TARSILA DO AMARAL, MUSA DO MODERNISMO Lucia TEIXEIRA1 • RESUMO: Neste artigo, analisam-se três auto-retratos de Tarsila do Amaral, em diálogo com críticas, depoimentos e notas de jornal sobre o trabalho da pintora modernista. Observa- se a construção figurativa de Tarsila nos textos verbais e nas pinturas, analisando-se a práxis enunciativa que aponta tanto para as condições sociohistóricas e discursivas de produção dos objetos verbais e pictóricos, quanto para os mecanismos de recepção que, juntos, constroem uma imagem de mulher. Para isso, a análise considera, nos quadros, a configuração topológica, os contrastes eidéticos e cromáticos, os procedimentos formais de contiguidade e ruptura, buscando, nessa forma específica de expressão material, a geração de um percurso de conteúdo que só pode constituir-se nessa materialidade própria. • PALAVRAS-CHAVE: Tarsila do Amaral; Modernismo; práxis enunciativa; análise semiótica. Caipirinha vestida por Poiret A preguiça paulista reside nos teus olhos Que não viam Paris nem Picadilly Nem as exclamações dos homens Em Sevilha A tua passagem entre brincos Oswald de Andrade Em seu volumoso trabalho de documentação sobre a obra de Tarsila, Aracy Amaral (1975a) apresenta uma fatura paga pela pintora ao mesmo Ms. Poiret a que se refere Oswald no poema Atelier, que me serviu de epígrafe. Paul Poiret - o que tanto faz o costureiro parisiense, a intrometer-se nos discursos sobre Tarsila? Novamente ele aparece, em texto menos denso da mesma Aracy Amaral, produzido para as homenagens aos 50 anos da Semana de Arte Moderna. Nesse texto curto, ocupando espaço dedicado à apreciação das artes plásticas no Modernismo, lá está a informação de que este costureiro da moda mais avançada, que vestia Yolanda Penteado, também vestia Tarsila do Amaral (Amaral, 1975°, p. 125). Deve-se observar com atenção o fato de que o costureiro sirva de referência tanto ao poeta quanto à crítica. Colando fragmentos de discursos, começo a perseguir a imagem da artista, antes de encontrá-la nos auto-retratos que aqui analisarei. Vou recolhendo, nos textos críticos, nos depoimentos, nas notas de jornais, na história e Universidade Federal Fluminense - UFF/CNPq Lucia Teixeira na crítica do Modernismo, o contraponto dos discursos verbais que, dialogando com a pintura de Tarsila, possam constituir a montagem de uma praxis enunciativa que aponta tanto para as condições sociohistóricas e discursivas de produção dos objetos pictóricos, quanto para os mecanismos de recepção que, juntos, compõem a imagem da mulher, feita, ao mesmo tempo, de tinta e verbo. Recorto passagens que associam a beleza de Tarsila ora à aceitação, ora à recusa de sua obra. Nunca vi boniteza tão brasileira como a da pessoa e dos quadros de Tarsila - é a voz de Manuel Bandeira que ecoa, em contraste e em acordo com a crítica ferina do Jornal do Comércio que, chamando monstruosas as formas da pintura de Tarsila, reconhece tratar-se evidentemente de mulher muito bela, a julgar pelo retrato que ilustra o seu catálogo. Já o Correio da Manhã identifica, nas telas da pintora, a mesma radiosa e inegável beleza, que condiz plenamente com a da própria artista {Revista de Antropofagia, l2 ago 1929). Quase personagem de conto de fadas, Tarsila aparece na crônica de Geraldo Ferraz, no Jornal de Notícias: Em São Paulo de 1920, era uma vez uma moça que morava na rua Barão de Piracicaba, num casarão (...) Discípula de Pedro Alexandrino pintara academicamente. Essa 'sinhazinha' descobriria, a partir daquele ano, a pintura moderna. E mais adiante: Pois é essa moça fazendeira, sinhazinha garrida da felicidade de ser bonita e de ter o mundo aos seus pés, que faz o primeiro levantamento da pintura brasileira, em seus coloridos mais reconhecíveis... (Amaral, 1975a, p.466). Componho a arte final de minha colagem com dois fragmentos em contraponto de Mário da Silva Brito, recolhidos do texto de apresentação do catálogo da exposição retrospectiva de Tarsila, realizada no MAM do Rio de Janeiro, em 1969. Destaco, na introdução, a passagem que faz referência, respectivamente, a Anita Malfatti e a Tarsila: Pode-se dizer que a pintura de vanguarda, no Brasil, enquanto luta e polêmica, tem o seu ponto de partida numa mulher e o de chegada em outra. Luta e polêmica, pintura de vanguarda, o reconhecimento do papel desbravador de duas mulheres pintoras - eis aqui então um crítico atento ao seu fazer. Mas o olhar masculino não trai a expectativa, derrubado ele também pela mulher Tarsila, a linda Tarsila, que encanta os seus companheiros, que inspira paixões, musa e artista... (Amaral, 1975a, p. 486). Presto atenção nas figuras que desenham Tarsila verbalmente: sinhazinha, fazendeira, caipirinha vestida por Poiret, bonita, linda, musa e artista. Com que então chegamos ao que interessa. A moça é artista, mas os gentis cavalheiros curvam- se à sua garridice, à sua boniteza. Também as mulheres a admiram. Aracy destaca a fatura de 29.647 francos pagos ao modista parisiense (Amaral, 1975a, p. 214), na mesma medida em que mistura fotos da vida mundana e das obras da tia. Yolanda Penteado, a que via tudo em cor de rosa, considerava-a mulher extraordinária e lindíssima (Penteado, 1976, p. 84). Pagu repunha a ordem de precedência, corrigin- Tarsila do Amaral, musa do Modernismo do os que a achavam a mais bonita - depois de Tarsila, dizia. Dou por ela a última gota do meu sangue (Amaral, 1975a, p. 285). Também por ela derramou sangue - mas o dos outros - o marido. Conta a Revista de Antropofagia, numa "nota interessante", a respeito da exposição de Tarsila no Rio, em 1929: Correu sangue na exposição. Oswaldo de Andrade, agindo antropofagicamente, esborrachou o nariz de um admirador do Sr. Amoe do. O sangue espirrou, com imensa satisfação dos presentes (12 ago 1929). O poeta civilizado contemplava envaidecido nas ruas de Sevilha as exclamações dos homens ante a "passagem entre brincos" da companheira. Em terra de antropófagos, defendia o trabalho da mulher (ou sua honra masculina?) a socos. Nada disso significa que todos esses homens e mulheres não admirassem verdadeiramente o talento artístico de Tarsila. Tampouco essa sucessão de fragmentos significa que toda apreciação da pintura de Tarsila sobrepusesse sua beleza ao seu talento. Mas tudo isso significa que procurei justamente colar aqui construções discursivas que figurativizam o atravessamento da imagem da pintora pelo corpo da mulher, beleza a arrebatar o olhar desviado das telas pintadas. E se, evidentemente, um objeto semiótico só existe no olhar que o constrói, estou aqui introduzindo um recorte que meu olhar de analista privilegiou, justamente para procurar a imagem de mulher que a palavra interpôs ao texto pictórico e que, talvez, o próprio texto pictórico deseje reiterar. De que pintura de Tarsila falo aqui? Da pintura de auto-retratos, e por isso associo o que se fala de sua aparência ao que se fala de sua pintura, porque exatamente desejo descobrir, na pintura, uma enunciação que, construída de muitos interdiscursos, produz uma imagem de mulher que é, ao mesmo tempo, a representação de um ser feminino e a construção de uma fatura pictórica, modelares para a compreensão de um acontecimento estético. Na história da pintura, os auto-retratos compõem uma série que foi construindo a imagem narcísica do artista. Desde os desenhos de Dürer e Da Vinci, passando pelas pinceladas atormentadas de van Gogh, até chegar à destruição da própria fisionomia em Bacon, o que se pinta e o que se vê projetam do espelho para a tela o parecer imperfeito que institui a condição humana. Imobilização do sujeito entre dois movimentos visuais - o posar e o pintar-, o auto-retrato entrega-se à contemplação pública como auto-representação de um sujeito submetido às condições sociohistóricas de uma determinada práxis enuncia tiva. Os retratos, pois, falam de Tarsila para falar daquilo que envolve e possibilita a pintura de Tarsila, para falar das (e por meio das) construções discursivas socio históricas convocadas pela enunciação. A semiótica de base greimasiana oferece bom caminho para a análise do ato enunciativo, caminho ainda em elaboração, extremamente fértil e inquietante. Lucia Teixeira Escapando do domínio lingüístico em que a enunciação foi pensada, trata-se agora de formular essa reflexão do ponto de vista de uma semiótica geral. Os sistemas semi-simbólicos são lugares extremamente estimulantes para a observação de enun ciados que, despovoados da materialidade lingüística, podem mudar a direção do percurso de observação do analista, levando-o à enunciação pressuposta logicamente por enunciados de materialidade não verbal, e daí ao encontro de formulações teóricas válidas no âmbito de uma teoria geral. Para isso, entretanto, é necessário recusar a necessidade de lexicalizar os textos visuais e neles encontrar uma forma de significação específica de sua materialidade significante. Para falar da pintura, será preciso analisar a distribuição de formas no espaço, o uso das cores, a textura das pinceladas, os recursos de luminosidade e sombreamento, as iterações e contrastes plásticos como recursos capazes de construir categorias significantes associadas a significados e, nas relações entre os signos assim constituídos, a organização sêmio-narrativa e discursiva que faz um quadro existir como texto, como um todo de sentido. É a coerência construída nas relações entre as partes e entre as partes e o todo que dá a um objeto pictórico o efeito de enunciado fechado e acabado. Fechada e acabada em si mesma, no entanto, a obra é, para usar a expressão de Schulz, promessa de sentido (Schulz, 1995). E ainda de Schulz que tomo o conceito de ato enunciativo, para questioná-lo e, nesse percurso próprio a uma teoria em movimento, acolher e rejeitar projetos e formulações. Segundo o semioticista, o ato enunciativo é concebido como um ato de significação que, se não tem existência fora de um autor que o assume e de um enunciado discursivo em que se manifesta, também não se identifica nem com as operações ligadas à gênese dos enunciados discursivos (e não cabe, portanto, examinar projetos, esboços, variantes) nem com as antecipações e reajustamentos sucessivamente efetuados no curso da leitura ou contemplação de um enunciado discursivo (não considera, portanto, hipóteses, tentativas, retomadas, etc). Fazendo eco a essa formulação, Christina Vogel manifesta sua insatisfação e incômodo com uma certa teorização semiótica que mostra a enunciação como um "entre-lugar", uma "oscilação", um "vai-e-vem", ou que pensa modelos de descrição em termos "coloridos", termos que, usando as metáforas da sinuosidade, do movimento pendular, revelariam uma fissura na teoria, uma falha na construção do edifício teórico da semiótica. Ora, penso eu que a grande beleza teórica da semiótica está em dois movimentos de expansão, contidos por uma tensão teórica fundadora. Um movimento expansivo é o da sua pretensão, a pretensão estimuladora de toda ciência, de querer abarcar na sua totalidade o recorte produzido no objeto observado. A semiótica pretende constituir-se como a teoria de todas as linguagens e de todos os sistemas de sig nificação (Greimas, 1975), recuperando, no espetáculo dos textos, o espetáculo do homem no mundo. O segundo movimento de expansão diz respeito à porosidade transdisciplinar da teoria, que acolhe formulações da lingüística, da filosofia, da antropologia, para incorporá-las ao seu próprio corpo teórico, re-significando conceitos e métodos de outros campos do saber, para incorporá-los às suas próprias e consistentes formulações. Esses dois movimentos são então contidos pela tensão de um chamamento a uma certa previsibilidade, criada por um modelo de análise incessantemente reconcebido. Parece-me que esse próprio modo de ser da semiótica exige do analista uma metalinguagem mais "colorida", que possa dar conta, afinal, da humana falta de jeito diante da existência. Se eu entendo a pintura, ou qualquer outra manifestação estética, como um objeto que fala de si mesmo, do mundo natural e do mundo da memória, a própria natureza do objeto me obriga a considerar os retornos, os vaivéns, as sinuosidades, os esboços, o movimento pendular, as hesitações como constitutivas do modo de analisar este objeto. Isso não significa buscar a gênese, no sentido de ir atrás de uma história pessoal de vida e de trabalho artístico. Também não significa imaginar reações de um leitor ansioso por completar lacunas de uma possível paráfrase ou interpretação do texto lido ou contemplado. Significa tão somente: perder-se no texto, salvar-se pelo texto, ir e voltar. Acolher, para elaborar como discurso, os universais semióticos e os produtos da história, integrá-los como interdiscursos à combinatória intradiscursiva gerada pela ilusória subjetividade de um enunciador. Olhar o objeto e deixar-se penetrar, de modo a que a própria constituição material geradora de sentido infiltre- se na análise, que será tanto melhor quanto mais possa, do objeto, perceber-lhe a aparência imperfeita - e, no entanto, única - do sentido. Pode-se, então, desconsiderar a gênese de uma obra em sua análise, mas não se pode perder de vista que ela tem uma gênese, pode-se abandonar a qualidade paralisante e dinâmica da leitura, mas não se pode imaginar que a leitura que busca o sentido não tenha necessariamente que ser hesitante, rompida por descontinuidades, retomada por surpresas. Os sucessivos auto-retratos de Dürer, Rembrandt e van Gogh, como tratá-los, senão como percursos enunciativos de busca do próprio sujeito e da própria substância da pintura? E como analisá-los, senão como séries que, atravessadas pelas organizações culturais da significação estética, instituem-se a si mesmas como novas séries, cada uma construindo, na relação enunciativa entre um pintor e um espectador, novas e velhas configurações do uso de uma temática e de uma específica materialidade expressiva? O ato enunciativo, pois, só pode ser pensado na figurativização de movimentos sinuosos e pendulares, só pode ser analisado com as cores de um discurso analítico capaz de submeter-se ao vai-e-vem do processo enunciativo em análise. A práxis enunciativa, como afirmou Fontanille, não é uma teoria, nem uma problemática, Lucia Teixeira menos ainda uma alternativa; é, sobretudo, um certo ponto de vista, aquele do discurso se fazendo e não simplesmente o do discurso já feito (Fontanille, 1995). Trata-se, portanto, de analisá-la como um fazer que põe em movimento seleções e arranjos de formas e conteúdos tomados como memória, com sua contraparte constitutiva de esquecimento, memória e esquecimento recuperados por um sujeito da enunciação que os transforma em acontecimento discursivo. Volto-me, então, para os auto-retratos de Tarsila do Amaral com a disposição de buscar esse movimento, a partir de uma disciplina analítica que começa por identificar no quadro sua configuração topológica, seus contrastes eidéticos e cromáticos, seus procedimentos formais de contiguidade e ruptura, para encontrar, nessa forma específica de expressão material, a geração de um percurso de conteúdo que só pode construir-se nessa materialidade própria. Mas a análise que proponho deseja também considerar, para além da materialidade significante da pintura, um outro tipo de materialidade, aquela que resulta do atrito do verbal com o não verbal, produzindo uma espécie de ruído fundador da ação do sujeito, revelada, finalmente, no enunciado da pintura entregue à contemplação. Recorto falas, colo-as em imagens, que então recorto, para recobri- las de discurso. A crítica do Modernismo, os depoimentos da artista, a produção literária do movimento, a base teórica de que me utilizo são os rumores verbais que emolduram e fazem significar a pintura que examino. São três os retratos que aqui analisarei, detendo-me sobretudo no antológico manteau rouge, hoje pertencente ao acervo do Museu Nacional de Belas Artes. Tarsila pintou sete auto-retratos, de 1921 a 1926, período que marca sua iniciação e seu amadurecimento. Sua aprendizagem com os mestres acadêmicos brasileiros e na Académie Julian, em Paris, na primeira viagem, ensinou-lhe o desenho, a harmonia, a composição, o uso equilibrado do espaço, a modelagem das formas. Esse é um momento em que ainda não havia prestado aquilo que chamou seu serviço militar cubista (Amaral, 1975a, p. 114). O auto-retrato de 1921 (figura 1) tem a pose e a modelagem acadêmicas: a proporcionalidade da figura central, o sombreamento do pescoço ressaltando o volume do rosto, o meio corpo em semi-perfil. A técnica suaviza o retrato em pinceladas ralas de tinta diluída, tanto no rosa em efeito de transparência na roupa displicente, quanto no esfumaçamento dos contornos que integram a figura ao fundo, pelo uso da pincelada impressionista, em várias direções. O cabelo apanhado em coque forma a massa escura que, no contraste com a tez da pele, emoldura o rosto, sem fazer linha de contorno. O olhar fixado em algum ponto fora do quadro e desviado do espectador adensa a pose acadêmica do corpo expandido na diagonal que dá grandeza ao quadro. O contraponto carmim na boca des-sensualiza-se na diluição da forma, reiterando-se a figura expressiva da diluição nas cores do fundo, indefinidas pela pincelada l.iiciíi Tci-wim impressionista. Tudo nesse quadro fala da aluna obediente aos mestres acadêmicos. Entretanto, como se verá, o olhar desviado para o espelho que devolve à tela a imagem refletida, esse olhar já pode ver (e fazer ver) a insatisfação que se transformará em rebeldia. Apenas dois anos depois, Tarsila pintaria aquele que é seu auto-retrato mais conhecido, o do manteau rouge, que retoma do anterior a especificidade de construir, no suporte da tela, um jogo de cores e formas, para realçar de um fundo neutro uma figura de mulher. Se retoma essa especificidade plástica, subverte-a com o emprego da cor pura e da forma geometrizante, aprendidas em nova viagem a Paris, já então com a freqüência aos ateliês de Lhote e Léger. Mas aqui é preciso abrir parênteses para que não pareça que estou pretendendo mostrar uma evolução, no sentido mais imediato de progresso, de apagamento de uma etapa pela sua superação em outra. Sirvo-me do pensamento de Silviano Santiago, para usar sua formulação do conceito de "encaixe". Rejeitando a concepção puramente linear e unívoca da história dos fenômenos estéticos, para investigar novas possibilidades de formalização do problema da passagem de um determinado sistema retórico, em vias de esgotamento, para outro que se pretende novo e original, Silviano define o encaixe como um instante de ruptura, de re-organização, de des-obediência; trata-se de reproduzir parte de um predeterminado objeto para salientar a diferença do novo objeto. A nova obra transgride, então, a forma que lhe serve de prisão, traindo-a, no instante em que se insere, se encaixa no objeto que lhe serve de modelo (Santiago, 1975, p. 114-6). Vou pôr em diálogo com Silviano uma reflexão de Giulio Carlo Argan, que aponta para a necessidade de abandonar uma concepção progressista da história da arte, para entender que não há ato artístico (...) que não se origine de um modelo. Mas o modelo, diz Argan, não é a norma que elimina o problema, é o problema, porque o modelo está lá, no horizonte do tempo, e o artista está aqui, no presente da ação. O modelo, enfim, está lá para ser removido, eliminado como problema (Argan, 1992, p. 37). Gosto especialmente, nessas duas reflexões, a de Silviano e a de Argan, das idéias de problematização e de desobediência, porque penso que apontam para o inesgotável desafio posto pela tradição, de inscrever nela mesma as possibilidades de desvio. Não estou, portanto, propondo a observação de uma evolução linear na obra de Tarsila, mas a análise de uma ruptura que não é inteiramente a rejeição dos modelos estéticos anteriores, mas a sua reconcepção, a sua assimilação para, pelo desvio e a rebeldia, construir uma nova forma, acolher novos padrões estéticos que começam a se impor, num movimento que faz cada momento de inovação re- significar toda a história da arte, constituindo-se o processo de criação simultaneamente de memória e esquecimento, apagamentos e surpreendentes preenchimentos. Tarsila do Amaral, musa do Modernismo Feita essa breve interrupção, volto a Tarsila, agora encoberta/descoberta em seu manteau rouge (figura 2), Figura 2. Auto-retrato. Óleo s/ tela, 73 x 60cm. Acervo do Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro. Começo a análise pela observação de que há, no quadro, duas cercaduras, dois espaços englobantes do corpo englobado, o fundo e a roupa. A roupa, pintada em gradações quentes do vermelho, é a forma que ocupa maior espaço na tela, expandindo-se em lateralidade na gola volumosa, criada na cor chapada que gradua luminosidade e sombra pelos esfumaçamentos das misturas com o acromatismo do preto e do branco. O efeito de esfumaçamento do carmim, criado pela pincelada ora aparente ora diluída, movimentando-se em diferentes direções, mais o contraste cromático com a cor da pele, criam o efeito de volume da gola que, constituída em elipse, cerca mas não aprisiona o corpo. Tomando essa figura volumosa e circular da gola como definidora de zonas topológicas, identificam-se três faixas horizontais, que devem ser observadas sobrepostas às organizações de formas e aos espaços de englobamento. Na faixa central, a forma elíptica latitudinal da gola reitera, para com elas estabelecer contraste, tanto a elipse longitudinal do rosto, quanto a curvatura descendente do corpo, para marcar com formas curvas, pontuadas de brevíssimas interrupções retilíneas, a figura que ressalta do fundo. Vê-se, então, que o volume central da gola tanto ocupa a centralidade latitudinal, expandindo-se até a quase totalidade da superfície lateral, quanto segmenta a ligação das formas longitudinais, o que transforma em traço fundamental o que poderia ser mero detalhe do vestuário. Na faixa inferior, solta-se e dilui-se a forma do vestido, cedendo mínimo espaço ao fundo azulado e, portanto, apenas aos espaços englobantes, que encobrem o corpo. Na faixa superior, desaparece a segunda zona de englobamento e amplia-se a faixa englobante do fundo para, no contraste com as misturas cromáticas constitutivas da cor da pele, ressaltar o rosto e esfriar o fundo. O rosto, então, aparece realçado pelo clareamento do fundo em torno dos contornos geometrizantes bem delineados na curva que desenha o cabelo, em nova linha curva descendente nas sobrancelhas. A boca em tom vermelhão, tensionando o carmim da roupa, é delineada no traço firme, ao passo que o nariz de construção acadêmica cria seu volume com zonas de sombreamento e diluição do desenho, recurso em expansão nas orelhas, quase apenas adivinhadas na pincelada estudadamente descuidada. A observação de faixas verticais ajuda a examinar mais detalhadamente a construção da pintura. Há uma faixa central estreita, em que a iteração de um encontro em V de linhas retas indica a simetria de procedimentos que instalam angulosidades para fraturar a continuidade, a descontinuidade interrompendo então a continuidade harmônica (da gola, da boca, das sobrancelhas, do cabelo). Nas faixas esquerda e direita, pequenas dissimetrias: maior volume e diluição à direita, contornos mais nítidos e contenção do volume, à esquerda, como a indicar, pelo contraste, a impossibilidade de dois lados absolutamente iguais, a impossibilidade da harmonia simétrica herdada, para o desenho do corpo, da proposta neoclássica, reencenada pelos acadêmicos brasileiros. Também o corpo fixado na pose não obedece à imobilidade, pende
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