Anuário Antropológico v.37 n.1 | 2012 2012/v.37 n.1 Um balanço da antropologia da saúde no Brasil e seus diálogos com as antropologias mundiais Assessing the anthropology of health in Brazil and its dialogue with World Anthropologies Esther Jean Langdon, Maj-Lis Follér e Sônia Weidner Maluf Edição electrónica URL: http://journals.openedition.org/aa/254 DOI: 10.4000/aa.254 ISSN: 2357-738X Editora Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (UnB) Edição impressa Data de publição: 1 julho 2012 Paginação: 51-89 ISSN: 0102-4302 Refêrencia eletrónica Esther Jean Langdon, Maj-Lis Follér e Sônia Weidner Maluf, «Um balanço da antropologia da saúde no Brasil e seus diálogos com as antropologias mundiais», Anuário Antropológico [Online], v.37 n.1 | 2012, posto online no dia 01 outubro 2013, consultado o 28 abril 2021. URL: http://journals.openedition.org/ aa/254 ; DOI: https://doi.org/10.4000/aa.254 Anuário Antropológico is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Proibição de realização de Obras Derivadas 4.0 International. 51 Um balanço da antropologia da saúde no Brasil e seus diálogos com as antropologias mundiais Esther Jean Langdon Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil Maj-Lis Follér University of Gothenburg, Suécia Sônia Weidner Maluf Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil O início da antropologia da saúde contemporânea no Brasil pode ser datado da década de 1970, quando um grupo interinstitucional de Brasília e o Museu Nacional realizaram uma pesquisa sobre as práticas alimentares em vários gru- pos subalternos no país. Desde este data, as pesquisas antropológicas em temas relacionados à saúde vêm crescendo e antropólogos têm participado de eventos organizados no campo de saúde coletiva e em simpósios e grupos de trabalho sobre o tema da saúde e em outros mais gerais da antropologia e das ciências sociais. Porém, os estudos dos processos de saúde e doença de uma perspecti- va antropológica nem sempre têm sido reconhecidos como formadores de um campo específico dentro da antropologia, e os próprios pesquisadores têm se questionado sobre sua identidade (Minayo, 1998). Argumentamos neste artigo que a pesquisa antropológica sobre saúde e do- ença realizada no Brasil tem se multiplicado suficientemente para que se possa identificar a formação de um programa de pesquisa específico no país a partir dos anos 1980. Se comparado à antropologia médica desenvolvida em países do Atlântico Norte, o programa brasileiro de pesquisa mostra tanto uma identida- de profissional própria quanto paradigmas teóricos e analíticos singulares. Este trabalho analisa o surgimento desse programa de pesquisa emergente à luz das discussões recentes sobre as antropologias mundiais (Escobar, 2004; Ribeiro, 2006; Ribeiro & Escobar, 2006). Destacamos os/as antropólogos/as e seus gru- pos mais atuantes no campo da saúde, bem como as publicações representativas desse programa de pesquisa. Incluímos pesquisadores/as associados/as tanto aos programas de pós-gradu- ação em antropologia quanto aos programas de saúde pública ou saúde coletiva. Esta última disciplina prosperou com o retorno das políticas democráticas no Anuário Antropológico/2011-I, 2012: 51-89 52 Um balanço da antropologia da saúde no Brasil Brasil nos anos 1980, constituindo-se de forma mais significativa a partir de uma ligação estreita com as reflexões e os debates das ciências sociais e políticas do que propriamente em função das discussões epidemiológicas no âmbito da saúde pública. Por fim, trataremos da visibilidade das publicações de pesquisas brasileiras em saúde para examinar a presença desse programa de pesquisa no discurso mais amplo das antropologias médica e da saúde do Atlântico Norte e nos diálogos norte-sul. Procuraremos mostrar que nem sempre uma quantidade maior de publicações resultantes de pesquisas brasileiras, tanto em termos de artigos quanto de periódicos, significa um impacto e/ou um reconhecimento maior da pesquisa em saúde no campo da antropologia de modo geral e nos es- tudos de antropologia da saúde no plano internacional. De acordo com Arturo Escobar (2005), os participantes de programas de pesquisa que discutem modernidade e colonialismo na América Latina contes- tam as ideias universalizantes das ciências sociais e humanas e procuram intervir na discursividade das ciências modernas, buscando pluralizar e descentralizar a produção de conhecimentos e a construção de novos paradigmas. Esses novos paradigmas são resultantes dos “pensamentos de fronteira” e das “epistemologias de fronteira”, que se distinguem, em certa medida, do discurso hegemônico.1 A antropologia brasileira – caracterizada por Roberto Cardoso de Oliveira (1999- 2000) como parte das “antropologias periféricas”, ou como uma “outra antro- pologia” segundo Restrepo e Escobar – é por eles considerada uma antropologia que confronta a vertente anglo-americana com mais ênfase do que a maioria das antropologias latino-americanas o faz (Restrepo & Escobar, 2005:121). Assim, iremos explorar aqui em que extensão se dá essa autonomia teórica dos estudos antropológicos sobre saúde no Brasil e se os seus paradigmas são reconhecidos internacionalmente e se a eles é outorgada autoridade. Algumas considerações teóricas e conceituais Para analisar a expansão e a consolidação da produção de conhecimentos relacionados à antropologia e à saúde, utilizaremos os seguintes conceitos, de- finidos logo adiante: programa de pesquisa; forças estruturais externas e inter- nas; perfil de interesse; e ethos e valores. Tais conceitos nos permitem identi- ficar tanto a emergência da saúde como um campo de pesquisas antropológicas quanto examinar estruturas de poder, eventos e atores que têm influenciado sua evolução. Além disso, buscamos compreender suas características particu- lares e saber até que ponto os estudos sobre saúde são reconhecidos no Brasil como uma agenda de pesquisa antropológica legítima. Um “programa de pes- quisa”, conforme Escobar, se desenvolve como uma perspectiva emergente e Esther Jean Langdon, Maj-Lis Follér e Sônia Weidner Maluf 53 significativamente coesa que alimenta uma série de investigações, reuniões, publicações e outras atividades em torno de um conjunto de conceitos com- partilhados (2004:31). É necessariamente caracterizado como um programa de escopo multi ou interdisciplinar que se desenvolve em determinado ambiente de pesquisa. Os problemas de pesquisa, teorias, conceitos, métodos e estratégias são negociados entre os pesquisadores dos campos associados de conhecimento, constituindo redes que se estendem além dos tradicionais limites disciplinares, uma vez que os pesquisadores encontram outras áreas que trabalham com os mesmos objetivos, questões e temas. Novas questões de pesquisa, que poderiam ser tomadas como temas marginais ou irrelevantes para os fundamentos e as prioridades de uma disciplina, estimulam a criação de outras relações, fora dos limites disciplinares e das estruturas de poder estabelecidos que orientam a pro- dução de conhecimento. O desenvolvimento do conhecimento é dependente, em grande medida, das instituições onde as pesquisas são conduzidas. “Forças estruturais externas e internas” podem estimular ou retardar seu avanço, já que afetam a troca criativa de ideias. A ciência está sujeita aos valores sociais e culturais estabelecidos e às estruturas econômicas. As políticas nacionais de educação, o financiamento das universidades e da pesquisa em particular, assim como a estrutura burocrática que está na base do funcionamento destas instituições provocam impactos so- bre a dinâmica de produção de conhecimento. Como a estrutura acadêmica é construída a partir de departamentos específicos, organizados por disciplinas e subdisciplinas, grupos de pesquisa temáticos e centros de pesquisa, as interfaces, as margens e os cruzamentos entre as disciplinas são afetados por decisões ad- ministrativas tomadas nas instâncias superiores das universidades. Essas decisões resultam em parte de forças de ordem não acadêmica ou externas. A pesquisa e a pós-graduação nas universidades federais são avaliadas e fi- nanciadas através de um sistema altamente centralizado, que envolve duas agências federais e interdependentes de fomento: a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), vinculada ao Ministério da Educação, e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. A Capes creden- cia, avalia e classifica os programas de pós-graduação através de um processo que interfere fortemente no montante de fundos que será recebido de ambas as agências para cada programa de pós-graduação, o que inclui o número de bolsas concedidas aos estudantes. O CNPq classifica individualmente os pesquisadores e oferece prêmios, na forma de um número limitado de bolsas de produtivida- de, para aqueles que se destacam nas avaliações da produção acadêmica e dos 54 Um balanço da antropologia da saúde no Brasil projetos de pesquisa, que é feita com base em revisão por pares. Devido ao número limitado destas bolsas, os pesquisadores do CNPq formam uma elite pela visibilidade que alcançam na comunidade acadêmica. Além disso, o CNPq divulga sistematicamente chamadas para financiamento de pesquisas, algumas dirigidas a áreas e a temáticas específicas, outras com temática aberta. Além das forças estruturais, tanto os perfis de interesse dos pesquisadores quanto o ethos e os valores de um determinado meio acadêmico influenciam o desenvolvimento de um programa de pesquisa. As escolhas individuais e coleti- vas afetam paradigmas epistemológicos, temas, teorias e métodos que originam as questões de pesquisa. Um “perfil de interesse” representa a combinação de experiências pessoais e profissionais e também a capacidade do pesquisador de transformar seus in- teresses em ensino, pesquisa e publicações. Os investigadores são reconhecidos e identificados por seus perfis de interesse. Os candidatos à pós-graduação são atraídos pelos departamentos ou por professores cujos interesses correspondem aos seus interesses pessoais de estudo, obviamente sem descartar outros fatores para a escolha de uma institução ou de um orientador. Como em outras univer- sidades, os perfis de interesse dos professores influenciam na seleção dos alunos e, de certa forma, delimitam os tópicos investigados. Como uma característica distintiva que marca qualquer antropologia nacio- nal, o ethos ou estilo, juntamente com os valores, é talvez a mais difícil de ser identificada. Segundo Clifford Geertz (1973), o ethos é a dimensão moral e es- tética da interação coletiva que molda seu estilo, tom ou sua disposição. Joanna Overing (1989, 2003) amplia essa noção enfatizando a estética da vida diária, referindo-se à atenção dada às formas e aos desenhos nas habilidades produtivas e sociais. Seguindo estes autores, reconhecemos que a interação social, o estilo da escrita e a constituição de redes no interior da comunidade científica são afetados não somente pelos fundamentos epistemológicos da prática da ciência, mas também pelo ethos e pelos valores coletivos. No caso do Brasil, mais impor- tante do que o uso da língua portuguesa para marcar a distinção, nos parece que sejam as diferentes estéticas e outras dimensões qualitativas que caracterizam a interpretação e a natureza da produção social, evidenciadas na escrita e na cons- tituição das redes sociais entre pesquisadores, como já apontou Luis Roberto Cardoso de Oliveira (2008). O ethos, que é parte integrante da produção de outros conhecimentos (Escobar, 2004), pode se perder ou ser mal entendido na tradução das antropologias. A produção do conhecimento envolve uma dimensão coletiva que está além das estruturas. Esta produção – as epistemologias; a criação e a renovação de Esther Jean Langdon, Maj-Lis Follér e Sônia Weidner Maluf 55 conceitos; o surgimento de novos paradigmas; o papel de pensadores seminais; e a interpenetração de ideias – dá origem ao que Escobar tem chamado de uma “mudança epistemológica de perspectiva”. Ou seja, o surgimento de um progra- ma de pesquisa depende não só das forças estruturais externas e internas que o moldam, mas também do ambiente interno, de ethos e valores, dos contextos histórico-sociais, políticos e econômicos que trazem para o primeiro plano um “pensamento de fronteira” em diálogo tenso com perspectivas eurocêntricas. Portanto, o crescimento de uma antropologia nacional ou programa de pesquisa não depende somente das epistemologias e dos interesses que circulam entre os seus pesquisadores, nem, podemos acrescentar ainda, da quantidade de pesqui- sas e publicações realizadas, mas também da estética da produção científica num sentido abrangente. Os primeiros estudos antropológicos de saúde no Brasil2 Apesar de não ter se constituído nem ter sido percebida como campo de pes- quisa na antropologia brasileira durante muitas décadas, a saúde apareceu como tema embutido em discussões sobre folclore, magia, religião e nos estudos de comunidade, entre outros, e em alguns trabalhos esparsos. As diversas revisões que buscam traçar um itinerário desse campo de estudos no Brasil (Canesqui & Queiroz, 1986; Canesqui, 1986, 2003; Nunes, 1987, 1992, e outros) tem es- tabelecido diferentes etapas desses anos iniciais de formação, ligadas a distintas abordagens ou escolas teóricas. Não cabe aqui retraçar de forma detalhada essa trajetória, mas resgatar alguns elementos mais gerais desse período, e reter um elemento importante desses primeiros anos, que é o foco nas práticas populares. Esse foco está presente nas diferentes abordagens marcadas por uma in- fluência evolucionista, como os estudos sobre religião e raça e as interpretações médicas de práticas religiosas populares (Nina Rodrigues, 1897), os estudos de folclore (Cascudo, 1971; Cabral, 1942), que buscavam fazer o inventário das práticas tradicionais, assim como nos primeiros estudos de campo voltados para as medicinas populares, abordando a saúde e as práticas de cura como tradições culturais que tenderiam a desaparecer. Um exemplo tardio desta perspectiva é o capítulo sobre saúde escrito por Charles Wagley no livro Amazon Town (1964 [1953]), no qual ele oferece uma interpretação evolucionista, descrevendo a me- dicina popular a partir de seus fundamentos na magia e na religião, fadada, por- tanto, a desaparecer com o avanço da medicina moderna. Arthur Ramos (1934), antropólogo e psiquiatra, explorou a questão da loucura e do pensamento primitivo, apoiado na psicanálise, de um lado, e nas nas ideias de Lévy-Brühl sobre mentalidade pré-lógica primitiva, de outro. Ele 56 Um balanço da antropologia da saúde no Brasil explorou este tópico em seus estudos sobre loucura e mentalidade primitiva (1926), culturas e religiões afro-brasileiras, lado a lado com os temas relativos à construção de nação, raça, civilização e educação. Roger Bastide, que teve uma influência importante na formação das ciências sociais no Brasil e de diversos pesquisadores brasileiros, também interessado nas ideias de Lévy-Bruhl, princi- palmente em sua teoria da participação como lógica central do pensamento pri- mitivo, desenvolveu diversos trabalhos sobre doença mental, psiquiatria social, psicanálise, sonho, transe e loucura, entre outros.3 Bastide foi um pioneiro no estudo das relações entre religiões populares e cura. Elementos de uma abordagem das práticas populares em saúde, colocadas em contraste com a biomedicina, estão presentes de maneira mais ou menos central em trabalhos de vários autores brasileiros publicados entre as décadas de 1940 e 1960 (Mussolini, 1946, 1949; Galvão, 1951, 1952; Araújo, 1977; Fernandes, 1961). Darcy Ribeiro escreveu sobre o impacto das epidemias nas populações indígenas como consequência do contato com os europeus (1956, 1970), a formação da nação brasileira e o processo civilizatório. Contudo, foi sua reformulação das teorias neoevolucionistas (1968), e não os estudos sobre saúde, que contribuiu para uma visão que alguns antropólogos e cientistas sociais consi- deram como portadora de um projeto alternativo ao paradigma eurocêntrico no âmbito internacional (Meggers, 1968:x; Arruti, 1997; Ribeiro, 2011). Ainda na década de 1960, cabe citar o trabalho de Gilberto Freyre que, em diálogo com uma vertente anglo-saxônica, propõe uma abordagem biocultural articulada en- tre saúde, doença e cultura e de suas especificidades no ambiente e na cultura dos trópicos como instrumento central para uma política sanitária adaptada à região (Freyre, 1967; Bertolli Filho, 2003). Uma característica desses anos iniciais das próprias ciências sociais no país, e que irá marcar também os caminhos pelos quais se desenvolve a antropologia da saúde no Brasil a partir dos anos 1970, é a presença e a influência de cientistas sociais e, particularmente, de antropólogos franceses que contribuíram para o crescimento da antropologia brasileira durante esse período. Como consequên- cia dessa proximidade inicial, os autores franceses são mais frequentemente ci- tados pelos cientistas sociais no Brasil, e muitos trabalhos relacionados ao tema da saúde, incluindo os de Boltanski, Bourdieu, Canguilhem, Foucault, Herzlich e Laplantine, foram traduzidos e publicados no Brasil.4 O mesmo não acontece com os autores norte-americanos e britânicos que são referência para a antropo- logia médica.5 Em resumo, o tema da saúde, da doença e das medicinas aparece nesses anos iniciais de forma esparsa, diferenciada e heterogênea nos trabalhos antropológicos Esther Jean Langdon, Maj-Lis Follér e Sônia Weidner Maluf 57 no Brasil, não constituindo até esse momento um campo de estudos ou um pro- grama de pesquisa propriamente dito. O período de formação: anos 1970 e 1980 O período da transição para a democracia, em final dos anos 1970 até a ra- tificação da nova Constituição Federal brasileira, em 1988, marca uma fase im- portante para os programas de pós-graduação em antropologia e para o começo dos estudos antropológicos sobre saúde no Brasil. Nessa época foram fundados programas de mestrado em antropologia na Universidade de Brasília (UnB) e no Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Assim, os professo- res destas duas universidades definiram a agenda de pesquisa em saúde, delinea- da a partir de conceitos e paradigmas contemporâneos, com poucas referências aos discursos que circulavam na antropologia médica norte-americana. Um dos projetos preliminares mais relevantes no campo da saúde naquele momento abordou o tema dos hábitos alimentares e da ideologia em diversos segmentos da população brasileira, com participação de antropólogos da UnB e do Museu Nacional (Canesqui & Queiroz, 1986). O foco desse projeto foi dire- cionado para as representações culturais e a organização dos hábitos alimenta- res, analisadas primariamente a partir dos paradigmas do estruturalismo francês e da antropologia simbólica com o fim de entender como as forças políticas e econômicas influenciavam as estratégias de subsistência desses grupos. Foram realizados estudos entre camponeses, comunidades de pescadores e trabalhado- res da agricultura e da indústria (Woortmann, 1977). Entre os pesquisadores do grupo da UnB, Martin Ibáñez-Novión era, possivelmente, aquele que mais se identificava com a antropologia médica do Atlântico Norte (Ibáñez-Novión et al., 1978). Ele começou seu doutorado sob a orientação de Steven Polgar, na Inglaterra, e foi o responsável por introduzir leituras de publicações do campo da antropologia médica para os seus alunos, entre as quais os trabalhos de Byron Good, Arthur Kleinman e Alan Young.6 Ibáñez-Novión ajudou a formar um grupo interdisciplinar interessado na inter- seção entre biologia e antropologia (Ibáñez-Novión & Ott, 1983) e organizou o primeiro Grupo de Trabalho intitulado “Antropologia Médica” para a Reunião da Associação Brasileira de Antropogia (ABA) de 1984. O assunto não apare- ceu novamente nas reuniões da ABA até a década de 1990. A visibilidade de Ibáñez-Novión no programa de pesquisa foi breve. Sem terminar seu doutorado, tornou-se marginalizado no programa de pós-graduação da UnB e, embora esta universidade tenha produzido uma série de dissertações de mestrado relevantes para a análise dos hábitos alimentares, os estudos sobre saúde deixaram de ser uma linha de pesquisa por mais de uma década. 58 Um balanço da antropologia da saúde no Brasil As atividades de pesquisa sobre este tema desenvolvidas no Museu Nacional tiveram maior continuidade. Ao longo da década de 1970, cresce o interesse pelos aspectos simbólicos do corpo, inspirado pelas obras de Marcel Mauss, Mary Douglas e Victor Turner, bem como de estudiosos norte-americanos como Clifford Geertz (Rodrigues, 1975). Em 1979, os etnólogos do Museu Nacional publicam um artigo seminal em que propõem pensar o corpo como o paradigma central para a compreensão das sociedades e das cosmologias ameríndias (Seeger et al., 1987). Este artigo marcou profundamente os pri- meiros estudos em saúde indígena. Uma importante linha de trabalho se desenvolveu na década de 1980 no PPGAS do Museu Nacional (UFRJ), dirigida por Gilberto Velho, com foco no tema de indivíduo e sociedade, tendo sido publicados diversos trabalhos volta- dos para o diálogo entre antropologia e psicanálise (Velho & Figueira, 1981; Figueira, 1981, 1985) durante um período identificado como de expansão da psicanálise e de uma “cultura psi” na classe média intelectualizada do Rio de Janeiro (Figueira, 1985; Duarte, 1999-2000). Nas pesquisas realizadas nessa linha de trabalho, no campo das sociedades complexas contemporâneas, foram abordados tópicos como vida urbana, modernização, individualismo e estigma, desvio, cultura da psicanálise, atendimento psiquiátrico em camadas populares, entre outros. O próprio Gilberto Velho escreveu sua tese de doutorado sobre o consumo de “tóxicos” nas classes médias no Rio de Janeiro, com foco mais em questões de individualismo e sociabilidade do que no tema das drogas propria- mente (Velho, 1998). Em relação às pesquisas sobre saúde, a figura que mais se destaca nesse grupo do Museu Nacional é Luiz Fernando Dias Duarte. Sua tese de doutorado, pu- blicada em 1986,7 é um estudo seminal sobre a “doença dos nervos” e se tornou uma referência clássica para os estudos antropológicos em saúde no Brasil. A pesquisa foca nas noções de perturbação, corpo e pessoa entre segmentos das classes trabalhoras urbanas. É também uma revisão das mais completas sobre os estudos antropológicos brasileiros na área da saúde realizados até a sua pu- blicação.8 Duarte se vale explicitamente da tradição da sociologia francesa e é um crítico ativo do que considera o “viés biológico” da antropologia médica norte-americana. Em vários artigos (1993, 1997, 1998a, 1998b, 2003) opõe- -se ao que define como “perspectiva empírico-cultural” da antropologia norte- -americana sobre os processos e as experiências corporais. Ele propõe a noção de “perturbação”, que define como uma experiência físico-moral que escapa às racionalidades biomédica e psicológica, enquanto conceito-chave para os estu- dos antropológicos em saúde.9 Esther Jean Langdon, Maj-Lis Follér e Sônia Weidner Maluf 59 Também na década de 1980, antropólogos norte-americanos com declarado interesse no campo da saúde emigraram para o Brasil, onde introduziram cursos específicos e formaram grupos de pesquisa sobre o tema em outros progra- mas de pós-graduação.10 Por exemplo, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Parry Scott foi o precursor dos estudos que articulam saúde, família e pobreza. Em 1986, ele organizou um simpósio que resultou em uma publica- ção pioneira na antropologia da saúde (Scott, 1986). Esther Jean Langdon, que chegou no Brasil em 1983, introduziu “antropologia médica” como disciplina no ainda Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, habilitação em an- tropologia, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Desde lá, di- versas dissertações e teses no campo dos estudos antropológicos de saúde foram desenvolvidas no PPGAS da UFSC, com ênfase nos estudos de saúde indígena, constituindo hoje uma das linhas fundamentais de trabalho de vários pesquisa- dores da UFSC. Também na década de 1980, Dominique Buchillet, da ORSTROM, França, que trabalhava no Rio Negro, destacou-se como antropóloga importante nas pesquisas em saúde indígena (Buchillet, 1991a).11 Até o final dos anos 1980, os antropólogos que pesquisavam temas de saúde não se identificavam com o campo da antropologia médica. Apesar disso, essas pesquisas foram se multiplicando, estimuladas pela criação de políticas públi- cas e pelo movimento brasileiro da reforma sanitária. Marcos Queiroz (1982) e Maria Andréa Loyola (1984), pesquisadores em saúde com doutorados realiza- dos na Inglaterra e na França respectivamente, voltaram ao Brasil e foram incor- porados a escolas de medicina. Nesse período, saúde era tema de dissertações na maioria dos programas de pós-graduação em antropologia, embora poucos pesquisadores se identificassem com o rótulo da antropologia médica. A afilia- ção de Queiroz e Loyola a programas de medicina social e saúde coletiva reflete uma tendência interdisciplinar no incipiente campo de estudos em saúde, o que se torna uma característica marcante na década de 1990. Em suma, a pesquisa antropológica em saúde foi crescendo no Brasil a partir de estudos sobre vários tópicos, como medicina popular, “nervos”, cultura da psicanálise, mudança nas práticas tradicionais, ideologias e representações, bem como saúde indígena. As primeiras revisões bibliográficas sobre esse campo de conhecimento (Queiroz & Canesqui, 1986a, 1986b) identificaram as pesquisas como “antropologia da medicina”, ou das medicinas, se considerarmos o foco nos estudos das medicinas populares, tradicionais, “religiosas”, “eruditas”, “medici- na oficial moderna” etc., e salientaram a necessidade de se desenvolverem pa- radigmas capazes de analisar a subordinação ao modelo capitalista de processos
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