. 317). Em O queijo e os vermes (1987), a pesquisa do historiador, que, a princípio, buscava informações sobre julgamentos de casos de bruxaria, o levou à história de um moleiro perseguido pela Inquisição no século XVI. Baseando-se principalmente nos escritos promovidos pela Inquisição, o autor nos concede uma visão privilegiada a respeito dos pensamentos e conceitos próprios estabelecidos pelo moleiro, também conhecido por Menocchio, e o posterior processo inquisitório que o condenou. Em Os demônios de Loudun, Aldous Huxley (1986) procede também a uma investigação histórica, a fim de construir o seu romance, que tem como tema a morte do Padre Urbain Grandier, em 18 de agosto de 1634, após ser julgado e sentenciado pela Inquisição em um processo em que era acusado de bruxaria. Se por um lado, não é possível dizer que Grandier fazia parte de um grupo de excluídos, como Menocchio, por outro, a sua história revela os bastidores de uma querela de natureza política, travestida de questão religiosa. Os absurdos relacionados ao processo que culminou com a condenação de Grandier foram o ponto de atração para o autor. 2.1 A história de Urbain Grandier Urbain Grandier nasceu em Bouère e, tendo estudado ciências com seu pai Pierre e seu tio Claude Grandier, que eram astrólogos e alquimistas, foi admitido, aos doze anos, no colégio Jesuita de Bordeaux, recebendo uma educação tradicional. Tinha, no entanto, o dom da oratória e muita facilidade no aprendizado de idiomas. Devido a essas habilidades, foi incitado por seus professores a praticar a pregação, a fim de aprimorar seus dons. Assim que tomou os votos, foi designado para a paróquia de Saint- Pierre, em Loudun. _____________________________________________________________________ Revista MOARA, n.39, p.1-18, jan./jun. 2013, Estudos Literários 4 Shirley de Souza Gomes CARREIRA Tal honraria suscitou críticas e inveja. Além disso, o padre Grandier possuía outros predicados invejáveis. A eloquência dos seus sermões tinha atraído à sua igreja grande parte das congregações de outras comunidades religiosas. Dono de uma beleza incomum e de uma inteligência singular, o que decerto teria sido responsável pelo seu brilho em uma cidade grande, como Paris, foi responsável por sua derrocada em Loudun. Um de seus mais ferozes opositores era La Rocheposay, o bispo de Poitiers. Grandier ignorava os votos de celibato, relacionando-se sexualmente com várias mulheres. Em 1632, quando as freiras do convento das Ursulinas apresentaram sintomas de uma histeria coletiva, então interpretada como possessão, o padre foi acusado de ter invocado demônios, Asmodeus e Zabulon, para que elas fossem forçadas a cometerem atos indecorosos com ele. Na noite de 12 de outubro, várias freiras, entre elas a Madre Superiora, foram atormentadas por espectros e visões aterradoras, sendo submetidas ao exorcismo pelo Cônego Mignon e seu assistente, Padre Barré. Os demônios foram expulsos de todas, com exceção da Madre Superiora e de outra religiosa, Irmã Claire (BRUCE, 2009) Tendo concluído que o caso delas não era apenas de possessão, mas envolvia uma força ainda maior, Mignon decidiu inquirir a entidade que as possuía, obtendo, assim, o nome de Grandier. A revelação espalhou-se, para contentamento de Mignon. O fato adquiriu proporções de escândalo e só foi momentaneamente contido graças à intervenção do Arcebispo de Bordeaux, amigo de Grandier. No entanto, após a chegada de Laubardemont, um oficial enviado por Richelieu, que, por ironia do destino, era parente da Madre Superiora, as crises recomeçaram. Obviamente, Laubardemont interessou-se pelos acontecimentos e Mignon não perdeu tempo, revelando-lhe que o responsável era um padre que recentemente havia satirizado Richelieu de tal modo que o tornara alvo do ridículo perante toda a corte. As notícias tiveram o efeito esperado e Richelieu ordenou a prisão de Grandier, conferindo a Laubardemont poderes para inquiri-lo. Grandier teve seus bens confiscados e foi aprisionado em uma das propriedades de Mignon, começando, assim, o seu processo de julgamento. As testemunhas que tentavam favorecer Grandier eram ameaçadas, enquanto que as que depunham contra ele eram fartamente recompensadas. Durante os depoimentos, muitas provas falsas de possessão demoníaca induzida por Grandier foram forjadas; chegando ao cúmulo de, como registra Bruce (2009), no momento em que o demônio que “possuía” a Madre Superiora cumpria a promessa de levantar o chapéu de Mignon, alguns expectadores descrentes terem surpreendido o “autor do feito”, ou seja, um homem, ao invés do diabo, manipulando uma corda com um anzol na ponta. Ao ser descoberto, o homem fugiu, impossibilitando a comprovação da inocência de Grandier. O fato é que, anteriormente, em 5 de junho de 1630, Grandier enfrentara uma acusação e julgamento por comportamento indecoroso, que resultara em punição, e seu passado depunha contra ele. Sessenta testemunhas fizeram acusações de adultério, sacrilégio e outros crimes cometidos mesmo em recintos sagrados, dentro da Igreja. O processo de Urbain Grandier foi marcado por contradições. É fato que várias religiosas retiraram as denúncias e revelaram terem sido “instruídas” por superiores, mas de nada adiantou. O _____________________________________________________________________ Revista MOARA, n.39, p.1-18, jan./jun. 2013, Estudos Literários 5 Shirley de Souza Gomes CARREIRA réu afirmou sua inocência, mesmo submetido a torturas, e manteve esta posição até o momento final, na fogueira. Nos meses seguintes à morte de Grandier, vários de seus acusadores morreram vitimados por doenças misteriosas e as freiras continuaram a padecer de convulsões. No processo jurídico-eclesiástico contra Grandier, consta como prova conclusiva um pacto, ou seja, um documento encontrado entre os papéis do réu devassados depois de sua prisão, pretensamente assinado com sangue por ele e pelo demônio Asmodeus. O pacto (figura 1) dizia: Meu Senhor e Mestre, tenho-o como meu Deus; prometo servi-lo enquanto viver e, desde esta hora, renuncio a todos os outros deuses e Jesus Cristo e Maria e todos os Santos do Céu e à Igreja Católica Apostólica Romana e a todo o bem e preces que possam ser feitos por mim. Prometo adorá-lo e prestar-lhe homenagem pelo menos três vezes por dia e fazer o máximo de mal possível e levar ao mal tantas pessoas quanto possível; renuncio de coração ao Cristo, ao batismo e a todos os méritos de Jesus Cristo; no caso de desejar mudar, dar-lhe-ei meu corpo e minha alma e minha vida como garantia, tendo entregue tudo isso para sempre sem qualquer vontade de arrependimento. Assinado: Urbain Grandier, com seu sangue. (GOLSDMISTH, 1887, p. 6-7). Grandier, mesmo sofrendo cruel tortura, jamais confessou ser o responsável pelos acontecimentos em Loudun. O caso das freiras de Loudun despertou controvérsias e alguns estudiosos do caso, dentre eles Huxley (1986), verificaram ser, no mínimo, curioso, o fato de que as denúncias só foram feitas após Grandier ter se recusado a assumir a tarefa de diretor espiritual do convento. Figura 1 – Pacto de Grandier _____________________________________________________________________ Revista MOARA, n.39, p.1-18, jan./jun. 2013, Estudos Literários 6 Shirley de Souza Gomes CARREIRA Historiadores modernos conseguiram provar que a caligrafia não era de Grandier, mas de Jeanne des Anges, a Madre Superiora do convento das Ursulinas. 3. A ficção reconta a história A extensa pesquisa histórica realizada por Huxley (1986) sobre o caso dos demônios de Loudun é descrita em uma bibliografia ao fim do romance, e dentre as fontes mencionadas encontram-se: Historie des diables de Loudon (1693), “Urbain Grandier”, ensaio de Jules Michelet, Urbain Grandier at lêspossédées de Loudun (1880), Documents pour servir à l’historie médicale des possédées de Loudun (1876), Soeur Jeanne des anges, autobiographie d’une histérique possédée (1886), a única edição da narrativa feita pela prioresa em 1644, que também contém inúmeras cartas escritas por ela para o padre Saint-Jure, e Lettres spirituelles du P. Jean-Joseph Surin (1926), que contém a autobiografia do padre Surin. Diferentemente de outros relatos romanceados de fatos históricos, Os demônios de Loudun apresenta uma estrutura híbrida, em que os capítulos que narram a história, que culmina com a morte de Urbain Grandier, são intercalados com digressões de um narrador do século XX, que se debruça crítica e reflexivamente sobre o passado e o narra a partir de fontes documentais que oferecem diferentes versões para o acontecimento narrado. Chartier (1994, p. 2) afirma que “cada micro-história pretende reconstruir, a partir de uma situação particular, normal porque excepcional, a maneira como os indivíduos produzem o meio social, por meio de alianças e confrontos, através das dependências que os ligam ou dos conflitos que os opõem”. Assim como Ginszburg (1987), que, no prefácio da edição italiana de O queijo e os vermes, afirma a possibilidade de obter um quadro rico das ideias, aspirações e sentimentos de Domenico Scandella, o Menochio, por meio da leitura dos dois processos abertos contra ele, de documentos e textos escritos pelo próprio, Huxley (1986) recria diante do leitor a vida de Urbain Grandier, suas crenças e ações, a partir da leitura de documentos e obras sobre o julgamento, buscando analisá-los com o olhar do homem do século XX. O relato de Huxley (1986) expõe os bastidores da Inquisição e a sua reflexão sobre a histeria coletiva que acometeu as Ursulinas. Quando se reporta ao século XVII, o narrador assume a voz do historiador: Grandier viveu no cinzento alvorecer do período que poderia ser chamado de Idade da Decência. Durante toda a Idade Média e no início da Moderna, o abismo entre a doutrina católica oficial e a prática efetiva dos sacerdotes fora enorme e, a julgar pelas aparências, intransponível. É difícil encontrar um escritor da Idade Média ou da Renascença que não tenha como certo que a maioria dos membros que compõem o clero, do mais poderoso prelado ao mais humilde frade é profundamente libertina. A corrupção eclesiástica levou à Reforma, que, por sua vez, gerou a Contra-Reforma. (HUXLEY, 1986, p. 12). O tom da narrativa assemelha-se bastante ao do livro de Ginzburg (1987, p.46): _____________________________________________________________________ Revista MOARA, n.39, p.1-18, jan./jun. 2013, Estudos Literários 7 Shirley de Souza Gomes CARREIRA Dois grandes eventos históricos tornaram possível um caso como o de Menocchio: a invenção da imprensa e a Reforma. A imprensa lhe permitiu confrontar os livros com a tradição oral em que havia crescido e lhe forneceu as palavras para organizar o amontoado de ideias e fantasias que nele conviviam. A Reforma lhe deu audácia para comunicar o que pensava ao padre do vilarejo, conterrâneos, inquisidores – mesmo não tendo conseguido dizer tudo diante do papa, dos cardeais e dos príncipes, como queria. As rupturas gigantescas determinadas pelo fim do monopólio dos letrados sobre a cultura escrita e do monopólio dos clérigos sobre as questões religiosas haviam criado uma situação nova, potencialmente explosiva. Mas a convergência entre as aspirações de uma parte da alta cultura e as da cultura popular já tinha sido declarada de maneira definitiva mais de meio século antes do processo de Menocchio – quando Lutero condenara com ferocidade os camponeses em revolta e suas reivindicações. No romance de Huxley (1986), os comentários do narrador sobre os fatos históricos são, muitas vezes, acompanhados de notas de rodapé, com indicação das fontes: “As citações que se seguem foram extraídas do resumo de H. C. Lea sobre a situação da Igreja francesa depois do Concílio de Trento” (HUXLEY, 1986, p. 13, nota de rodapé). A exposição das fontes documentais também é feita na obra de Ginzburg (1987, p.11): O queijo e os vermes pretende ser uma história, bem como um escrito histórico. Dirige-se, portanto, ao leitor comum e ao especialista. Provavelmente apenas o último lerá as notas, que pus de propósito no fim do livro, sem referências numéricas, para não atravancar a narrativa. Em Os demônios de Loudun (1986), a ordem cronológica dos acontecimentos na diegese é interrompida, por vezes, pelo narrador moderno, que antecipa os eventos e os compara não apenas a outros do mundo contemporâneo, mas também menciona obras da literatura à medida que tece suas conjeturas sobre os eventos narrados, como nesta referência a um dos antagonistas de Grandier, o barão de Laubardemont: “Em aparência e modos, o barão tomava como modelo, duzentos e tantos anos antes de seu surgimento, o Uriah Heep de Dickens.” (HUXLEY, 1986, p. 65). Semelhantemente, Ginzburg (1987) narra tecendo reflexões e conexões com obras seminais como Histoire de la folie, de Foucault, e L’ oeuvre de Prançois Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance, de Bakhtin: Mas o limite do belíssimo livro de Bakhtin talvez seja outro: os protagonistas da cultura popular que ele tentou descrever – camponeses, artesãos – nos falam quase só através das palavras de Rabelais. É justamente a riqueza das perspectivas de pesquisa indicadas por Bakhtin que nos faz desejar, ao contrário, uma sondagem direta, sem intermediários, do mundo popular. (GINZBURG, 1987, p. 22) Para Ginzburg (1987, p.13), “entre a cultura das classes dominantes e a das classes subalternas existiu, na Europa préindustrial, um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo para cima, bem como de cima para baixo [...]”, que é o resumo do que foi proposto por Mikhail Bakhtin. _____________________________________________________________________ Revista MOARA, n.39, p.1-18, jan./jun. 2013, Estudos Literários 8 Shirley de Souza Gomes CARREIRA O trânsito de valores entre as classes é abordado por Huxley (1986, p. 18) em sua narrativa: Tal era, então, a espécie de mundo no qual o novo pároco fora criado – um mundo no qual os tradicionais tabus sexuais pouca influência exerciam sobre a maioria ignorante e necessitada, nem eram de demasiada importância para seus superiores; um mundo onde as duquesas diziam piadas como a ama de Julita, e a palestra das grandes damas era uma tosca e enfadonha imitação da Matrona de Bath. Ao narrar como Jean-Jacques Bouchard, um contemporâneo de Grandier, seduz e corrompe uma jovem criada de quarto de sua mãe, o narrador de Huxley (1986, p. 15) manifesta a sua ironia: A moça, na primeira vez em que deu por ela, era piedosa e quase hostil em sua castidade. Com a perseverança e a perspicácia de um Pavlov, Bouchard recondicionou de tal forma aquele produto da fé irrestrita, que ela se tornou finalmente uma devota da filosofia natural, tão pronta a ser observada e submetida a experiências quanto a empreender pesquisas por iniciativa própria. Urbain Grandier é retratado como um jovem de boa aparência, dotado do dom da retórica e extremamente sedutor. Desde o princípio, a opinião pública a respeito do novo pároco estava nitidamente dividida. A maioria do sexo frágil, mais devoto, aprovou-o. O último cura fora um decrépito João-ninguém. Seu sucessor era um homem no vigor da mocidade, alto, forte, com um ar de sóbria autoridade, e até mesmo (segundo um contemporâneo) majestático. Seus olhos eram grandes e negros, e sob o seu barrete de clérigo os abundantes cabelos eram pretos e ondulados; a fronte, alta; o nariz, aquilino; os lábios, rubros, cheios e expressivos. Uma elegante barba à Van Dyck adornava-lhe o queixo, e sobre o lábio superior o pároco usava um fino bigode [...] Para os olhos pós-faustianos, seu retrato sugeria Mefistófeles em trajes clericais, mais robusto, amistoso e só um pouco menos inteligente. (HUXLEY, 1986, p. 12) O déficit de inteligência é explicado pelo narrador como uma extrema dificuldade de refrear a vaidade e o temperamento explosivo: “Em vez de tentar chegar a um acordo com seus inimigos, o pároco empenhava-se por todos os meios a seu alcance em exacerbar suas hostilidades. E sua aptidão para isso atingia quase a genialidade”. (HUXLEY, 1986, p. 240). Guardadas as devidas proporções, Grandier promove um embate com a Igreja que é, de certa forma, análogo ao de Menocchio. Este, em sua tentativa de formular ideias pessoais e um confuso pensamento teológico deformava involuntariamente os livros que lia: _____________________________________________________________________ Revista MOARA, n.39, p.1-18, jan./jun. 2013, Estudos Literários 9 Shirley de Souza Gomes CARREIRA Foi o choque entre a página impressa e a cultura oral, da qual era depositário, que induziu Menocchio a formular – para si mesmo em primeiro lugar, depois aos seus concidadãos e, por fim aos juízes – as ‘opiniões [...] [que] saíram da sua própria cabeça’ (GINZBURG, 1987, p. 89). A ousadia de Grandier era de outra ordem, pautada na ambição do poder. Suas atitudes não divergiam do padrão da época, em que a distância entre a teoria e o comportamento manifesto era enorme no que diz respeito à religião, porém deleitava-se em desafiar os que estavam ao seu redor. Os registros, cartas e documentos da época permitiram a Huxley (1986, p. 23) recuperar detalhes desse embate. Quase imediatamente depois de sua chegada em Loudun, Grandier envolveu-se em uma série de rixas inconvenientes, mas em sua opinião profundamente divertidas [...] por uma questão de prudência elementar, não menos que por princípios cristãos, o pároco deveria ter-se empenhado ao máximo para reconciliar-se com os inimigos que o cercavam. Contudo, apesar de todos os anos transcorridos com os jesuítas, Grandier estava ainda muito longe de ser um cristão; e, a despeito de todos os bons conselhos que recebia de D’Armanac e seus outros amigos, era incapaz de agir com prudência em situações onde estavam em causa suas paixões. Ronaldo Vainfas (2002, p. 103), em Os protagonistas anônimos da história: micro- história, afirma que “a microhistória [...] apega-se obsessivamente às mínimas evidências que a documentação pode fornecer para dar vida a personagens esquecidos e desvelar enredos e sociedades ocultados pela história geral”. É exatamente essa a perspectiva de Huxley (1986) em Os demônios de Loudun. À medida que a narração prossegue, as histórias pessoais de outras personagens históricas vão se entrecruzando com a de Grandier. Assim, o romance aborda as biografias de Jean-Joseph Surin, padre que foi designado para tomar parte nos exorcismos das freiras ursulinas, e de Jeanne des Anges, a Madre Superiora do convento. Ao retratar Grandier e Surin como produtos diferentes de um mesmo contexto social, Huxley (1986) focaliza dois lados de um mesmo desejo de autotranscendência. Em Grandier, ele se manifestava como uma necessidade constante de autoafirmação; em Surin, como a busca da perfeição cristã. Enquanto Grandier granjeava muitos inimigos, dentre eles aquele que um dia viria a ser o responsável pela sua derrocada, o Cardeal Richelieu, Surin lutava com as tentações da carne, buscando superar-se. Jeanne é descrita como uma mulher de corpo disforme, quase uma anã, que apesar de filha de um barão, portanto, privilegiada socialmente, fomentava um ressentimento crônico devido ao seu defeito físico. Era também uma mulher perspicaz e, quando foi enviada ao convento, soube tirar partido da situação, escondendo a sua natureza amarga e dada à zombaria como uma forma de agredir o mundo em torno. Assumindo o papel de religiosa dedicada, trabalhadora e devota, acabou por convencer a prioresa do convento a recomendá-la como sucessora. Nela, a sensação de poder era a única forma de autotranscendência. _____________________________________________________________________ Revista MOARA, n.39, p.1-18, jan./jun. 2013, Estudos Literários 10
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