DOI: 10.12818/P.0304-2340.2015v67p653 A HEGEMONIA DA POLÍTICA – UMA ANÁLISE A PARTIR DE HANNAH ARENDT E CARL SCHMITT THE POLITICAL HEGEMONY - AN ANALYSIS FROM HANNAH ARENDT AND CARL SCHMITT Sarah Maria LinhareS de araújo* RESUMO ABSTRACT O ensaio tem o intuito de, a partir da releitura The essay is intended to, from the das teorias de Hannah Arendt e Carl Schmitt reinterpretation of the theories of Hannah sobre o seu conceito de política, trazer Arendt and Carl Schmitt on the concept of reflexão para alguns problemas vividos na the political, bring reflection to some problems atualidade. Seja a partir da falta de delimitação experienced today. Either from the lack of entre o espaço público e privado vivido, distinction between lived public and private conceito retirado da filósofa política Hannah space, concept obtained from the political Arendt; seja a partir da ausência de conflito, philosopher Hannah Arendt; either from the importante aspecto trazido como essencial absence of conflict, important aspect brought para a vivência da política em Carl Schmitt, as essential to the political experience in o que consequentemente traz processos de Carl Schmitt, which consequently brings homogeneização no seio da política sem homogenization processes within the politics a formação de uma consciência crítica e without the formation of a critical conscience permanentes “estados de exceção”. O ensaio and permanent “states of exception”. traz como pano de fundo alguns problemas da This essay brings the background of some política brasileira. Brazilian’s political problems. PALAVRAS-CHAVE: Política. Hannah Arendt. KEYWORDS: Politics. Hannah Arendt. Carl Carl Schmitt. Crise. Hegemonia. Schmitt. Crisis. Hegemony. 1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES A política é instrumento de debate desde a época da Grécia Antiga. Ocorre que, nos últimos anos, observa-se que a política * Professora na Faculdade Dom Bosco. Doutora em Direito do Estado pela UFPR, com período sanduíche na Universidad de Granada. Mestre em Direito do Estado pela UFPR. Especialista em Direito Tributário pela Unicuritiba. Email: [email protected] Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 653 - 675, jul./dez. 2015 653 A HEGEMONIA DA POLÍTICA passa por uma crescente crise, principalmente em relação à sua legitimidade. No Brasil, há diversas vicissitudes no sistema eleitoral, refletindo diretamente na vivência prática da política. LUÍS ROBERTO BARROSO destaca alguns problemas evidentes, como o sistema de governo ter um formato hiper-presidencialista de tradição latino-americana; o sistema eleitoral ser uma usina de problemas, pois em geral seu custo é elevadíssimo e o eleitor não sabe em quem está votando; por fim, o sistema partidário possui muitos partidos de baixa consistência ideológica e nenhuma identificação popular1. Logo, se clama nos últimos tempos por uma reforma política urgente, onde cientistas políticos tentam encontrar a raiz do problema. Para alguns, a crise se encontraria na fase do financiamento, onde o dinheiro de entes particulares não deveriam ser utilizados, pois isso geraria um tráfico de influências e futuros processos de corrupção. Ocorre que para se eleger os membros do Executivo e do Legislativo o custo é elevadíssimo2. Em consequência de tal verificação fática, é frequente observar que as pessoas não acreditam ou não confiam nos seus representantes políticos. Desta forma, começam os questionamentos: O que aconteceu com a população, sendo que ela própria elege seus representantes, mas não confia na sua própria escolha? O projeto de democracia da modernidade não funcionou?3 1 BARROSO, Luís Roberto. Reforma política no Brasil: os consensos possíveis e o caminho do meio, p. 2-3, disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/ noticiaNoticiaStf/anexo/Reforma_Politica_Texto_em_portugues_Versao_final.pdf>, acesso em: 16/06/2015. 2 Id ibid. 3 “A originalidade da perspectiva teórica arendtiana revela-se claramente em suas críticas às difíceis condições que a modernidade e o mundo contemporâneo reservaram para o exercício da política em suas determinações democráticas essenciais, assunto que se encontra no centro do presente artigo. Para Arendt, o traço marcante da modernidade é o esquecimento da política, seja em função do crescente emprego dos meios tecnológicos da violência, aspecto em relação ao qual os totalitarismos de esquerda e de direita constituem instâncias - limite, seja por causa da transformação estrutural da esfera pública em mero espaço de trocas econômicas” – DUARTE, André. Hannah Arendt e a modernidade: esquecimento e redescoberta da política. In: CORREIA, Adriano. Transpondo o abismo: Hannah Arendt entre a filosofia e a 654 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 653 - 675, jul./dez. 2015 Sarah Maria Linhares de Araújo Assim, para tentar solucionar alguns dos problemas da atualidade no que toca à política, é necessário compreender as mu- tações, pelas quais a sociedade passou nos últimos tempos, e tentar entender os reflexos daquelas no âmbito da ação política. O retorno à ação da política é necessária para tentar suprir a hegemonia política, que se vive na atualidade, sendo que, quando a exceção se ocupa de preencher os espaços, vive-se algo extremamente perigoso, conforme se observará no discorrer no presente ensaio, uma vez que a ausência de consciência crítica por parte da sociedade acarreta a instalação de movimentos hegemônicos por exemplo. O presente trabalho tomará como marco teórico a teoria política de HANNAH ARENDT e CARL SCHMITT, tendo como objeto de interlocução trabalhos de alguns críticos no que se refere aos dois filósofos. A partir da interlocução dos referidos filósofos políticos, poderemos observar que a ausência de um marco de interesse público apresenta-se como um dos principais problemas vividos em nosso país. 2. A POLÍTICA SEGUNDO A VISÃO DE HANNAH ARENDT HANNAH ARENDT4 em sua obra “A condição humana”5 faz um estudo sobre a democracia no período da Grécia Antiga, política. Rio da Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 54-55. Ademais, vide a nota trazida por CHANTAL MOUFFE: “ (...) a característica fundamental da modernidade é, indubitavelmente, o advento da revolução democrática”. - MOUFFE, Chantal. O regresso do político. Tradução de: SIMÕES, Ana Cecília. Lisbora: Gradiva, 1996, p. 24. 4 “De todas as atividades necessárias e presentes nas comunidades humanas, somente duas eram consideradas políticas e constituintes do que Aristóteles chamava de ‘bios politikos’: a ação (‘praxis) e o discurso (‘lexis’), dos quais surge a esfera dos negócios humanos (‘taton anthropon pragmata’, como chamava Platão), que exclui estritamente tudo o que seja apenas necessário e útil”. – ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de: RAPOSO, Roberto. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 34. 5 “Hannah Arendt fez da ‘condição humana’ o elemento magno de sua reflexão”. – GIACOIA JUNIOR, Oswaldo. Prefácio. In: CORREIA, Adriano (coord). Transpondo o abismo: Hannah Arendt entre a filosofia e a política. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. V. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 653 - 675, jul./dez. 2015 655 A HEGEMONIA DA POLÍTICA demonstrando que a ação é a atividade da política e que o homem é um animal, evidentemente, político na concepção aristotélica. Na Grécia, havia uma delimitação concreta entre o espaço público e o espaço privado, sendo que, na arena política, deveriam tão somente ser debatidas questões públicas, ou seja, que estivessem relacionadas aos interesses da coletividade6. Não poderia, assim, a política ser instrumento de interesses pessoais ou egoísticos, mas sim um instrumento voltado ao bem comum e, também, não deveriam ser debatidos assuntos do âmbito da esfera privada. Relacionadas as primeiras considerações com o contexto atual, há algum tempo, esqueceu-se de que a política vem atender ao interesse da coletividade, e percebe-se, no Brasil, nos últimos tempos, um abandono completo do sentimento de coisa pública, fundamento da República, para tornar a pátria uma espécie de escritório de interesses pessoais. No processo eleitoral, há a existência de um Fundo Partidário, que é um fundo de recursos públicos que deve ser utilizado para o processo eleitoral, e conforme alerta LUÍS ROBERTO BARROSO7: 6 “Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política não apenas difere mas é diretamente oposta a essa associação natural cujo centro é constituído pela casa (‘oikia’) e pela família. O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera, «além de sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu ‘bios politikos’. Agora cada cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma grande diferença em sua vida entre aquele lhe é próprio (‘idion’) e o que é comum (‘koinon’)»”. – ARENDT, Hannah. “A condição ...”, p. 33. “Entre o espaço público e o privado havia um abismo, e o próprio acesso ao espaço da liberdade pressupunha a desigualdade reinante no espaço doméstico, tanto quanto a violência que regia aquelas relações humanas destinadas a lidar com as necessidades vitais. – DUARTE, André. O pensamento à sombra da ruptura: política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 211-212. 7 Lei 9.096, de 19 de setembro de 1995: “Art. 38. O Fundo Especial de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário) é constituído por: I - multas e penalidades pecuniárias aplicadas nos termos do Código Eleitoral e leis conexas; II - recursos financeiros que lhe forem destinados por lei, em caráter permanente ou eventual; III - doações de pessoa física ou jurídica, efetuadas por intermédio de depósitos bancários diretamente na conta do Fundo Partidário; IV - dotações orçamentárias da União em valor nunca inferior, cada ano, ao número de eleitores inscritos em 31 de dezembro do ano anterior ao da proposta orçamentária, 656 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 653 - 675, jul./dez. 2015 Sarah Maria Linhares de Araújo O dinheiro do Fundo é frequentemente apropriado privadamente e o tempo de televisão é negociado com outros partidos maiores, em coligações oportunistas e não em função de ideias. A política, nesse modelo, afasta-se do interesse público e vira um negócio privado8. Ultrapassado o contexto atual e retornando à filosofia de Hannah Arendt, percebe-se que o homem, na Grécia Antiga, para que pudesse participar do processo político, deveria ter as condições materiais suficientes para a sua sobrevivência, além de uma estrutura familiar estável, enfim, deveria ter supridas as necessidades básicas em sua vida privada, a fim de que a falta de condições materiais suficientes, não pudesse interferir na tomada de decisões políticas, que seriam sempre de ordem pública. Contudo, o que se percebe no período da modernidade9 é o desaparecimento da limitação entre o espaço público e o espaço privado10, trazendo, assim, como consequência, em certa medida, a deturpação do que é, realmente, o interesse coletivo e da ação política11. Um perigo, por exemplo, para a ascensão do multiplicados por trinta e cinco centavos de real, em valores de agosto de 1995.” 8 BARROSO, Luís Roberto. “Reforma política …”, p. 3. 9 Alguns filósofos defendem a existência de uma condição política pós-moderna, como é o caso de AGNES HELLER e FERENC FEHÉR: “A condição política pós-moderna se baseia na aceitação da pluralidade de culturas e discursos. O pluralismo (de vários tipos) está implícito na pós-modernidade como projeto. O colapso da grande narrativa é um convite direto à coabitação entre várias pequenas narrativas (locais, culturais, étnicas, religiosas, ‘ideológicas’). – HELLER, Agnes. FEHÉR, Ferenc. A condição política pós-moderna. Tradução de: SANTARRITA, Marcos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998, p. 16. 10 “O desaparecimento do abismo que os antigos tinham que transpor diariamente a fim de transcender a estreita esfera da família e «ascender» à esfera política é fenômeno essencialmente moderno. Esse abismo entre o privado e o público ainda existia de certa forma na Idade Média, embora houvesse perdido muito de sua importância e mudado inteiramente de localização” – ARENDT, Hannah. “A condição ...”, p. 43. 11 “O ‘público’ foi despojado de seus conteúdos diferenciais e ficou sem agenda pró- pria – não passa agora de um aglomerado de problemas e preocupações privados. É uma colcha de retalhos de anseios pessoais por ajuda para dar sentido a emoções e estados de espíritos privados ainda inarticulados, por instruções sobre como falar dessas emoções em linguagem que os outros entendam e por conselho sobre como lidar com a série de experiências que os indivíduos acham tão difíceis de encarar. A Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 653 - 675, jul./dez. 2015 657 A HEGEMONIA DA POLÍTICA totalitarismo12. O que se pode concluir, em um primeiro momento, é que o desaparecimento da esfera propriamente pública reduz à política ao seu aspecto, meramente, técnico. O que se vive na atualidade, por exemplo, é uma pseudo esfera pública. Além disso, com a inserção de assuntos de interesse privado na esfera pública, o que é, realmente, importante para a vida da população acaba sendo esquecido e há, então, uma deturpação do que é o interesse coletivo e uma modificação da função essencial da política: a busca pelo bem comum. Outro fator importante do fenômeno moderno é descrito por ENRIQUE SERRANO GÓMEZ13, ao tecer comentários à teoria política de HANNAH ARENDT, pois a filósofa política percebe a grande ascensão do mercado, que deturpa em muitos aspectos a política. Contudo, a filósofa política defende que não se pode eliminar o mercado como mecanismo de integração social, tampouco aceita uma sociedade livre de conflitos. HANNAH ARENDT, segundo a visão de ENRIQUE SERRANO GÓMEZ14, defende que é necessário estabelecer certos limites ao mercado para garantir a sobrevivência da esfera pública e, com ela, da política, em sentido estrito. A presença do mercado é inevitável, não se pode ter lista de ‘questões públicas’ não difere da de ‘questões pessoais’ nem aquela lista é mais rica que ‘a soma de suas parcelas’”. – BAUMAN, Zygmunt. Em busca da política. Tradução de: PENCHEL, Marcus. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 71. 12 ANDRÉ ROCHA descreve as características, que conduziram o totalitarismo no regime soviético: “Quais as características que conduziram o regime soviético ao totalitarismo? 1. Burocratização do poder; 2. Acirramento das desigualdades sociais; 3. Direcionamento do sistema policial para a repressão; 4. Campos de concentração [Gulag] que instituíram, sob nova forma, o trabalho forçado, ou seja, a alienação econômica; 5. Controle do imaginário político pelos meios de comunicação de massa: redução da consciência política dos cidadãos ao culto da personalidade de Stalin”. Dialética e democracia. In: LEFORT, Claude. A invenção democrática: os limites da dominação totalitária. Tradução de: LOUREIRO, Isabel; LOUREIRO, Maria Leonor F.R. Belo Horizonte: Autêntica, 2011, p. 46. 13 GÓMEZ, Enrique Serrano. Consenso y conflicto - Schmitt, Arendt y la definición de lo político. México: Centro de Estudios de Política Comparada, AC, 1998, p. 103. 14 Id ibid. 658 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 653 - 675, jul./dez. 2015 Sarah Maria Linhares de Araújo uma postura ingênua, mas limites são importantes, conforme acentua LUÍS ROBERTO BARROSO, pois eles devem trazer “(...) transparência e accountability também para a relação entre dinheiro e política”15. O que se percebe, também, nos últimos tempos é que “Ao observar que o Estado abarca a economia, sugere que a distinção do político e do econômico se apagou; (...)”16. A partir do momento em que não há uma linha divisória evidente entre o político e o econômico, problemas começam a surgir. Além disso, com o crescimento cada vez maior da dimensão do mercado – fenômeno econômico – e a sua penetração na vida pública, a sociedade transforma-se cada vez mais e mais em uma sociedade de massa. Os cidadãos não podem ser transformados em meros consumidores, pois se assim fosse, haveria a perda da chamada consciência crítica e da própria esfera de ação, o que traria consequências desastrosas para o bom encaminhamento da política17. Caso haja tal modificação, outro fenômeno que se constata, que advém do mercado, é a própria massificação da sociedade, que, também, destrói a existência do chamado “espaço público”18. Para HANNAH ARENDT, portanto, o totalitarismo é consequência extrema da centralização do poder político e do isolamento dos indivíduos, tendências inerentes à modernização, que leva à chamada “sociedade de massas”19. 15 BARROSO, Luís Roberto. “Reforma política …”, p. 4. 16 LEFORT, Claude. “A invenção democrática: ...”, p. 89. 17 “O que se segue do argumento acima é que a passagem para o estágio final da modernidade ou para a condição pós-moderna não produziu maior liberdade individual – não no sentido de maior influência na composição da agenda de opções ou de maior capacidade de negociar o código de escolha. Apenas transformou o indivíduo de cidadão político em consumidor de mercado”. – BAUMAN, Zygmunt. “Em busca ...”, p. 84. 18 GÓMEZ, Enrique Serrano. “Consenso y conflicto ...”, p. 105. 19 Id ibid. Outro fato a ser destacado é que: “É muito perturbador o fato de o regime totalitário, malgrado o seu caráter evidentemente criminoso, contar com o apoio das massas. Embora muitos especialistas neguem-se a aceitar essa situação, preferindo ver nela o resultado da força da máquina da propaganda e de lavagem cerebral, a publicação, Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 653 - 675, jul./dez. 2015 659 A HEGEMONIA DA POLÍTICA Fazendo um paralelo com a realidade atual, percebe-se no eleitorado uma falta de consciência crítica e também de filiação ideológica, refletindo o fenômeno da massificação da maneira de agir da sociedade. Ainda no que toca à sociedade de massas e à lógica do totalitarismo, o que se pode perceber é que “Nada caracteriza melhor os movimentos totalitários em geral – e principalmente a fama de que desfrutam os seus líderes – do que a surpreendente facilidade com que são substituídos”20. Quando há uma troca de líderes sem o questionamento da população, o que se percebe é que a ausência de capacidade crítica e a própria ausência de conflitos podem ocasionar uma lógica totalitarista. A falta de questionamento e a indiferença política em uma sociedade de massas é algo presente em sociedades, que tiveram a experiência do totalitarismo21. A apatia política é um fenômeno perigoso para a ascensão de movimentos totalitários, que necessita, por sua vez, de tal característica para que consiga se instaurar em uma sociedade de massas22. em 1965, dos relatórios, originalmente sigilosos, das pesquisas de opinião pública alemã dos anos 1939-44, realizadas então pelos serviços secretos da SS (‘Meldungen aus dem Reich Auswahl aus den Geheimen Lageberichten des Sicherheitsdienstes der S.S. 1939-1945 [Relatórios do Reich. Seleção dos relatórios sigilosos colhidos pelo Serviço de Segurança da SS], Neuwied & Berlin, 1965), demonstra que a população alemã estava notavelmente bem informada sobre o que acontecia com os judeus ou sobre a preparação do ataque contra a Rússia, sem que com isso se reduzisse o apoio dado ao regime”. – ARENDT, Hannah. As origens do totalitarismo. Tradução de: RAPOSO, Roberto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989, p. 339. 20 ARENDT, Hannah. “As origens ...”, p. 355. 21 “Além disso, mesmo em ‘As origens do totalitarismo’ a sua desconfiança crítica em relação ao presente e à modernidade já se fazia notar, particularmente em sua crítica ao espraiamento das massas constituídas pelo processo de isolamento e atomização dos indivíduos, o qual torna impossível a ação política. (...) (...) O traço que melhor caracteriza as massas é a sua desarticulação e desinteresse pelo mundo comum e por si mesmas, isto é, a perda do ‘interesse comum’ e do ‘senso comum’, pois já não têm ‘entre si’ (‘inter-est’) nada que possa relacioná-las”. – DUARTE, André. “Hannah Arendt e a modernidade ...”, p. 62. 22 “O termo massa só se aplica quando lidamos com pessoas que, simplesmente devido ao seu número, ou à sua indiferença, ou a uma mistura de ambos, não se podem integrar 660 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 653 - 675, jul./dez. 2015 Sarah Maria Linhares de Araújo Nesse sentido, a modernização e a perda do espaço público representam um perigo à existência da política e, conseqüentemente, da própria democracia, trazendo, em diversos momentos, a violência e a tomada de decisões de modo arbitrário. A violência, por sua vez, pode ser desencadeada pela tentativa de reduzir o conflito político a um conflito econômico23. A violência, também, pode ser utilizada como meio de reduzir o conflito e acabar desencadeando um processo totalitário: A força das instituições democráticas não está na neutralização dos conflitos pela violência: a neutralização dos conflitos e a anulação da espontaneidade das movimentações sociais é o triunfo do totalitarismo. A força das instituições democráticas está em possibilitar a mediação política para os conflitos econômicos e sociais.24 A política seria, assim, um meio de mediação dos conflitos, mas eles continuariam sempre a existir, pois a base da real democracia é o dissenso. Além disso, HANNAH ARENDT25 enxerga a política como um instrumento da liberdade, pois aquela é a capacidade de atuar dentro das relações sociais, que contornam a esfera pública. Neste sentido, a violência seria o fracasso da política, “As armas e a luta, entretanto, pertencem à atividade da violência, e a violência, distinguindo-se do poder, é muda; a violência tem início onde numa organização baseada no interesse comum, seja partido político, organização profissional ou sindicato de trabalhadores. Potencialmente, as massas existem em qualquer país e constituem a maioria das pessoas neutras e politicamente indiferentes, que nunca se filiam a um partido e raramente exercem o poder de voto”. ARENDT, Hannah. “As origens ...”, p. 361. 23 GÓMEZ, Enrique Serrano. “Consenso y conflicto ...”, p. 107. 24 ROCHA, André. “Dialética e democracia ...”, p. 53. 25 “Para a questão sobre o sentido da política há uma resposta tão simples e conclusiva em si mesma que se poderia pensar que as outras respostas são totalmente desnecessárias. A resposta é a seguinte: o sentido da política é a liberdade”. – ARENDT, Hannah. A dignidade da política: ensaios e conferências. ABRANCHES, Antônio (organizador). Tradução de: MARTINS, Helena. 3. ed. Rio da Janeiro: 2002, p. 117. Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 653 - 675, jul./dez. 2015 661 A HEGEMONIA DA POLÍTICA termina a fala”26. A política, portanto, será construída no âmbito do espaço público e terá como sentido de existência a liberdade. A liberdade dentro da política é diferente do pensamento da liberdade, que é observada no pensamento cristão, pois de acordo com este pensamento a liberdade é exercida no espaço da solidão, diferentemente da liberdade na política, que tem como fator essencial a pluralidade27. Assim, para a filósofa política, a liberdade que deve condizer à política é a chamada liberdade dos antigos em contraposição à liberdade dos modernos. Nesse sentido, elucida ANDRÉ DUARTE: Em seu sentido político originário, a liberdade é um fenômeno mundano, isto é, não diz respeito a um problema filosófico e não pode ser compreendida como um atributo da vontade, só podendo manifestar-se de maneira concreta onde exista um espaço público destinado à interação humana.28 A liberdade da política em Hannah Arendt encontra-se condicionada ao exercício da ação, pois é por meio da ação política 26 Ibid, p. 40. 27 ANDRÉ DUARTE descreve como ocorreu o processo da liberdade: “O longo processo que separou a noção de liberdade do campo da política, por meio de sua transposição para o plano da interioridade humana, viu-se fortalecido pela tradição cristã, determinante para a compreensão ocidental posterior da liberdade ao identificá-la com a vontade sob a forma do ‘livre-arbítrio’, uma ‘faculdade’ que os gregos desconheciam. Com o cristianismo consolidava-se a noção de que a liberdade é exercida em completa solidão, por meio das escolhas efetuadas pelo indivíduo em face das alternativas que se põem diante dele, perdendo assim qualquer relação para com a pluralidade humana que constitui o âmbito político. A partir de Paulo e de Agostinho, a liberdade passou a ser tematizada em termos dos conflitos internos à vontade, uma faculdade que os gregos também não conheceram e que só foi ‘descoberta’ no instante em que ambos testemunharam a sua ‘impotência constitutiva, isto é, a cisão da vontade entre querer e não querer, entre querer e poder. Em face dessa cisão a vontade tem de se unificar para que possa exprimir e provocar efeitos no mundo, donde o fato dela expressar- se por meio de mandamentos imperativos. Essa canalização da liberdade para dentro da vontade e para o conflito interno ao ‘eu’, que a caracteriza, teve inúmeras conseqüências para a teoria política, dentre elas a reprodução da concepção de que o poder é idêntico à ‘opressão ou pelo menos ao domínio sobre os outros’, e de que a vontade e a ‘vontade de poder’ são o mesmo.” – DUARTE, André. “O pensamento ...”, p. 205-206. 28 Ibid, p. 210. 662 Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 67, pp. 653 - 675, jul./dez. 2015
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