Limiar – vol. 2, nº 3 – 2º semestre 2014 Qual a meta? Sobre Leon Battista Alberti Mário Henrique Simão D’Agostino Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Universidade de São Paulo Resumo: A prescrição das igrejas de planta central, no tratado De re aedificatoria, tem suscitado indagações várias sobre a religiosidade de Leon Battista Alberti. Em simultâneo ao otimismo do tratadista com as “invenções” e “progressos” humanos, um elenco de escritos descerram juízos pessimistas sobre as instituições sociais e a vida em comum. Perquirir as diferentes modalidades compreendidas pela epistemologia de Alberti permite melhor perfilar as visões de natureza, de ordem cívica e do sagrado próprias do humanista. Palavras-chave: Leon Battista Alberti, Rudolf Wittkower, De re aedificatoria, renascimento, tratados de arquitetura. Abstract: The prescription of central plant churches in the treatise De re aedificatoria has raised several questions about the religiosity of Leon Battista Alberti. Beside the optimism that Alberti demonstrates with “inventions” and human “progress”, the pessimistic judgments about social institutions and civil life are unveiled in some of his writings. The assessment of the different modalities of Alberti’s epistemology allows better profiling the humanist views of nature, civic and sacred order. Keywords: Leon Battista Alberti, Rudof Wittkower, De re aedificatoria, renaissance, treatises on architecture. A publicação de Princípios da Arquitetura na Idade do Humanismo, de Rudolf Wittkower1, em pouquíssimo tempo 1 Rudolf Wittkower, Architectural principles in the age of Humanism, London, The Warburg Institute, 1949 & Academy Editions, 19855. 165 Limiar – vol. 2, nº 3 – 2º semestre 2014 granjeou repercussão extraordinária, surpreendendo o próprio autor, como ele assim testemunha no prólogo à edição italiana de 1964, com tradução de seu punho: “embora com uma argumentação não muito fácil, este livro recebeu uma acolhida inesperadamente cordial, quando, em 1949, saiu a primeira edição. A reação que esse provocou, para minha surpresa, foi algo mais que um simples reconhecimento. [...] O volume possui um caráter puramente histórico, abrangendo o período entre 1450 e 1580; mas pude ver, com a satisfação mais viva, que ele significou alguma coisa para uma geração de jovens arquitetos»2. Tais palavras, comovidas, comoventes, cobraram redação num ambiente muito distinto daquele em que veio ao lume o escrito original, quando o historiador já havia se transferido aos Estados Unidos, para, em 1955, assumir o cargo de professor e diretor do Departamento de História da Arte e de Arqueologia da Columbia University3. Transcorridos quinze anos da primeira edição, o autor memora, no mesmo parágrafo de abertura à supracitada tradução italiana, as palavras de Kenneth Clark publicadas em artigo da Architectural Review, no qual o inglês compendia o mérito primeiro da obra: “fazer justiça, de uma vez por todas, à compreensão hedonista, ou meramente estética, da Arquitetura do Renascimento”4. Reconhecimento, avalizado por Wittkower, do cerne e centro pulsante de todo o trabalho, ainda que exposto de forma demasiado lacônica nos dois parágrafos que introduzem a 2 Rudolf Wittkower, Principî architettonici nell’età dell”Umanesimo, trad. di R. Wittkower, Torino, Giulio Einaudi editore, 19942, p. 3. 3 Cf. Richard Krautheimer, “Introduzione”, in Wittkower, Principî Architetto- nici..., op. cit., p. XVI. 4 Idem, p. 3. 166 Limiar – vol. 2, nº 3 – 2º semestre 2014 Parte Primeira do livro, intitulada: “As igrejas de planta central no Renascimento”. Reconhecimento, sobretudo, da limitada interpretação oitocentista, mormente a de matriz ruskiniana, a ser averiguada pelo leitor no transcorrer do contra-argumento proposto na obra. Que se recorde, ainda uma vez, a nota de número um, com os arrazoados lapidares d’As Pedras de Veneza, contra os quais se investe o historiador alemão, a derruir as falésias românticas: “pagã na origem, soberba e ímpia no seu renascimento, paralisada na sua velhice. [...] uma arquitetura que aparece imaginada para fazer dos seus arquitetos plagiadores, dos seus operários escravos, dos seus habitantes sibaristas; uma arquitetura na qual o intelecto é preguiçoso, impossível a invenção, mas toda luxúria é saciada, toda insolência corroborada” 5. Perfilava-se, pois, um áxis que, embora matricial, esteve longe de ser diretor ou unissonante em toda a investigação. Sabe-se que somente um ano antes do término da obra, Rudolf Wittkower decide alterar o título, passando do abrangente Estudos sobre a Arquitetura do Renascimento para o onicompreensivo Princípios da Arquitetura na Idade do Humanismo. A alteração acompanhava a ascensão de uma figura-chave em todo o argumento, qual seja, o skhema do “homem vitruviano”, esteio de todo o urdimento pelo qual o autor conecta a predileção albertiana pelo tipo de planta central das igrejas cristãs com uma Weltanschauung humanista que reserva ao homem, a ocupar sumo posto na ordem da criação divina, a condição de microcosmo da ordem maior da natureza6. 5 Idem, ibidem, p. 7 (John Ruskin, Stones of Venice, London, 1851-53, vol. III, cap. IV, § 35). 6 “De fato”, observa Frank Zöllner, “a inserção na obra de Wittkower do homem vitruviano, seja como imagem fundamental do seu livro, seja como símbolo da arquitetura renascentista, se deve a uma mudança de ideia de último momento. 167 Limiar – vol. 2, nº 3 – 2º semestre 2014 Nessa construção teórica, Alberti, ombreado por Leonardo, assume linha de frente, pois a sua tratativa dos templos de planta central dá lastro a uma compreensão de Deus, do mundo e do homem como irmanados em uma mesma ordem racional, logos que assegura seja a autonomia e responsabilidade humanas sobre suas ações nas esferas pública e privada, suas ações no domínio da polis – num estreito conúbio entre ética e política, consoante a iteração de fórmulas all’antica –, seja a cognição, senão da essência, por certo dos vestigia do divino a guiar, como exemplos ungidos por princípios lógicos, a esfera da vita activa. Com o pêndulo que assim se perfila, não basta afirmar que o primeiro lado tem suscitado, até então, menos alarido, devido às preceituações precisas de Alberti de esquemas racionais, belos e utilitários, suas ponderações sobre o adequado (decor, decens) no domínio da tekhne, sobre o princípio de justiça como consenso quanto ao bem comum e o bom governo da cidade. Ou, por outro lado, que o fiel a pender do humano para o divino no constructo wittkoweriano, – sempre mais controverso depois dos estudos de Eugenio Garin7 – é demasiado esperançoso acerca da dignità dell’uomo. O fiel que conecta um e outro lado da balança versa sobre o sentido do logos como metro para a condução da vida e como Sabemos agora que Wittkower, até novembro de 1948, queria dar ao seu livro o título Estudos sobre a Arquitetura do Renascimento, mas depois, no verão de 1949, mudou-o para Princípios da Arquitetura na Idade do Humanismo»; F. Zöllner, “L’uomo vitruviano di Leonardo da Vinci, Rudolf Wittkower e l’Angelus Novus di Walter Benjamin”, in Raccolta Vinciana, Fascicolo XXVI, Milano, Castello Sforzesco, 1995, p.331. 7 Cf. Eugenio Garin, “Studi su L. B. Alberti” (especif. “Miseria e grandezza dell’uomo” e “Appendice I : I morti”), in E. Garin, Rinascite e rivoluzioni. Movimenti Culturali dal XIV al XVIII secolo, Roma-Bari, Ed. Giuseppe Laterza & Arnoldo Mondadori, 19922, pp. 161-192. 168 Limiar – vol. 2, nº 3 – 2º semestre 2014 veículo de intelecção do divino. Qual sua potência cognitiva, direcionada seja para o alto seja para o baixo? Não há como disjungir a aposta albertiana na capacidade humana de se consumar o Ordo no domínio existencial, aferida em esplêndidas páginas de seu tratado De re aedificatoria, e a correlata perspectiva dirigida ao domínio metafísico, ou antes – para não falar, por ora, em metafísica –, a correlata perspectiva sacra – para também não falar, por ora, em teologia ou religião – implicada na premissa do poder da razão humana. Nada mais distante do “filisteísmo” delatado por Ruskin, dentre outros, do que a aposta de Wittkower em uma Renascença digamos “pré-iluminista”. Falamos de Luzes; e convém acenar positivamente para as conjecturas de Frank Zöllner sobre a importância que, na construção wittkoveriana, assumiram as discussões, durante os anos 30 e 40, em torno do arquiconhecido Bilderatlas legado por Aby Warburg aos integrantes do seu Instituto londrino – em particular, sobre a Prancha B das três primeiras que compõem o painel das imagens, nucleada pela figura de Leonardo da Vinci sobre o homem ad quadratum e ad circulum vitruviano8. Responsável pela fototeca do instituto londrino, Wittkower não poderia permanecer indiferente às imagens e comentários de Warburg sobre a referida prancha: “Diversos graus de influência do sistema cósmico sobre o Homem. Correspondências harmônicas. Em seguida, redução da harmonia à geometria abstrata ao invés daquela determinada cosmicamente (Leonardo)”9. 8 Op. cit., pp. 331-333. 9 Cf. Italo Spinelli & Roberto Venuti (a cura di), Mnemosyne. L’Atlante della memoria di Aby Warburg, Roma, Artemide Ed., 1999, Tavole, p. 29; Zöllner, 169 Limiar – vol. 2, nº 3 – 2º semestre 2014 Sabe-se do fascínio de Warburg pelos paralelos que se fiavam entre culturas tão díspares acerca da «Harmonia Cósmica”, a abranger, na prancha B, figurações como a de Santa Hildegarda de Bingen, do séc XII, de Hércules dominador do mundo com seus membros assinalados pelos signos do zodíaco, do Homem Zodiacal do Livro de Horas do Duque de Berry (c. 1415), o pentagrama mágico segundo a ilustração de Agrippa von Nettesheim para o De occulta philosophia, de 1510, ou a subdivisão da mão segundo os planetas, também de von Nettesheim (ambas as imagens extraídas do capítulo XXVII), dentre outras. Todavia, o vetor de ‘apaziguamento’ do homem diante das forças da natureza assumia singular importância nas imagens de Leonardo e Dürer10. Para além das significações mais profundas perscrutadas por Warburg na referida prancha, é inegável seu influxo na articulação do primeiro capítulo de Princípios da Arquitetura na Idade do Humanismo. Fiava-se, pois, uma linha de reflexão com cume nas novas inquirições sobre o Ser e a natureza do Divino, pela qual a fórmula pitagórica e mistérica do kosmos como “unidade do diverso e conciliação do discordante” (Proclo) vinha reinterpretada pelo vertiginoso mos geometricus de Nicolau de Cusa: A figura geométrica mais perfeita é o círculo, ao qual vem por isso conferido um significado especial. Para entendê-lo plenamente deveremos voltar por um instante a Nicolau de Cusa, o qual tinha transformado a hierarquia escolástica das esferas estáticas (das imóveis esferas fixas com respeito a um centro, a terra) cit., nota 6, p. 356. 10 Italo Spinelli & Roberto Venuti (a cura di), Mnemosyne..., cit., p. 29. 170 Limiar – vol. 2, nº 3 – 2º semestre 2014 em um universo em substância uniforme, privado de qualquer centro físico ou ideal. Neste novo mundo de infinitas relações a certeza incorruptível da matemática assumia uma importância sem precedentes. Para Nicolau de Cusa a matemática é o veículo necessário para penetrar o conhecimento de Deus, o qual deve ser configurado por meio do símbolo matemático.11 A remissão de Wittkower não poderia ser outra senão à do capítulo primeiro de Indivíduo e Cosmo na Filosofia do Renascimento, de Ernst Cassirer12. A matemática estendida integralmente ao espaço físico, a matematização integral da natureza, conduzia, pois, em simultâneo, a uma nova e radical intuição e intelecção da essência divina. A ideia de uma mudança na «estrutura cognitiva» (e penso que, mais do que uma nova Weltanschauung, conviria falar de uma nova forma mentis), cara, por igual, ao amigo Cassirer, mentor maior do instituto naqueles anos, magistralmente exposta em seu Indivíduo e Cosmo, propiciava convergência ou unidade sinóptica, depois de anos de pesquisa, a um conjunto de estudos não tão orgânicos como viriam a se apresentar na versão final dos Princípios da Arquitetura. Ciente de que a inquirição matemática da ordem cósmica como veículo primeiro para a definição de Deus tinha suas flamas originais entre órficos e pitagóricos, sendo continuada por Platão e neoplatônicos – i.e. Plotino, pseudo-Dionísio Areopagita e teólogos místicos medievais, Wittkower ultimava: “Por que então 11 Rudolf Wittkower, Architectural principles…, cit., p.38. 12 Idem, ibidem, n. 116, p.38; Ernst Cassirer, Individuo e cosmo nella filosofia del Rinascimento, trad. di Federico Federici, Firenze, La Nuova Italia, 19742. 171 Limiar – vol. 2, nº 3 – 2º semestre 2014 [...] os construtores de catedrais não tentaram traduzir visualmente esta concepção, por que somente com o Quattrocento as plantas centrais das igrejas se tornaram a expressão mais apropriada do divino?” Ao que assentia: “A resposta está na nova disposição científica para com a natureza, glória maior dos artistas italianos do Quattrocento. Propriamente os artistas, tendo à frente Alberti e Leonardo, deram considerável contribuição à consolidação e à vasta difusão da interpretação matemática do cosmo material”13. Dentre as muitas reações à hipótese diretriz de seu livro, um historiador merece particular atenção, Otto von Simson, que, sete anos após o lançamento de Princípios, vem à baila com seu A Catedral Gótica, investindo: “o único defeito que encontro nesta brilhante exposição do simbolismo da arquitetura renascentista [feita por Wittkower] é a crença do autor de que a ideia de reproduzir no templo a harmonia do cosmo por meio das proporções equivalentes às consonâncias musicais tem sua origem no Renascimento. Como demonstrarei, esta mesma ideia dominava a teoria e a prática da arquitetura medieval. Na teoria das proporções como em tantos outros temas uma ininterrupta tradição une o “Renascimento” com a Idade Média, não obstante o redescobrimento e a imitação das ordens arquitetônicas clássicas”14. Reportando-se a Santa Hildegarda de Bingem, São Bernardo de Clairvaux, Abade Suger, dentre outros, von Simson iterava a quaestio teologal implicada na formulação de Wittkower: a participação das coisas mundanas no divino – em última instância 13 Ibidem, p. 38. 14 Otto von Simson, La Catedral Gótica: los orígenes de la arquitectura gótica y el concepto medieval de ordem, trad. de Fernando Villaverde, Madrid, Alianza Ed., 19885, p.18, nota 3. 172 Limiar – vol. 2, nº 3 – 2º semestre 2014 [ou primeira]: a methexis platônica, condição primeira a ser considerada, no arcabouço filosófico do Ateniense, para a ascese ao hyperouranios topos, para os esforços de intelecção do divino; vale dizer, nos anos Mil e Cem e no Duzentos, arco temporal que o autor abrange em seu estudo sobre as catedrais góticas, já se promovia aquela «habilitação do visível” com a qual Plotino, há muito, requalificava o valor da imagem, nos marcos da anamnesis platônica: “Na vida religiosa dos séculos XII e XIII”, pondera von Simson, “aparece como motivo dominante o desejo de contemplar a verdade sagrada com os olhos corporais”15. Nesse diapasão, teológico, a “teoria das proporções harmônicas” assume singular importância, equiparando-se, em efeito, às reflexões sobre a chamada “metafísica da luz”. A sorte de conspiração amistosa entre a intelecção do ordo divino mediante a matemática – cara à Escola de Chartres – e o movimento anagógico de ascese ao divino mediante a luz, como apregoava o Abbé Suger, inspirado por pseudo-Dionísio Areopagita, reportar-se-iam a um e mesmo parti pris. Mais: a refutação da “compreensão hedonista, ou meramente estética, da Arquitetura do Renascimento”, asseverada por Clark, em nada apagava o locus classicus a deslindar o cosmo do Renascimento Italiano: a questão da visualidade. Se Wittkower tinha ou não consciência de argumentos favoráveis a um alargamento do campo investigativo para os séculos XII e XIII quando redigiu seus Princípios da Arquitetura, argumentos que retrocediam a inquirição dos “vestígios do divino” na ordem da natureza, para aquém de Alberti ou Leonardo, a boa parte do Medievo, é conjectura que em nada altera a hipótese 15 Ibidem, p. 18. 173 Limiar – vol. 2, nº 3 – 2º semestre 2014 diretriz da obra, e, em substância, a sua compreensão da ordem simbólica em jogo no ‘olhar matemático’ renascentista. Na tradução italiana de 1964, que, como dito, foi curada pelo próprio historiador, a resposta às objeções de von Simson comparecem, ainda que tênues, com sentido certeiro: “mais de uma vez fui criticado por não ter dedicado suficiente atenção ao modo com que a Idade Média afrontou o problema da proporção. Mas era minha intenção, claramente expressa no título, escrever um livro sobre o Renascimento.” E, aditando um apêndice à referida tradução, inédito, conclui: “Fui sempre bem consciente da sobrevivência, em toda a Idade Média, da concepção pitagórico- platônica das proporções musicais [...] mas também von Simson não me convence de que elas tiveram uma parte predominante na arquitetura medieval.”16 “Parece-me que durante a Idade Média as proporções métricas vieram raramente utilizadas como princípio de integração, no qual todas as partes devessem se conformar”17. Quatro anos antes, em 1960, Wittkower publicava na revista Daedalus um detalhado estudo sobre as distintas concepções do problema da proporção no curso da história, – os assim chamados «sistemas de proporção”, segundo sua terminologia [uma antecipação, pode-se dizer, às respostas a Otto von Simson em Princípios da Arquitetura]–, advertindo que a Idade Média sempre privilegiou a geometria pitagórico-platônica, ao passo que o «Renascimento e os períodos clássicos preferiram a faceta numérica, vale dizer, aritmética dessa tradição”18. Para a Idade 16 Rudolf Wittkower, Principî architettonici…, cit., “Appendice II: Il problema dei rapporti commensurabili nel Rinascimento”, p. 152, nota 1. 17 Ibidem, p. 152. 18 Rudolf Wittkower, The changing concept of proportion, «Daedalus», 174
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