Lições de História do Pensamento Econômico : Teorias Alternativas de Crescimento e Distribuição 1 de Renda Parte I 2 José Luís Oreiro Versão Preliminar Janeiro de 2000 1 Texto escrito como apoio de leitura para o curso de História do Pensamento Econômico da Faculdade de Economia e Finanças do IBMEC. 2 Doutorando em Economia (IE/UFRJ) e Professor Assistente da Faculdade de Economia e Finanças do IBMEC[ e-mail : [email protected]] ÍNDICE Parte I - Teorias Alternativas Sobre Crescimento e Distribuição de Renda Capítulo I - A teoria clássica do crescimento e distribuição de renda 1.1 a abordagem excedentária para a teoria da distribuição ........................... p. 3 1.2 a questão da mensuração do excedente : a teoria do valor-trabalho em Smith, Ricardo e Marx.........................................................................................p. 8 1.3 a questão da origem do excedente : os fisiocratas e Marx ........................p. 15 1.4 a renda da terra e a fronteira salário-lucro .................................................p. 17 1.5 a lei de Say e a identidade entre poupança e investimento ........................p. 22 1.6 crescimento endógeno, estado-estacionário e desemprego estrutural .......p. 28 Capítulo II - A teoria neoclássica do crescimento e distribuição de renda 2.1 o “núcleo” da teoria neoclássica da distribuição.......................................p. 35 2.2 a teoria do capital em Bohn-Bawerk e Knut Wicksell.............................p. 41 2.3 a função macroeconômica de produção e a fronteira salário-lucro...........p. 48 2.4 o modelo de Solow e o crescimento equilibrado de longo-prazo..............p. 53 2.5 a determinação simultânea do crescimento e da distribuição....................p. 56 Capítulo III- A teoria pós-keynesiana do crescimento e da distribuição de renda 3.1 o modelo de crescimento Harrod-Domar e a possibilidade de crescimento equilibrado com desemprego..................................................................................................p. 60 3.1.1 o primeiro e o segundo problemas de Harrod ............................................p.63 1 3.2 distribuição de renda e o equilíbrio entre poupança e investimento.....................p. 69 3.2.1 os problemas de Harrod e a teoria pós-keynesiana da distribuição .......p.70 3.3 crescimento, distribuição e o paradoxo da parcimônia :o modelo de Robinson..p. 77 3.3.1 os limites à acumulação e o paradoxo da parcimônia ..........................p.82 3.4 crescimento, distribuição e utilização da capacidade produtiva : o modelo Kalecki- Steindl .................................................................................................................p. 85 3.4.1 capacidade ociosa, grau de monopólio e distribuição de renda .............p. 85 3.4.2 grau de utilização da capacidade produtiva e o equilíbrio entre poupança e investimento............................................................................................p. 88 Referências Bibliográficas ........................................................................................p.93 2 Parte I : Teorias Alternativas sobre Crescimento e Distribuição Capítulo 1 - A Teoria Clássica do Crescimento e da Distribuição de Renda 1.1.1 A abordagem excedentária para a teoria da distribuição A teoria clássica do crescimento e da distribuição de renda se baseia no conceito de “excedente social” (social surplus), desenvolvido por François Quesnay na sua obra Tableau Economiqué (1758), tendo se tornado dominante com os economistas clássicos ingleses, notadamente Adam Smith e David Ricardo. Quesnay observou no seu Tableau Economiqué que se o produto social tivesse que ser obtido ano após ano, sem aumento ou diminuição, então uma parte do mesmo teria que ser reempregado na produção, quer sob a forma de reposição dos meios de produção, quer sob a forma de subsistência dos trabalhadores agrícolas. O que sobrasse do produto anual se constituiria num excedente, o qual poderia ser empregado pela sociedade quer para a acumulação de capital (crescimento do produto anual) quer para o consumo de uma classe ociosa (os proprietários de terra). O excedente social pode, portanto, ser definido simplesmente pela seguinte relação : E = PT – CN (1) Onde : E é o excedente social , PT é o produto total e CN é o consumo necessário A noção de excedente econômico coloca imediatamente três questões importantes, a saber : i) a avaliação da magnitude do excedente ii) a determinação da origem do excedente iii) a apropriação do excedente 3 Para responder a primeira pergunta, consideremos inicialmente uma economia que produz um único bem (trigo), de maneira que o produto total e o consumo necessário são constituídos da mesma mercadoria. Essa hipótese é extremamente conveniente porque permite que lidemos com a questão da mensuração do excedente sem ter que determinar a relação de troca – os preços relativos – entre os diversos bens. Sem essa hipótese, o produto total e o consumo necessário seriam constituídos de mercadorias distintas; de forma que a determinação da magnitude do excedente exigiria o estabelecimento de uma unidade comum pela qual tais mercadorias possam ser comparadas. Essa é precisamente a tarefa da teoria do valor-trabalho, a qual iremos analisar mais adiante. Para que se possa determinar o excedente de forma residual é necessário que se conheçam as seguintes magnitudes : i) a taxa de salário real ii) o tamanho do produto social Supondo que o consumo necessário é unicamente constituído pela folha de salários e que os trabalhadores são pagos diretamente em trigo no início do período de produção – de forma que a folha de salários faz parte do “capital” envolvido nesse processo – então o montante do consumo necessário estará inteiramente determinado a partir do momente em que se conhecer (a) o número de trabalhadores empregados e (b) a taxa de salário real, ou seja, a quantidade de trigo que cada trabalhador recebe como pagamento pelos seus serviços. A hipótese básica dos economistas clássicos a respeito da taxa de salário real é que a mesma tende ao nível de “subsistência” da força de trabalho. Deve-se ter muito cuidado com o termo “subsistência”, pois o mesmo sugere a primeira vista a simples reprodução biológica da força de trabalho. A subsistência não deve ser encarada do ponto de vista estritamente fisiológico, mas sim so ponto de visto sócio-histórico : trata-se daquele nível de salário real que cada sociedade, em cada momento e circunstância histórica específica, considera o mínimo indispensável para os trabalhadores manterem a si mesmos e a sua família. Sendo assim, como bem ressalta Garegnani (1980), as instituições sociais (hábitos, 4 normas e costumes) determinam aquilo que a sociedade, em cada momento histórico, considera como o nível de subsistência da força de trabalho. De fato, Ricardo afirma que : “ Não se deve entender que o preço natural do trabalho (...) seja absolutamente fixo e constante. Varia num mesmo país, em épocas distintas, e difere substancialmente em países diferentes, dependendo dos hábitos e costumes dos povos. Um trabalhador inglês consideraria seu salário abaixo do nível normal (...) se não lhe permitisse comprar se não batatas, nem viver numa habitação melhor do que um casebre de barro. No entanto, mesmo essas elementares exigências da natureza são frequentemente consideradas suficientes em países onde a ´vida humana é barata´” (1817, p.83) O ponto a ser ressaltado é que, embora o salário real não seja imutável ao longo do tempo, ele deve ser tomado como um dado do ponto de vista da determinação do excedente. Em outras palavras, a magnitude do excedente não tem nenhum efeito direto e imediato sobre o nível de salário real. Que ou quais mecanismos econômicos garantem que a taxa de salário real tenda a permanecer ao nível de “subsistência” da força de trabalho? No contexto da teoria clássica existem pelo menos dois mecanismos fundamentais, a saber : i) a dinâmica populacional de Smith e Malthus ii) o “exército industrial de reserva” de Marx. Segundo Smith e Malthus se a taxa de salário real superar o nível de subsistência da força de trabalho; então os trabalhadores começarão a ter mais filhos; o que irá acelerar a taxa de crescimento da força de trabalho (cf. Smith, 1776, p.102). Esse aumento da oferta de trabalho irá, por sua vez, aumentar a concorrência entre os trabalhadores pelos empregos disponíveis, reduzindo o poder de barganha dos mesmos. Isso irá fazer com que o salário real se reduza até o nível de subsistência da força de trabalho. Quando isso ocorrer, então a força de trabalho voltará a crescer à uma taxa constante. 5 A dinâmica populacional de Smith e Malthus pode ser formalizada por intermédio da equação 2 : n& =σ(w − w ) (2) onde w é o salário de subsistênc ia Marx, por sua vez, considerava a existência de economias duais, ou seja, economias que possuem um setor capitalista (alta produtividade) e um setor tradicional ou artesanal (baixa produtividade). Nesse contexto, o progresso tecnológico no setor capitalista destruiria progressivamente o setor tradicional, desempregando uma grande quantidade de trabalhadores. Devido as diferenças na produtividade entre os dois setores, uma parte dos trabalhadores desempregados no setor tradicional não conseguiria emprego no setor capitalista, constituindo o assim chamado “exército industrial de reserva”. Esse contingente de desempregados limitaria o poder de barganha dos trabalhadores, impedindo que o salário real se elevasse de forma persistente com relação ao nível de “subsistência” da força de trabalho. Nas palavras de Kaldor : “Marx assumed that as capitalist entreprise progresses at the expenses of pre- capitalists enterprise more labourers are released through the disappearence of the non-capitalist or handi-craft units than are absorbed in the capitalist sector (...) As long as the growth of capitalist enterprise is at the cost of a shrinkage of pre-capitalist enterprise the increase in the supply of wage labour will thus tend to run ahead of the increase in the demand for wage labour” (1956, p.87). No contexto da teoria clássica, o volume do produto social depende de dois conjuntos de circunstâncias, a saber : i) o tamanho do estoque de capital, o qual determina o número de trabalhadores produtivos empregados. ii) as condições técnicas de produção, as quais determinam o produto físico que pode ser obtido a partir do número de trabalhadores produtivos empregados. 6 De fato, pode-se facilmente demonstrar que o produto total pode ser expresso por intermédio da seguinte equação : X L X = K = qvK (3) L K Onde : q é a produtividade do trabalho e v é o inverso da relação capital-trabalho. Na equação (3) q e v são variáveis que representam as condições técnicas de produção. Por um lado, v apresenta a razão na qual trabalho e capital se combinam para produzir uma determinada quantidade de produto. Dada a tecnologia de produção, a relação trabalho-capital é fixa . Isso significa que mudanças na “intensidade dos fatores” só pode ser obtida por intermédio de inovações tecnológicas. Em outras palavras, estamos supondo que um dado “estado das artes” é compatível com a existência de uma e apenas uma técnica de produção. Por outro lado, q representa a quantidade de produto que pode ser obtida a partir de uma unidade de trabalho, ou seja, a produtividade média do trabalho. Deve-se ressaltar que os economistas clássicos divergem entre si a respeito da dinâmica da produtividade do trabalho. Enquanto Smith considera que a produtividade do trabalho tende a crescer ao longo do tempo com o aprofundamento da divisão do trabalho, motivada pelo aumento do tamanho dos mercados; Ricardo supõe que o crescimento populacional levaria a ocupação de terras cada vez menos férteis e, consequentemente, a redução da produtividade média do trabalho. Dados o produto social e o salário real, o excedente pode ser determinado tal como se observa na Figura 1. 7 Produto Social Técnica Trabalho Empregado Excedente Salário Real Consumo Necessário Figura 1 Uma vez determinado o excedente, a determinação da taxa de lucro é uma problema trivial. Supondo que todo o capital é constituído pelos “meios de subsistência” que os capitalistas adiantam para os trabalhadores, temos que a taxa de lucro será determinada pela seguinte expressão : E R = ( 4 ) CN 1.1.2 a questão da mensuração do excedente : a teoria do valor-trabalho em Smith, Ricardo e Marx. Até agora estivemos supondo que a economia produz um único bem, Trigo. Nesse contexto, a questão da mensuração do excedente é relativamente simples : basta determinar a magnitude do salário real e do produto total. Mas o que acontece se essa hipótese for relaxada ? Se relaxarmos essa hipótese, o produto total não será mais constituído por uma 8 única mercadoria, mas por várias; de forma que a simples determinação das quantidades físicas dos diversos bens que constituem o produto total não será suficiente para calcular a magnitude do excedente. Nas palavras de Tolipan : “Ricardo trata da questão trabalhando prima facie um ´modelo em trigo´, isto é, procura definir um ramo de produção em que a mercadoria produzida é fisicamente homogênea com relação às mercadorias que entram em sua produção. Nesta versão, os custos de produção do ramo produtor de trigo se resumiam aos salários pagos e estes eram fisicamente compostos de trigo. É evidente que neste caso o próprio excedente podia fazer o papel de medida exata para o nível da taxa de lucro, pois é claro que sua proporção com relação aos custos (...) não pode ser afetada por variações nos preços relativos. A mercadoria homotética é, no entanto, um artifício manifestadamente irrealista e sua definição fica dependendo então da demonstração de sua existência e unicidade teóricas” (1990, p. 36). Para medir a magnitude do excedente no caso em que várias mercadorias são produzidas é necessário se reduzir as quantidades físicas das mesmas à uma unidade comum; de maneira a permitir a agregação dessas diferentes magnitudes físicas. A primeira vista, isso poderia ser feito simplesmente através da utilização dos preços em dinheiro dessas mercadorias. Em outras palavras, poderíamos calcular a magnitude do excedente ao computar os preços dos diversos bens, somar os valores em dinheiro das diversas quantidades produzidas, e então calcular o valor monetário do produto total. De fato, esse mesmo procedimento foi utilizado pelos Fisiocratas, em particular Quesnay, para determinar o valor do excedente (cf. Coutinho, 1991). Contudo, do ponto de vista da mensuaração do excendente, esse procedimento não é apropriado; pois implica num problema de circulariedade lógica. Isso porque os preços em dinheiro das mercadorias tem neles embutido a taxa de lucro, a qual é a remuneração do capital empregado na produção dessas mercadorias. Mas o objetivo da tarefa de mensuração do excedente é precisamente determinar o valor da taxa de lucro. Logo, a utilização dos preços em dinheiro como forma de determinar a magnitude do excedente implica lógicamente que para se determinar a magnitude da taxa de lucro é necessário que se conheça previamente o valor da própria taxa de lucro ! 9
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