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SOBRE O CONCEITO DE “INGENUIDADE ÉPICA” EM ADORNO Suene Honorato PDF

13 Pages·2012·0.48 MB·Portuguese
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Literatura e Autoritarismo Dossiê Theodor Adorno e o Estudo da Poesia SOBRE O CONCEITO DE “INGENUIDADE ÉPICA” EM ADORNO Suene Honorato1 Resumo: Em 1958, Theodor W. Adorno publicou o primeiro volume da série Notas de literatura, em que constava o ensaio “Sobre a ingenuidade épica”, escrito em 1943 como parte da pesquisa para a obra produzida com Horkheimer, Dialética do esclarecimento. Não por acaso é que os conceitos desenvolvidos nesta obra podem elucidar a noção de ingenuidade épica apresentada no curto ensaio de 1943. Neste artigo, pretendo analisar o conceito adorniano de “ingenuidade épica” à luz da relação entre mito e razão desenvolvida na Dialética do esclarecimento. A contradição no discurso épico entre o mito e o registro linguístico apresenta-se como o princípio reflexivo que permitirá aproximações com o discurso da razão esclarecida: ambos os discursos pretendem, por meio da objetividade, dominar o desconhecido, amenizar o fascínio e o medo provocados pelo que é obscuro. Porém, distinguem-se pelo fato de que o discurso épico atém-se ao particular, ao passo que a razão esclarecida atém-se ao universal. Dessa diferença, resulta a crítica que a ingenuidade épica direciona à razão esclarecida, pois, se inscrevendo no âmbito da ficção e abstendo-se da lógica classificatória que quer dar conta do universal, o discurso épico aproxima conceito e objeto a fim de produzir uma imagem do real. Palavras-chave: Adorno; ingenuidade épica; razão esclarecida. Abstract: In 1958, Theodor W. Adorno published the first volume of Notas de literatura, which included the essay "Sobre a ingenuidade épica”, written in 1943 as part of research for work produced with Horkheimer, Dialética do esclarecimento. Not by accident is that the concepts developed in this work may elucidate the notion of epic ingenuity presented in the short essay of 1943. In this article, I will analize the adornian concept of “epic ingenuity” in the light of the relationship between myth and reason developed in Dialética do esclarecimento. The contradiction in the epic discourse between the myth and linguistic register is presented as the reflexive principle which allows associations with the discourse of enlightened reason: both discourses intend, through objectivity, to dominate the unknown, lessen the fascination and fear caused by the obscurity. However, they are different because the epic discourse adheres to the particular, whereas the enlightened reason adheres to the universal. The criticism directed to the enlightened reason by the epic ingenuity results from that difference, since the epic discourse, proposing himself as a fiction and abstaining from the classificatory logic, associates concept and object to produce an image of the real. Key-words: Adorno; epic ingenuity; enlightened reason. 1 Doutoranda pelo Departamento de Teoria e História Literária do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sob orientação do Prof. Dr. Paulo Elias Allane Franchetti. Bolsista CNPq. E-mail: [email protected] 65 Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê nº 12, Novembro de 2012 – ISSN 1679-849X http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie12/ Literatura e Autoritarismo Dossiê Theodor Adorno e o Estudo da Poesia Na ingenuidade épica vive a crítica da razão burguesa (Adorno, 2003, p. 50). No ensaio “Sobre a ingenuidade épica”, Adorno (2003, p. 47-54) define o discurso épico a partir de uma contradição: por meio da linguagem o narrador intenta o registro de um material de natureza fungível e monótona, a saber, o mito. Embora o mito possa ser entendido como o próprio discurso narrativo proclamado pelo poeta (Oliveira, 2008, p. 141), aqui Adorno o considera ainda como distinto da linguagem, como matéria para a produção da narrativa épica. O mito identifica-se com um passado pré-histórico, um conhecimento mágico do mundo transmitido oralmente, por isso “fungível”, que prevê como o destino será cumprido, donde advém seu caráter “monótono”. No momento em que é registrado, mito e epopeia entram em contradição. Nas primeiras linhas do texto, essa contradição é apresentada a partir da seguinte metáfora: “tentativa de dar ouvidos ao ritmo insistente do mar ferindo a costa rochosa, a descrição paciente do modo como a água submerge os recifes para depois recuar marulhando, enquanto a terra firme brilha em sua mais profunda cor” (Adorno, 2003, p. 47). A metáfora compõe-se de elementos sólidos e fluidos, representantes da linguagem e do mito, respectivamente. Tais elementos se opõem de maneira dialética: da relação entre eles, cada elemento se torna participante do outro e o modifica. Na metáfora, esse movimento pode ser aferido da submersão e emersão dos recifes pela água, ou do “dano” que a água causa à rocha, sendo o discurso épico a tentativa de registrá-lo detalhadamente. O registro linguístico, algo “sólido e inequívoco”, ao pretender fixar um traço do mito, torná-lo idêntico, semelhante à lógica da linguagem, resulta, ele mesmo, em diferenciação, pois fixa algo digno de nota; ao passo que o mito, algo “fluido e ambíguo”, ao ser fixado pela linguagem épica, tornado não-idêntico, isto é, singular, resulta, ele mesmo, em indiferenciação, em semelhança com a lógica da linguagem. Em linhas gerais, é essa a característica do discurso épico a que Adorno atribui a “ingenuidade”. Porém, o conceito de “ingenuidade” em Adorno apresenta particularidades em relação à mesma noção desenvolvida por outros teóricos, como Schiller e Lukács. No final do século XVIII, Schiller publica Poesia Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê nº 12, Novembro de 2012 – ISSN 1679-849X 66 http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie12/ Literatura e Autoritarismo Dossiê Theodor Adorno e o Estudo da Poesia ingênua e sentimental (1991). Para compreender o que a poesia moderna tinha a dizer, Schiller contrapõe o poeta ingênuo (antigo) ao sentimental (moderno). O primeiro compreende o mundo a partir de uma realidade na qual a natureza (contingência que lhe inspira a necessidade do ato poético) oferece a noção de unidade. Para o homem moderno, essa noção não pode mais ser oferecida pela natureza, pois “[...] entre nós, a natureza desapareceu da humanidade, e [...] só a reencontramos em sua verdade fora desta, no mundo imaginado” (1991, p. 55); o ato poético centra-se então no sujeito reflexivo (será praticado sem motivação contingente). A relação com a natureza, que ainda é “a única chama de que se alimenta o espírito poético” (1991, p. 60), distingue o ingênuo do sentimental, já que o primeiro encontra-se unido a ela e o segundo dela cindido, devendo portanto buscá-la no Ideal, que o re-unirá consigo2. Embora Lukács, em A teoria do romance (2000), oponha não o poeta antigo ao moderno, mas o narrador épico ao romanesco, sua distinção tem um traço comum à de Schiller: o narrador épico tem diante de si um mundo “perfeito e acabado” (2000, p. 30) que se caracteriza pela totalidade, mesmo que esta seja produzida por uma limitação, pois “o círculo em que vivem metafisicamente os gregos é menor do que o nosso [...]” (2000, p. 30). Assim, as formas artísticas na antiguidade são dadas, representam uma operação de cópia do mundo. A partir do momento em que os limites do mundo são ampliados e perde-se o sentido de totalidade, elas necessitam ser criadas: “[a arte] não é mais uma cópia, pois todos os modelos desapareceram; é uma totalidade criada, pois a unidade natural das esferas metafísicas foi rompida para sempre” (2000, p. 34). Se para Schiller e Lukács o caráter ingênuo do poeta consiste na não- reflexividade, proporcionada porque sua relação com a natureza ou o mundo 2 Tanto para um como para o outro, a arte se realiza numa dimensão moral e busca o absoluto. Porém, para o ingênuo a moralidade está no que é natural e para o sentimental, é produto da liberdade da fantasia. Não se pode ignorar que em ambos existe a tensão entre sensibilidade e razão, embora o ingênuo se caracterize pelo primeiro termo e o sentimental pelo segundo. Mas é sempre na harmonia entre esses dois conceitos que ambos conseguirão realizar grandes obras poéticas. Para Schiller, a poesia é um gênero artístico que deve “dar à humanidade a sua expressão mais completa possível” (1991, p. 61), o que justifica a ponderação; se qualquer dos termos for sacrificado, a poesia resulta ou em aparência vazia (no caso do ingênuo) ou em extravagância (no caso do sentimental). 67 Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê nº 12, Novembro de 2012 – ISSN 1679-849X http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie12/ Literatura e Autoritarismo Dossiê Theodor Adorno e o Estudo da Poesia lhe oferece a totalidade como contingência, para Adorno ele já contém o princípio reflexivo. Porém, para compreender como Adorno insere na ingenuidade épica o elemento reflexivo é necessário voltar ao aspecto insinuado anteriormente: a relação que o narrador promove entre conceito e objeto. Para a teoria literária clássica, a maneira pela qual narrador e objeto da narração se conformam é uma constante na abordagem das diferenças entre os gêneros literários. Aristóteles em sua Poética (1997) define que, para as artes que imitam por meio da linguagem, são os objetos e as maneiras que as tornam distintas entre si. Segundo o filósofo grego, Homero imita homens superiores assim como Sófocles, mas à diferença deste, que deixa “as personagens imitadas tudo fazer”, coloca a ação na boca de um personagem (1997, p. 21). Em outras palavras: se o objeto da tragédia e da epopeia é coincidente, a maneira pela qual é imitado se distingue na assunção da primeira ou da terceira pessoa do discurso. O distanciamento temporal e espacial a que se coloca o narrador da epopeia em relação a seu objeto foi considerado, a partir da poética aristotélica, um dos traços distintivos do gênero em comparação com a tragédia ou a lírica por proporcionar a objetividade épica. Em tese, o olhar do poeta épico estaria menos sujeito às flutuações anímicas a que se prestam, especialmente, os poetas líricos. Por isso, na epopeia, o conceito estaria mais próximo daquilo que enuncia. Na definição de Antonio Medina Rodrigues, a Ilíada, por exemplo, é “um milagre nominalista: lá não se acredita que a palavra queira dizer algo mais do que já está dizendo” (2005, p. 11). Ao distanciar-se de seu objeto, o narrador faz com que o conceito dele se aproxime, pois pode contemplá-lo com neutralidade e, consequentemente, fixá-lo como aquilo que aconteceu: o conceito apreende o objeto. A objetividade proporcionada pela distância atesta a veracidade do que é relatado. Esse procedimento é identificado por Adorno como constitutivo da razão esclarecida. Se “o programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 19) promovido pela objetividade discursiva que pretende eliminar o que é obscuro, o discurso épico ao registrar o mito procura fazê-lo também com o intuito de desencantá-lo. “A epopeia imita Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê nº 12, Novembro de 2012 – ISSN 1679-849X 68 http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie12/ Literatura e Autoritarismo Dossiê Theodor Adorno e o Estudo da Poesia o fascínio do mito, mas para amenizá-lo” (Adorno, 2003, p. 49). Um e outro buscam dominar a natureza e ordená-la segundo um princípio racional cujo objetivo é eliminar o medo em face do desconhecido, promovendo assim uma totalidade em que todos os elementos são reconhecíveis e explicáveis. A relação entre mito e esclarecimento é tema da obra escrita em parceria com Horkheimer: Dialética do esclarecimento (1985). Os autores analisam o processo de racionalização no mundo ocidental a fim de desfazer a ilusão de progresso da razão, tendo em vista que a promessa de emancipação do homem não só deixou de ser concretizada como terminou em uma nova espécie de barbárie3. Para tanto, empreendem uma “arqueologia da razão esclarecida” (Oliveira, 2008, p. 135), procurando identificar e analisar desde suas manifestações iniciais até o seu desenvolvimento na modernidade. E é no mito que encontrarão as primeiras manifestações do processo de racionalização: “o mito queria relatar, denominar, dizer a origem, mas também expor, fixar, explicar” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 23). O mito já contém a vontade de dominação da natureza que será desenvolvida posteriormente pela ciência moderna, pela qual o preço a pagar é “a alienação daquilo sobre o que exercem o poder” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 24). Mas se o mito contém o esclarecimento, por outro lado este acaba por se converter em mito. “Do mesmo modo que os mitos já levam a cabo o esclarecimento, assim também o esclarecimento fica cada vez mais enredado, a cada passo que dá, na mitologia” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 26). Pois ao pretender negar o conhecimento mitológico que ratifica um destino, que se repete, que é monótono, ele promove a mesma sanção: à luz do conhecimento científico não há nada de novo a ser descoberto; tudo aquilo que é descoberto é nivelado pelo critério da dominação, satisfazendo-o segundo sua utilidade. O que escapa à dominação representa uma ameaça à organização do mundo, e necessita, portanto, ser mais do que depressa apreendido pela fórmula. Renuncia-se, pois, ao sentido: “No trajeto para a ciência moderna, os homens 3 Importante notar que o livro foi escrito no período em que os autores encontravam-se exilados nos Estados Unidos (onde Adorno residiu de 1937 a 1953) devido à perseguição aos judeus na Alemanha de Hitler. Portanto, tinham em mente não só o absurdo do regime nazista como a representação máxima do capitalismo tardio. 69 Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê nº 12, Novembro de 2012 – ISSN 1679-849X http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie12/ Literatura e Autoritarismo Dossiê Theodor Adorno e o Estudo da Poesia renunciaram ao sentido e substituíram o conceito pela fórmula, a causa pela regra e pela probabilidade” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 21). O esclarecimento rejeita o mito como crença em uma inverdade sem, contudo, identificar que o mito já contém, como ele próprio, uma vontade ordenadora, e ainda sem identificar que ele mesmo, a partir da renúncia ao sentido, faz com que a verdade por ele defendida se torne crença. A interpretação alegórica da Odisseia que identifica em Ulisses o “protótipo do indivíduo burguês” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 53) está calcada na relação dialética entre mito e esclarecimento. Em ambos, dominação e exploração têm como objetivo a autoconservação do homem, observada na Odisseia a partir da astúcia de Ulisses, que se submete às leis de seu mundo para lográ-las. Evidencia-se aí a consciência de Ulisses quanto ao fato de que o conceito pode modificar o objeto: “Surge assim a consciência da intenção: premido pela necessidade, Ulisses se apercebe do dualismo, ao descobrir que a palavra idêntica pode significar coisas diferentes” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 65). O gigante Polifemo é logrado com esse artifício. Considerado como incivilizado, pois não cultiva a terra, não sabe receber o estrangeiro e não vive em uma sociedade onde se decidem leis, Polifemo domina a natureza pela força física, contra a qual Ulisses e seus companheiros pouco tinham a fazer. Dentro de sua gruta, são devorados dois de seu bando a cada um dos três dias que passam na caverna do gigante. Enquanto isso, Ulisses e os seus tramam a vingança: preparam uma lança, embriagam Polifemo e furam-lhe o olho único. Antes, porém, Ulisses lhe havia declarado: “Nulisseu ou Ninguém é meu nome” (Homero, 2007, p. 135). Com isso, aos gritos do gigante de que “é Nulisseu! Ninguém me agride, Ninguém me mata” (Homero, 2007, p. 137) os demais habitantes da ilha não socorrem o gigante agredido, permitindo que Ulisses e os companheiros restantes cheguem a salvo à embarcação deixada no porto. Quase ao final do relato, conclui Ulisses: [...] O gigante me menosprezava. Pensava que estava lidando com uma criança. Mas na minha cabeça eu já elaborava um plano para salvar da morte meus companheiros e a mim. Muitos Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê nº 12, Novembro de 2012 – ISSN 1679-849X 70 http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie12/ Literatura e Autoritarismo Dossiê Theodor Adorno e o Estudo da Poesia planos e enganos eu revolvia na mente, pois o que estava em jogo era a vida [...] (Homero, 2007, p. 137). O processo desenvolvido por Ulisses para se autoconservar denuncia o formalismo da sociedade burguesa (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 65). A observação estrita do contrato descobre uma brecha para que ele seja logrado4. Ao primeiro contato com Polifemo, Ulisses procura cumprir o contrato de hospitalidade acordado entre civilizados, que prevê o estabelecimento de laços fraternos entre quem chega e quem recebe: diz que veio de Tróia e procura voltar para casa, que cultua Zeus e pede que as obrigações para com o estrangeiro sejam observadas pelo gigante. Mas Polifemo é descendente de Posidon, que havia sido destituído do governo olímpico por Zeus; declara, assim, que não cumprirá com as obrigações de hospitalidade. Porém Ulisses, como indivíduo civilizado que é, continua a cumprir o contrato, mas desta vez com astúcia: o presente a ser entregue como prova de sua civilidade, o vinho inigualável que recebera de Marão, é oferecido a Polifemo para que a embriaguez lhe turve os sentidos, tornando-o indefeso à agressão, e não para honrá-lo; o nome a que se atribui vem acompanhado da referência aos laços familiares, como é costume, mas ambos são tão vagos que permitirão enganar o gigante (“[...] Nulisseu ou Ninguém / é meu nome. Nulisseu me chamaram minha mãe e meu / pai. Por Nulisseu me conhecem todos os meus amigos” – Homero, 2007, p. 135). Dessa forma, Ulisses respeita o contrato de hospitalidade, mas termina por não estabelecer relações fraternas com o gigante, as quais ele recusa expressamente ao final do episódio, quando Polifemo, tendo descoberto na agressão de Ulisses contra ele a concretização de uma profecia, lhe pede que volte para então lhe oferecer dádivas de hóspede. Numa sociedade em que a força física foi interditada do exercício do poder a fim de se manter civilizada, a palavra impõe-se como o seu substituto. 4 Na análise do episódio das sereias, a observação dessa brecha no contrato é evidenciada: Ulisses ouve o canto das sereias, mas furta-se ao esquecimento entorpecente que ele provoca por estar atado ao mastro, pois “o contrato antiquíssimo não prevê se o navegante que passa ao largo deve escutar a canção amarrado ou desamarrado” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 64). Assim, ele pode fruir a beleza do canto sem sofrer as consequências previstas. 71 Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê nº 12, Novembro de 2012 – ISSN 1679-849X http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie12/ Literatura e Autoritarismo Dossiê Theodor Adorno e o Estudo da Poesia Mas o indivíduo astucioso “está objetivamente condicionado pelo medo de que a frágil vantagem da palavra sobre a força poderá lhe ser de novo tomada pela força se não se agarrar o tempo todo a ela” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 72). A consciência da fragilidade do poder exercido por meio do discurso impele a uma organização formal em que tudo esteja sob o domínio da fórmula: “A astúcia da autoconservação vive do processo que rege a relação entre a palavra e a coisa” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 65). A narrativa de Ulisses no interior da Odisseia dá sinais dessa organização formal do mundo, em que a palavra perde sua força mítica de destinação à qual não se pode fugir: “[...] ao introduzir no nome a intenção, Ulisses o subtraiu ao domínio da magia” (Adorno; Horkheimer, 1985, p. 71). Com a intenção – a consciência de que um nome pode significar coisas diferentes e promover a anulação do contrato pelo seu próprio cumprimento –, a palavra passa a ser utilizada em acordo com uma finalidade específica, um resultado a atingir. A proximidade entre conceito e objeto, quando Ninguém passa a designar para o gigante o próprio Ulisses, é o que permite o engodo. A astúcia de Ulisses é índice da consciência sobre a manipulação linguística. Por isso, Adorno e Horkheimer identificam no herói homérico o protótipo do homem burguês. A Odisseia é, assim, uma epopeia cujo herói poderia figurar num romance. Para Lukács (2000, p. 67), uma das características do herói épico é que ele “nunca é, a rigor, um indivíduo. [...] seu objeto não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade”. Ulisses, porém, busca resolver seu próprio destino: ele quer, antes de tudo, voltar para casa e retomar o governo de Ítaca. Já não está preocupado com a glória de seus feitos, o que implicaria inclusive não temer a morte, pois morrer em combate, como ocorre com Aquiles, é um ato digno de glória, ao contrário do que sucede a Agamenon que, ao voltar para casa, é assassinado numa emboscada organizada pelo amante de sua esposa, o que turva a fama de seus feitos em guerra. Ulisses não combate em nome de uma nação; ele procura sobreviver às peripécias que o destino lhe oferece. Coloca-se, pois, em contraposição ao mito, vencendo-o pela astúcia: Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê nº 12, Novembro de 2012 – ISSN 1679-849X 72 http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie12/ Literatura e Autoritarismo Dossiê Theodor Adorno e o Estudo da Poesia A oposição do ego sobrevivente às múltiplas peripécias do destino exprime a oposição do esclarecimento ao mito. A viagem errante de Tróia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por um eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza e que só vem a se formar na consciência de si (Adorno; Horkheimer, 1987, p. 55). Mas se o herói da Odisseia apresenta semelhanças com o herói romanesco, que enfrenta o mundo natural para configurar sua subjetividade, o narrador homérico configura-se ainda como narrador antigo, no sentido que lhe atribuem tanto Adorno quanto Benjamin. Em “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, Benjamin (1987) contrapõe o narrador antigo (contador de histórias) ao contemporâneo: o primeiro seria aquele que compartilha uma experiência, que sabe dar conselhos; aquele cuja narrativa tem uma “dimensão utilitária”, pedagógica. A sabedoria revelada por meio das narrativas antigas (como a poesia épica ou os contos de fada) instiga o ouvinte, porque não é dada de modo explicativo. O narrador moderno (identificado ao narrador do romance) não tem mais experiências a compartilhar, não dá conselhos, não demonstra sabedoria. A invenção da imprensa transformou o ouvinte em leitor, e o narrador em “um indivíduo isolado, que não mais pode falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes [...]. Escrever um romance significa, na descrição de uma vida humana, levar o incomensurável a seus últimos limites” (Benjamin, 1987, p. 201). Segundo Benjamin, a informação é uma influência decisiva no romance e provoca sua crise, pois a exigência de plausibilidade desemboca em verificação imediata. Disso decorre que a narrativa moderna precisa oferecer explicações, no mais das vezes psicologizantes, para o comportamento das personagens. O mistério foi substituído pelo contexto imediato que justifica sua não-exemplaridade. A discussão feita por Adorno em “Posição do narrador no romance contemporâneo”5 parte desse mesmo pressuposto em relação à incomunicabilidade da experiência na modernidade. E este é o paradoxo 5 Cf. Adorno, 2003, p. 55-63. Este ensaio foi apresentado pela primeira vez em uma conferência no ano de 1954. E embora não haja nele nenhuma referência ao texto de Benjamin, Adorno trabalha com conceitos e exemplos muito semelhantes aos encontrados em “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”. 73 Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê nº 12, Novembro de 2012 – ISSN 1679-849X http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie12/ Literatura e Autoritarismo Dossiê Theodor Adorno e o Estudo da Poesia enfrentado pelo narrador romanesco: “não se pode mais narrar, embora a forma do romance exija a narração” (Adorno, 2003, p. 55). Para Adorno, na medida em que se perde a “identidade da experiência, a vida articulada e em si mesma contínua” (2003, p. 56), o romance deve dar conta do que está para além do relato, já que este foi transposto cada vez mais ao domínio da reportagem e dos produtos da indústria cultural. Além disso, a objetividade épica foi substituída pelo subjetivismo: o narrador “não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la [...]” (Adorno, 2003, p. 55). Já o narrador épico, como ocorre nas epopeias homéricas, ainda é aquele que tem algo especial a dizer, que se ocupa da experiência a ser comunicada, e pretende, com isso, algum ensinamento. Mesmo que se diga que a Odisseia é a narrativa de um indivíduo singular, e não de um representante da coletividade, ao narrar a sua própria história Ulisses está ocupado com a exemplaridade da experiência a ser compartilhada, a qual possui um sentido pedagógico para o ouvinte: as cerimônias de recebimento do estrangeiro, a preocupação com valores de civilidade, a importância do culto aos deuses, dentre outros. Ulisses, como narrador, permanece distante temporal e espacialmente das ações narradas e se resguarda, até certa medida, do envolvimento direto com os demais personagens ou ainda de se pronunciar a respeito deles, o que contribui para a objetividade de seu relato. Assim, o narrador homérico – seja quando fala em terceira pessoa, seja quando dá voz a um personagem – é um narrador ingênuo, no sentido adorniano. Ele busca registrar o mito de maneira a amenizar o seu mistério na medida em que o registro o fixa como aquilo que aconteceu, ao mesmo tempo em que lhe confere a singularidade do acontecido. Distancia-se do objeto a fim de tornar-se o mais objetivo possível, procurando fazer com que conceito e objeto se aproximem de maneira a promover o “milagre nominalista”, o qual Adorno aproxima do princípio da razão esclarecida. Porém, entre a ingenuidade épica e a razão esclarecida, Adorno estabelece a seguinte distinção: a ingenuidade épica atém-se ao particular, enquanto a razão esclarecida atém-se ao universal. A razão esclarecida toma a objetividade épica como uma estupidez por vincular conceito e objeto no que têm de particular. O discurso épico “agarra-se Revista Eletrônica Literatura e Autoritarismo – Dossiê nº 12, Novembro de 2012 – ISSN 1679-849X 74 http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie12/

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Dossiê Theodor Adorno e o Estudo da Poesia. 65 Revista Resumo: Em 1958, Theodor W. Adorno publicou o primeiro volume da série .. organizada pelo amante de sua esposa, o que turva a fama de seus feitos em guerra.
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