SOCIOLOGIA, REIFICAÇÃO E DIALÉTICA NO PENSAMENTO DE THEODOR W. ADORNO SOCIOLOGY, REIFICATION AND DIALECTICS IN THEODOR W. ADORNO'S THOUGHT Vinícius Dino Fonseca de Castro e Costa* Cite este artigo: COSTA, Vinícius Dino Fonseca de Castro e. Sociologia, reificação e dialética no pensamento de Theodor W. Adorno. Revista Habitus: Revista da Graduação em Ciências Sociais do IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, v.14, n. 2, p. 42-62, março de 2017. Semestral. Disponível em: <www.habitus.ifcs.ufrj.br>. Acesso em: 30 mar. 2017. Resumo: O texto propõe uma leitura de três textos de Theodor W. Adorno, buscando a partir deles selecionar, reconstruir e comentar alguns dos argumentos que o autor apresenta para fun- damentar sua proposta de sociologia. Esse exercício visa principalmente a elucidar melhor a es- trutura e os sentidos de tais argumentos. O percurso desenvolvido é o de tentar agrupá-los em torno de dois eixos temáticos: o da reificação e o da dialética, entendendo serem esses dois te- mas como que princípios antitéticos observados por Adorno no interior das diferentes formas de reflexão sociológica. A partir deles, se busca lançar luz sobre a especificidade da concepção dia- lética de sociologia, defendida pelo autor. Palavras-chave: Positivismo; reificação; dialética; método. Abstract: This text proposes an interpretation of three of Theodor W. Adorno’s texts, seeking to select, reconstruct and comment some of the arguments the author presents as to provide fun- dament to his proposal of a sociology. This exercise intends to make clear the structure and the senses of these arguments. The itinerary developed is one of trying to divide them into two groups, that correspond to two thematic axes: reification and dialectics, understanding that these two themes are antithetical principles observed by Adorno in the scope of the different forms of sociological reflexion themselves. This way, we seek to enlighten the specificity of the dialectical conception of sociology, defended by the author. Keywords: Positivism; reification; dialectics; method. 1. Introdução Em 1961, o congresso da Sociedade Alemã de Sociologia, realizado na cidade de Tübingen, teve como um de seus principais temas de discussão a lógica subjacente à prática das ciências sociais, a partir de debate protagonizado por Karl Popper e Theodor Adorno. Às 27 teses de Popper sobre a lógica das ciências sociais, formalizadas e sistematizadas, Adorno opôs uma réplica ensaística na qual expunha a perspectiva dialética de sua teoria crítica da sociedade, contra o “racionalismo crítico” defendido por Popper. Extrapolando a ocasião estrita do congresso, esse debate veio a se desenrolar ao longo de toda a década de 60, e a desencadear outras tomadas de posição, como as dos filósofos Jürgen Habermas e Hans Albert, culminando com a publicação, em 1969, do volume A disputa do positivismo na sociologia alemã. [1] Nessa compilação, além dos textos iniciais de Popper e Adorno, figuravam contribuições de outros autores sobre a mesma temática, o texto Sociologia e pesquisa empírica, escrito por Adorno ainda em 1957, e uma estendida introdução também assinada por este último, na qual ele retomava algumas das questões centrais do debate e incluía novas formulações. Por volta da mesma época, em 1968, Adorno ofereceu seu último curso universitário, antes de sua morte em agosto do ano seguinte. Bastante influenciado pelas discussões iniciadas no congresso de Tübingen, e atualizadas no então mais recente congresso da Sociedade Alemã de Sociologia, realizado em Frankfurt naquele ano, o curso teve como objeto justamente questões introdutórias à sociologia. Nele, o autor lidava com diversos temas pertinentes à discussão em voga na época, mas também apresentou proposições teóricas mais fundamentais acerca do con- ceito e metodologia da disciplina. Concomitantemente, ele trabalhava na edição do volume so- bre a “disputa do positivismo”, mais especificamente em sua introdução. A conexão entre esses dois momentos de sua atividade teórica e acadêmica foi explicitada pelo próprio Adorno, que em carta ao crítico Peter Szondi, assinalava: Ainda não iniciei a redação do livro sobre estética. Em parte porque preciso redigir a grande introdução ao livro da editora Luchterhand acerca da contro- vérsia do positivismo na sociologia alemã. Uso esse material ao mesmo tempo para minhas aulas. (ADORNO, 2008, p. 62) Este trabalho se debruçará sobre esse momento particular da experiência intelectual adorniana, no qual o autor se ocupou de forma especialmente intensa e profunda sobre proble- mas da sociologia enquanto disciplina específica. Para tanto, ele se dedicará a fazer uma leitura de três textos – a introdução ao livro mencionado, o texto Sociologia e pesquisa empírica, tam- bém nele publicado, e a transcrição do curso de introdução à sociologia -, buscando a partir de- les selecionar, reconstruir e comentar alguns dos argumentos que Adorno apresenta para funda- mentar sua proposta de sociologia. Esse exercício visa principalmente a elucidar melhor a estru- tura e os sentidos de tais argumentos sem conter, contudo, qualquer pretensão de esgotá-los. Em vez disso, o percurso será o de tentar agrupá-los em torno de dois eixos temáticos: o da reifi- cação e o da dialética, entendendo serem esses dois temas como que princípios antitéticos ob- servados por Adorno no interior das próprias diferentes formas de reflexão sociológica. A partir deles, será possível lançar luz sobre a especificidade da concepção dialética de sociologia, defen- dida pelo autor. 2. Reificação e fetichização do método na sociologia Já em Sociologia e pesquisa empírica, texto de 1957, Adorno tecia reflexões sobre diversos aspectos da relação entre teoria e empiria no interior da prática sociológica. Nesse contexto, ele se ocupou de fazer a crítica do que identificou como sendo um processo de reificação ou coisifi- cação do método, paralelamente a sua fetichização. Para Adorno (1973, p. 84), os métodos em- píricos por ele postos em questão, apesar de possuírem uma pretensão à objetividade que lhes serve de atrativo, em realidade não apreendem mais do que dimensões estritamente subjetivas do comportamento humano (opiniões, atitudes, dados estatísticos sobre sexo, idade etc.), fa- lhando em perceber o plano do que ele denomina como objetividade social, isto é, “a soma de to- das as relações, instituições e forças em cujo seio atuam os homens” (ADORNO, 1973, p. 84) [2]. (Daí também sua semelhança em relação às pesquisas de mercado, cujos resultados são um agrupamento de informações “pré-científicas” com fins administrativos, centrando-se sobre os sujeitos, em detrimento das formas sociais.) Nesse sentido, o autor argumenta que tais métodos empíricos engendram uma separação entre método e objeto, autonomizando o primeiro em re- lação ao segundo, de modo que “a objetividade da pesquisa social empírica não é, em geral, se- não a objetividade dos métodos, no lugar daquela do pesquisado” (ADORNO, 1973, p. 84). As- sim, “o método ameaça tanto fetichizar seu objeto quanto degenerar ele mesmo em fetiche” (ADORNO, 1973, p. 85). Porém, antes de explorar melhor de que forma a separação entre objeto e método engendra a reificação e a fetichização deste último, é oportuno retomar o contexto a partir do qual se dá a teorização de Adorno sobre o tema da reificação. É conhecida a influência de György Lukács, em especial da reflexão do “jovem Lukács” reu- nida no livro História e Consciência de Classe, sobre os pensadores da chamada Teoria Crítica da Sociedade, ou Escola de Frankfurt. Para Habermas (1999, p. 474), por exemplo, “Adorno pôde fazer seu um argumento de Lukács e radicalizá-lo.” [3] De fato, há muitos elementos em comum entre a concepção adorniana de reificação e o argumento que Lukács apresenta no en- saio A reificação e a consciência do proletariado. Nesse texto, ele faz uma releitura das observa- ções de Marx sobre as consequências sociais da generalização da forma mercadoria enquanto principal modo de satisfação das necessidades humanas, agregando novas perspectivas à análise. No que se refere a esse ponto, Michael Löwy (2014, p. 113) define a contribuição de Lukács como “uma síntese poderosa e original da teoria do fetichismo da mercadoria de Marx e da teoria da racionalização de Weber”. Para Lukács, o fetichismo envolvido nas relações de troca de mercadorias, isto é, o processo pelo qual essas relações assumem “a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 2013, p. 147), constitui-se como uma determinação central não somente da troca mercantil em si, mas também de todas as formas de objetividade e subjeti- vidade na sociedade burguesa. Assim, o fetichismo engendra também um tipo de racionalidade que lhe é própria, marcada basicamente pelo recurso à quantificação, ao cálculo e à abstração das qualidades específicas dos objetos, pela qual opera o valor de troca. Essa racionalidade passa a mediar a sociedade capitalista “em todas as suas manifestações vitais” (LUKÁCS, 2003, p. 193). É justamente a todo esse processo, simultaneamente objetivo e subjetivo, que Lukács dará o nome de reificação, e a partir dessa conceituação pode-se compreender melhor as observações de Adorno sobre o modo como ele se manifesta no campo das ciências sociais. Feito esse parêntese, é possível prosseguir na análise dos argumentos de Adorno. Em Socio- logia e pesquisa empírica, ele defende que os trabalhos científicos que elegem um método dado de antemão como critério de objetividade, em realidade falsificam esta última, na medida em que produzem apenas “enunciados objetivos sobre sujeitos” (ADORNO, 1973, p. 84), isto é, so- bre suas opiniões, reações e atitudes pessoais. De que forma, porém, essa falsa objetividade se inscreve na lógica da reificação? Para o autor, “o método coisificado postula a consciência coisi- ficada das pessoas que constituem seu objeto” (ADORNO, 1973, p. 87). Isso significa que, ao dei- xar de apreender as determinações objetivas da realidade, substituindo-as pelas impressões sub- jetivas, o método também deixa de interpelar a própria consciência reificada que gera essas im- pressões, tomando-a como pressuposto e, assim, corroborando-a. Essa substituição se impõe como procedimento em um cenário onde o método se destaca de seus objetos para tornar-se uma ferramenta autossuficiente: em última instância, trata-se de uma emancipação dos meios em relação aos fins, característica típica da racionalidade formal descrita por Weber. Ou, nas pa- lavras de Adorno (1973, p. 87), “se pretende investigar um objeto mediante um instrumento de investigação que decide em virtude de sua própria formulação, o que é o objeto mesmo – em suma, um círculo vicioso”. Precisamente nessa direção, criticada por Adorno, apontava Popper em suas teses sobre a lógica das ciências sociais, quando afirmava que “[a] chamada objetivida- de da ciência se radica na objetividade do método crítico; [...] os meios lógicos dos quais se serve a crítica — a categoria da contradição lógica— são objetivos” (traduzido de POPPER, 1973, p. 104). É nesse sentido que se pode falar de um fetichismo do método, correlacionado a sua própria reificação: assim como ocorre com a mercadoria, nele são investidas propriedades sobrenaturais, para além do que seriam suas possibilidades reais, gerando assim uma aparência. [4] Contra isso, Adorno defende um julgamento da relevância dos objetos, com base em sua essencialidade e nexos internos. Dessa forma, ele apresenta uma crítica da cristalização não só dos métodos enquanto condição suficiente de objetividade, mas também da própria realidade concreta à qual eles se dirigem. Pensamentos semelhantes comparecem de forma desdobrada nas outras produções in- telectuais do autor, nos anos 60. Na Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociolo- gia alemã, Adorno retoma sua crítica ao que nesse novo momento nomeia como “obsessão me- todológica”, expressando um tipo específico de racionalidade científica que ele identifica com o positivismo. A ela, ele opõe justamente o interesse pelo objeto de pesquisa: O interesse pela coisa acaba se firmando contra a obsessão metodológica […]. O espírito que descuida o quê em benefício do como, ou o objetivo do conheci- mento em benefício dos meios de conhecimento, tende a deteriorar-se a si mesmo. (ADORNO, 1983, p. 245) Trata-se, portanto, de uma atualização da crítica ao processo de racionalização que elege o método como critério principal de fundamentação da atividade científica. Para Adorno (1983, p. 245), o espírito que adere a essa lógica perde ele próprio suas qualidades; em outras palavras, reifica-se: “através da racionalização torna-se desespiritualizado”. Para explicar melhor essa for- mulação, ele recorre à distinção feita já por Blaise Pascal, nos primórdios da ciência moderna, entre o esprit de géometris e o esprit de finesse, na qual o segundo diz respeito a um momento qualitativo da racionalidade que não poderia ser reduzido à quantificação, que naquela época já começava a se impor como princípio central da ciência. Essa reificação do espírito se relaciona com um tema crucial da própria reflexão filosófi- ca mais ampla de Adorno, a saber, a dialética do sujeito na modernidade. Para ele, para que o sujeito pudesse se autoafirmar, enquanto tal, historicamente, precisou distanciar-se progressi- vamente dos objetos, apropriando-se das determinações destes últimos para fins de dominação. Contudo, tal forma de apropriação é contraditória na medida em que consiste em uma “domina- ção de um mais fraco sobre um mais forte”, de modo que “o sujeito se esquivava da superiorida- de real da objetividade” (ADORNO, 1983, p. 224). Dessa forma, quando o sujeito acreditava es- tar, nos termos de sua própria dominação, distanciando-se do objeto, em verdade estava conver- tendo-se ele próprio em objeto, de forma inconsciente, fazendo de sua racionalidade uma “se- gunda natureza”. Para Adorno (1983, p. 224), essa é “a pré-história da coisificação da consciên- cia”, que se manifesta no positivismo na forma da projeção, sobre a realidade objetiva, da racio- nalidade de sua subjetividade dominadora; é o que faz, por exemplo, a afirmação do filósofo Ru- dolf Carnap, citada por Adorno, de que as leis da lógica se aplicariam à realidade por um “afor- tunado acaso”. Também em seu curso de introdução à sociologia o tema do fetichismo reaparece. Na aula do dia 04/07/1968, por exemplo, Adorno (2008, p. 296) desenvolve o que ele chama de “o problema da fetichização da ciência”. Nessa reflexão, ele polemiza mais especificamente com a defesa feita pelo sociólogo Erwin Scheuch de uma sociologia “que não quer ser nada a não ser sociologia”. Como crítica a essa concepção, Adorno elabora um argumento especialmente cen- trado na questão da justificativa da ciência, e da sociologia em particular. Dessa forma, ele con- ceitua de forma sintética a fetichização da ciência: trata-se do fato de que esta passa a ser vista como um fim em si mesma (precisamente como expressa a formulação de Scheuch). Em contra- partida, Adorno enfatiza que a ciência possui sua justificativa ao passo em que extrapola seu próprio domínio, e oferece “visões compreensivas” que possuam maior alcance. No caso da sociologia, essa questão se complexifica justamente por ela elaborar problemáticas como a da reificação e do fetichismo que, ao deixarem de ser aplicadas à própria disciplina na forma de au- torreflexão, geram o que o autor chama de “fenômenos de deformação”; em outras palavras, a autorreferência das ciências em geral, se transplantada para a sociologia, traduz-se em uma li- mitação cognitiva na forma em que esta experimenta a si própria e a seus objetos. 3. Aspectos de uma sociologia dialética Tendo percorrido alguns argumentos construídos por Adorno no contexto de sua crítica ao que ele denomina como positivismo, cabe agora indagar: de que maneira pode-se caracterizar a proposta dialética de sociologia que ele apresenta? Inicialmente, pode ser destacado o modo mesmo pelo qual Adorno entende que aquela dis- ciplina deve abordar seu objeto: enquanto totalidade. Essa dimensão é explicada por ele já nos primeiros parágrafos de Sociologia e pesquisa empírica: “Qualquer visão da sociedade como um todo transcende necessariamente seus fatos dispersos. A construção da totalidade tem como pri- meira condição um conceito da coisa no qual se organizem os dados separados” (ADORNO, 1973, p. 82). Para o autor, os diversos domínios da sociedade encontram-se funcionalmente in- terligados, e todo fato particular é de uma forma ou de outra socialmente mediado. Na Introdu- ção à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã, Adorno explicita sua concepção de totalidade social, no movimento de diferenciá-la do que ele chama de “pensamento globalizante”. Este último, do qual os modelos organicistas - para os quais as partes, ou órgãos, se ligam diretamente ao todo – seriam um exemplo, procederia “do alto”, na medida em que transforma a noção da totalidade em um início em-si. De forma oposta, o conceito dialético de totalidade se distinguiria por estar atento à “relação antinômica do universal e do particular”. Além disso, ele postularia um “caráter social de sistema”, no lugar das conexões “orgânicas” imediatas (ADORNO, 1983, p. 236). Assim, partindo da premissa de que “a construção da totalidade tem como condição um con- ceito da coisa”, pode-se observar como Adorno resolve conceitualmente o problema da totalida- de. Em sua reflexão, tal procedimento se concretiza na forma do próprio conceito de sociedade, e de uma de suas determinações cruciais: a forma social da troca. Esse conceito Adorno desen- volve, dentre outros momentos, por ocasião de uma polêmica em torno de uma declaração do fi- lósofo Hans Albert, interlocutor de Popper. Em seu curso, na aula do dia 02/05/1968, ele reflete de modo mais detido sobre essas ideias, iniciando, entretanto, com uma citação de Nietzsche (apud ADORNO, 2008, p. 100) segundo a qual “todos os conceitos em que um processo em sua totalidade se resume semioticamente se subtraem a uma definição”. Nesse sentido, ele procede à exposição de apontamentos sobre o conceito de sociedade, ressaltando a “infinita riqueza histórica” de seus conteúdos (ADORNO, 2008, p. 103). É a partir dessa acepção que o autor reage à crítica de Albert a seu conceito de so- ciedade. Para Albert (apud ADORNO, 2008, p. 105), o conceito adorniano seria demasiadamen- te abstrato e inatingível do ponto de vista da experiência, porque o todo “nunca se apresenta ele mesmo conforme arranjos experimentais particulares”. Dessa forma, ele acusa Adorno de não possuir suficiente clareza na comunicação de seu conceito e da interdependência que ele expres- sa, extraindo deste apenas a compreensão parcial de que “de alguma maneira tudo se relaciona com tudo”. Adorno responde a essa objeção mobilizando sua noção de sociedade como rede de nexos funcionais entre seres humanos; porém, avança na caracterização ao discorrer sobre uma deter- minação essencial dessa rede: a troca. Para ele, é essa determinação que unifica virtualmente to- dos os seres humanos, e sua condição abstrata, mais do apenas uma tradução teórica do fenô- meno real, é constituinte de sua própria existência na prática. Isso significa que, como diz Ador- no (2008, p. 106), “essa abstração é propriamente a forma específica do processo de troca ele mesmo”; assim, chega-se ao modo efetivo pelo qual se dão os nexos funcionais de que falava o autor. Um conceito de sociedade fundamentado nas conexões que se estabelecem por meio da troca, ela própria abstrata e conceitualmente mediada, não é atingido pelas críticas de Hans Al- bert, conclui Adorno. Precisamente aí residiria uma distinção importante entre a doutrina posi- tivista e a doutrina dialética da sociedade [5]: a dialética não nega “essa objetividade conceitual que existe na própria coisa”, enxergando totalidade onde o positivismo vê uma diluída relação “de tudo com tudo”. Também na Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã, Adorno re- toma a réplica às afirmações de Albert, refletindo novamente sobre o problema da abstração no valor de troca. Nesse contexto, ele acrescenta uma formulação que é oportuna para estabelecer a passagem para um outro momento da reflexão adorniana sobre sociologia e dialética: aquele centrado na noção de mediação. [6] Diz Adorno (1983, p. 218): “O caráter abstrato do valor de troca está vinculado a priori à dominação do universal sobre o particular, da sociedade sobre seus membros coatos”. Na mesma aula – do dia 02/05/1968 – Adorno advertia: embora seja necessário registrar que o conceito de sociedade, enquanto con- ceito funcional, não seja dado no plano dos sentidos, não seja perceptível de modo imediato como mero fato, não obstante ele não é irracional, mas inteira- mente determinável pelo conhecimento, simplesmente na medida em que se revelam as complicações e as contradições a que o desdobramento do princí- pio da socialização necessariamente conduz. (ADORNO, 2008, p. 112) É precisamente nessa apreensão racional da sociedade que as mediações cumprem seu papel; mais especificamente, no desvelamento das relações entre universal e particular de que falava Adorno. Em Sociologia e pesquisa empírica, a categoria “mediação” aparece na descrição mesma do valor de troca enquanto abstração: aqui, a operação intelectual e prática realizada pelos agen- tes da troca recebe o nome de “mediação conceitual”. Sem deixar de remeter à doutrina da “me- diação conceitual de todo ente” de Hegel, que ele julga como indício do olhar daquele filósofo sobre algo decisivo, Adorno busca tratar dessa questão indo além da metafísica: “A pesquisa so- cial empírica não pode evadir-se do fato de que todos os estados de coisas que pesquisa, as con- dições subjetivas não menos que as objetivas, estão mediados pela sociedade.” Entretanto, essa ideia encontra-se exposta de forma mais detalhada nas suas reflexões dos anos 60. Em aula do dia 21/05/1968, por exemplo, ele volta a fazer referência a Hegel ao postular que “não existe nada entre o céu e a terra que não seja mediado pela sociedade”, e que essa mediação “implica que a Sociologia pode abordar verdadeiramente tudo o que existe mediante pontos de vista soci- ais”, incluindo a natureza (ADORNO, 2008, p. 169). Porém, como se dá efetivamente essa relação entre os fenômenos sociais e a sociedade, através das mediações? Na Introdução à controvérsia sobre o positivismo na sociologia alemã, Adorno (1983, p. 248) defende que ela é adequadamente apreendida partindo-se da imediatez, isto é, dos fenômenos. Sem esse momento imediato, para o autor, o próprio conceito mediato de sociedade não faria sentido; no entanto, aquele deve ser superado na medida em que o processo de conhecimento desvenda as referências à sociedade nele presentes. Na realidade objetiva, é dessa maneira que também se dá a relação entre universal e particular: os fenômenos sociais, si- tuados no polo da particularidade, possuem uma “universalidade imanente” (ADORNO, 1983, p. 238). Daí a grande relevância que o concreto singular toma na perspectiva dialética; relevância essa que Adorno considera de maior peso do que o próprio destaque que o positivismo confere ao ente singular, de forma fetichista. Na dialética, “porque o fenômeno singular encerra em si toda a sociedade, a micrologia e a mediação constituem contrapontos mútuos através da totali- dade” (ADORNO, 1983, p. 237). Ideia semelhante aparece quando o autor menciona a psicanáli- se freudiana: para Adorno (1983, p. 249), nessa tradição teórica “a sociedade ‘está contida’ em inumeráveis momentos” particulares. Portanto, pode-se afirmar que se chega à totalidade seguindo-se as mediações do pró- prio objeto: nisso também consiste a inseparabilidade entre objeto e método que Adorno ressal- tava já em 1957. Tal importância conferida às mediações se relaciona com a questão do primado do objeto, que, segundo Wolfgang Leo Maar (2006, p. 134), é “a ‘tese’ central que orienta a filo- sofia de Theodor Adorno em sua retomada do trajeto Kant-Hegel”. Essa ideia, que o autor de- senvolve principalmente a partir de sua Dialética Negativa, se refere ao problema do entrelaça- mento entre razão e história, deixado por Hegel, e pode ser resumida como “a objetividade re- traduzida ‘para fora’ da espiritualização idealista” (MAAR, 2006, p. 146). Em síntese, trata-se de uma objetividade destituída do vínculo identitário que, no pensamento de Hegel, se estabelecia entre sujeito e objeto, por meio do conceito do Espírito Absoluto. Na direção oposta, tal como observa Caio Vasconcellos (2009, p. 143) em sua leitura de Adorno, a esterilidade do positivismo advém da sua constituição como uma ‘mentalida- de fechada’ ao reconhecimento da pré-existência da ‘estrutura objetiva da so- ciedade’ e, por conta disso, de se estremecer em face do objeto, transformado em tabu. Contudo, faz-se necessário ainda observar como o autor compreende esse percurso pe- las mediações do objeto. Ele é conduzido por um procedimento central: a interpretação. Para Adorno (1983, p. 217), “a interpretação dos fatos conduz à totalidade, sem que esta seja, ela pró- pria, um fato”. Assim, os fatos manifestam “algo que eles mesmos não são”. Em outra passagem, o autor afirma que cabe justamente à sociologia desvelar as mediações, “cada uma das quais conduz à outra” (ADORNO, 1983, p. 249). Nesse sentido, Adorno (1983, p. 232) descreve o pro- cedimento da interpretação como uma “fisionomia social”: por esse termo, ele compreende a percepção da totalidade nos traços dos fenômenos. O conhecimento social, que se inicia com a “visada fisionômica” sobre a imediatez dos fatos, completa-se no desdobramento das mediações presentes nesses fatos, por meio da interpretação. Entre os dois níveis, argumenta Adorno, existe um “salto qualitativo”. Esse ponto é passível de ser ilustrado por um exemplo simples. Diz Adorno: Se um pensador sociológico observa repetidamente nas estações do metrô de Nova York que dos luminosos dentes alvos de uma beldade de cartaz, um se encontra rabiscado de preto, extrairá disto conclusões como a de que o gla- mour da indústria cultural, como simples satisfação compensatória, pela qual o espectador se sente previamente enganado, desperta ao mesmo tempo a agressão deste último. (ADORNO, 1983, p. 243) De forma semelhante procedem outros estudos sobre o tema da indústria cultural citados pelo autor em seu texto. Nas “análises de conteúdos” que eles realizam, possivelmente poder-se- ia encontrar tal olhar fisionômico, que desvenda as mediações sem se enquadrar nas exigências metodológicas do cientificismo, contra as quais Adorno polemiza. É nesse quadro de referência geral que se pode dizer que o autor constrói sua proposta dia- lética de sociologia. Todavia, a seleção dos argumentos chamados a compor esse quadro é ela própria fruto de um percurso interpretativo e, sendo assim, ladeada de inúmeras outras deter- minações não exploradas; determinações essas que, não obstante, não deixam de se fazer pre- sentes no pensamento complexo de Adorno. 4. Considerações finais A tentativa de realizar um itinerário exploratório no interior da reflexão filosófica e socioló- gica de Theodor W. Adorno, identificando e reconstruindo alguns de seus argumentos, se deu principalmente com o objetivo de cercar e compreender melhor sua proposta de sociologia, tal como elaborada em meio aos debates e trocas públicas de ideias. Paul-Laurent Assoun (1991, p. 53), que comenta a Escola de Frankfurt, afirma em uma passagem a propósito do debate aqui abordado: “Assinalemos como particularmente revelador o fato de que um dos elementos mais tangíveis de continuidade da história intelectual da Escola em todo o seu meio século de existên- cia é precisamente essa guerra dos métodos”. Nesse sentido, o exercício de interpretação da perspectiva adorniana, nessa polêmica epistemológica, permite um olhar sobre a decisiva con- tribuição desse autor, bem como sobre algumas das questões mais candentes da chamada teoria crítica da sociedade. Do ponto de vista de Adorno, o pensamento dialético toma relevo não apenas como índice de filiação a uma linhagem filosófica; mais do que isso, ele oferece uma perspectiva por meio da qual reconhecer o próprio objeto da reflexão sociológica, isto é, a sociedade enquanto totalidade. Não deixa de ser sintomático o fato, observado por Fredric Jameson (1997, p. 21), de que “dia- lética” é “uma palavra que ele [Adorno] utilizou muito mais em seus escritos sociológicos do que nos filosóficos”. Assim, transcendendo a quadra histórico-geográfica específica da Alemanha nos anos 60, os debates ali travados sobre a sociologia vieram a marcar a disciplina, principal- mente quando se leva em conta a importante circulação que teve o volume A disputa do positivismo na sociologia alemã, traduzido para diversos idiomas a partir dos anos 70. NOTAS * O autor, à época da submissão, cursava o 8º período do Curso de Ciências Sociais na Universi- dade de Brasília. E-mail: [email protected] [1] Como lembra Gabriel Cohn (2008, p. 21), porém, o termo “positivismo” nesse contexto não faz referência a doutrinas históricas específicas – como a de Auguste Comte, por exemplo -, em vez disso designando, de forma ampla, expressões cientificistas como as de Popper. A respeito dessa designação, Hans Albert considera que “[c]omo antes já Habermas - e, seguindo seus ras- tros toda uma série de autores desta tendência - Adorno acaba sendo vítima de seu próprio e um tanto diluído conceito de positivismo e do costume - tendencioso, mas corrente neste país - de integrar sob tal categoria tudo o que lhe parece criticável.” (Traduzido de ALBERT, 1973, p. 314.) [2] Todas as citações desse texto são traduções livres de ADORNO, 1973. [3] Traduzido de HABERMAS, 1999. [4] “Ao mesmo tempo, sem embargo, aquela aparência é o mais real de tudo, a fórmula com a qual se enfeitiçou o mundo” (ADORNO, 1973, p. 93). Se a racionalização capitalista moderna, para Weber, tem como contrapartida o desencantamento do mundo, para Adorno (1973, p. 82) “o desencantamento […] não é senão um caso especial do encantamento”. [5] Embora Adorno oponha frontalmente sua perspectiva dialética ao que ele considera positi- vismo, Hans Albert também reivindica para si o termo “dialética”; termo esse que, para ele, deve ser entendido “num sentido bem específico”, e “não no sentido daqueles filósofos que se encon-
Description: