UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LINGUÍSTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SEMIÓTICA E LINGUÍSTICA GERAL Paulo Sérgio de Proença Sob o signo de Caim: O uso da Bíblia por Machado de Assis (versão corrigida) São Paulo 2011 UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LINGÜÍSTICA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SEMIÓTICA E LINGÜÍSTICA GERAL Sob o signo de Caim: O uso da Bíblia por Machado de Assis (versão corrigida) Paulo Sérgio de Proença Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Semiótica e Lingüística Geral do Departamento de Linguística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de Doutor. Orientador: Prof. Dr. Izidoro Blikstein São Paulo 2011 A meus pais (in memoriam) Com eles aprendi a descobrir a Bíblia. AGRADECIMENTOS Esta página não é mera formalidade. Ela carrega a emoção do reconhecimento de que muitas pessoas, de perto e de longe, direta ou indiretamente, contribuíram para a realização deste trabalho. Agradeço muito especialmente ao Prof. Dr. Izidoro Blikstein, meu orientador, que já acompanhou uma geração de pesquisadores, muitos dos quais ocupam posição de destaque no panorama da pesquisa linguística no Brasil. A confiança a mim dedicada, o apoio e a orientação foram decisivos para a conclusão da pesquisa. Minha gratidão é extensiva aos professores Dr. José Luiz Fiorin e Dr. Dilson Ferreira da Cruz Júnior, pelas oportunas observações e sugestões feitas por ocasião do Exame de Qualificação. Aos funcionários, alunos, ex-alunos, professores e ex-professores da Faculdade de Teologia da Igreja Presbiteriana Independente do Brasil, pelo companheirismo e incentivo. A gratidão não é menor à Profa. Dra. Alice Yoko Horikawa, pela amizade e pela competente revisão deste trabalho. Sou também particularmente grato a todos os meus familiares, principalmente aos mais chegados Shirley, Paula e Rodrigo. Registro minha gratidão a amigos e amigas, companheiros de estudos e da jornada da vida, anônimos tantos, mas nem por isso menos importantes. NOTAS Este trabalho fará muitas remissões à Bíblia. Uma dificuldade inicial diz respeito a edições e traduções; há muitas, com diferenças significativas entre elas, inclusive com segmentação de nichos1. Infelizmente não dispomos da edição utilizada por Machado, como seria o ideal em casos nos quais a colação com o original seria decisiva para elucidação de eventuais dúvidas ou curiosidades; felizmente não é o nosso caso, em que a presença da Bíblia pode ser atestada por outras traduções e por outros meios. Usaremos a tradução de João Ferreira de Almeida, revista e atualizada, por ser de boa aceitação entre estudiosos e por tender à literalidade. Quando for utilizada outra tradução ou edição, o fato será indicado. Remissões à Bíblia contam com falta de uniformidade. Por questão de conveniência, será seguido o padrão da Sociedade Bíblica do Brasil, a seguir exemplificado: Gn 1.1 (Gênesis, capítulo 1º., versículo 1º.); Gn 1.1, 4 (Gênesis, capítulo 1º., versículos 1º. e 4º.); Gn 1.1-4 (Gênesis, capítulo 1 º, versículos 1º. ao 4º.); Gn 1.1-4, 11 (Gênesis, capítulo 1º., versículos 1º. ao 4º. e versículo 11); Gn 1.1-4; 11.6-8 (Gênesis, capítulo 1º., versículos 1º. ao 4º. e Gênesis, capítulo 11, versículos 6º. a 8º.). O padrão separa por ponto a indicação de capítulo e versículo; vírgula e hífen são usados para separação de versículos; ponto e vírgula separam passagens diferentes. A abreviatura de livros bíblicos deve ser considerada, para facilitar a identificação. Será utilizado, da mesma forma, o padrão da Sociedade Bíblica do Brasil, para os livros em comum com a Bíblia católica2. Embora nem todos os livros bíblicos possam vir a ser citados, a 1 Há edições da Bíblia para diversos públicos: Bíblia da mulher, Bíblia da criança, Bíblia do jovem. Proliferam, também, Bíblias de estudo, que inserem no texto bíblico comentários diversos. Aqui reside outra dificuldade, de maior alcance, porque tais comentários tendem a guiar a interpretação do leitor, que nem sempre tem discernimento para identificar notas de valor objetivo e notas de cunho interpretativo. 2 Para os livros exclusivos da Bíblia católica, adotamos a convenção de A Bíblia de Jerusalém (1981). No Novo Testamento não há diferenças de abreviaturas entre as Bíblias católicas e protestantes. seguir estão listadas as abreviações de todos os livros, na ordem em que se encontram nas Bíblias cristãs, já incluídos os deuterocanônicos católicos: ANTIGO TESTAMENTO (AT) NOVO TESTAMENTO (NT) Gênesis Gn Mateus Mt Êxodo Ex Marcos Mc Levítico Lv Lucas Lc Números Nm João Jo Deuteronômio Dt Atos dos Apóstolos At Josué Js Romanos Rm Juízes Jz 1 Coríntios 1 Cor Rute Rt 1 Coríntios 2 Cor 1Samuel 1Sm Gálatas Gl 2Samuel 2Sm Efésios Ef 1Reis 1Rs Filipenses Fl 2Reis 2 Rs Colossenses Cl 1 Crônicas 1 Cr 1Tessalonicenses 1 Ts 2 Crônicas 2 Cr 1Tessalonicenses 2 Ts Esdras Ed 1Timóteo 1 Tm Neemias Ne 1Timóteo 2 Tm Tobias Tb Tito Tt Judite Jt Filemon Fm Ester Et Hebreus Hb 1 Macabeus 1 Mc Tiago Tg 2 Macabeus 2 Mc 1 Pedro 1 Pd Jó Jó 1 Pedro 2 Pd Salmos Sl 1João 1 Jo Provérbios Pv 2João 2 Jo Eclesiastes Ec 3João 3 Jo Cântico dos Cânticos Ct Judas Jd Sabedoria Sb Apocalipse Ap Eclesiástico-Sirácida Sr Isaias Is Jeremias Jr Lamentações Lm Baruc Br Ezequiel Ez Daniel Dn Oséias Os Joel Jl Amós Am Obadias Ob Jonas Jn Miquéias Mq Naum Na Habacuque Hc Sofonias Sf Ageu Ag Zacarias Zc Malaquias Ml Machado tinha em sua biblioteca um exemplar da Bíblia em português, traduzida por Antonio Pereira de Figueiredo. O fato é atestado por Massa, no levantamento e classificação que fez da biblioteca que pertenceu a Machado, trabalho publicado em 1961 na França sob o título La bibliothèque de Machado de Assis. No intitulado “Domínio bíblico e religioso”, consta o seguinte registro, sob número 78: “BÍBLIA, A (...) sagrada contendo o Velho e o Novo Testamento, traduzida em portuguez segundo a vulgata latina por Antônio Pereira de Figueiredo. Londres, Officina de Harrison e filhos, 1866”. Glória Vianna em 1989 retoma o levantamento inicial de Massa, como parte de um programa de Doutorado em Letras na Universidade Federal Fluminense. O material que ela produziu foi inserido na obra de Jobim (2001). A apuração quantitativa acusou a falta de alguns volumes, dentre os quais o de número 78 acima indicado, justamente a Bíblia sagrada (Jobim, 2001, p. 119). Contudo, em visita à sede da Academia Brasileira de Letras, realizada em janeiro de 2009, pudemos manusear o volume catalogado por Massa. Questionados sobre a informação de extravio constatado por Glória Vianna, os bibliotecários informaram que houve reformas na sede da ABL e alguns volumes foram eventual e temporariamente retirados de seus respectivos lugares, tendo sido em momento posterior recolocados no acervo. Foi o caso do volume da Bíblia sagrada. Pudemos verificar que as indicações bibliográficas do volume por nós manuseado correspondem exatamente às fornecidas por Massa. Estávamos interessados também em verificar se havia anotações marginais nas páginas da Bíblia que pertenceu a Machado, expectativas que se frustraram. Também segundo informações dos bibliotecários, há muito poucas anotações desse tipo nos livros da biblioteca do escritor. SUMÁRIO RESUMO....................................................................................................................................................3 ABSTRACT................................................................................................................................................4 INTRODUÇÃO..........................................................................................................................................5 CAPÍTULO 1: APOIO TEÓRICO:INTERTEXTUALIDADE, INTERDISCURSIVIDADE E CONTRATO SEMIÓTICO....................................................................................................................18 INTERTEXTUALIDADE E INTERDISCURSIVIDADE.....................................................................................18 OCONCEITO DE CONTRATOSEMIÓTICO..................................................................................................25 CAPÍTULO 2: BÍBLIA, ATIVIDADE LIBERAL, PSEUDÔNIMOS E ESCRAVIDÃO.................32 AMIZADES E INFLUÊNCIAS IMPORTANTES...............................................................................................32 Charles Ribeyrolles...........................................................................................................................33 Ernest Renan.....................................................................................................................................35 AFIRMAÇÃO NO JORNALISMO.................................................................................................................39 DISPOSIÇÃO PARA POLÊMICAS................................................................................................................42 DEFESA DA LIBERDADE,INCLUSIVE RELIGIOSA......................................................................................44 BÍBLIA E REALIDADE:INSPIRAÇÃO PROFÉTICA?.....................................................................................47 OUSO DE PSEUDÔNIMOS DE MOTIVAÇÃO BÍBLICA..................................................................................51 Manassés...........................................................................................................................................51 Eleazar..............................................................................................................................................53 Job.....................................................................................................................................................56 Cham.................................................................................................................................................57 DIREITOS DA MULHER............................................................................................................................58 USO DA BÍBLIA NA CAUSA ABOLICIONISTA.............................................................................................59 Intertextualidade bíblica e escravidão em duas crônicas de maio de 1888......................................67 OBSERVAÇÕES FINAIS AOCAPÍTULO.......................................................................................................79 CAPÍTULO 3: “O PARAÍSO TERRESTRE,PRINCÍPIO DA FALÊNCIA UNIVERSAL”...............81 BREVES CARACTERÍSTICAS DAS NARRATIVAS BÍBLICAS.........................................................................82 AVOLTA A MITOS NAS CRÔNICAS...........................................................................................................84 AVOLTA A MITOS EM CONTOS................................................................................................................98 AVOLTA A MITOS EM ROMANCES.........................................................................................................116 CONSIDERAÇÕES FINAIS AO CAPÍTULO.................................................................................................124 CAPÍTULO 4: “NADA COMO UMA SENTENÇA PARA MUDAR A CARAAOS CONCEITOS”.129 CONTRIBUIÇÕES DA SÁTIRA.................................................................................................................129 Sátira como exploração e investigação: a anatomia......................................................................130 Sátira como provocação.................................................................................................................138 Sátira como ironia instável.............................................................................................................140 CITAÇÕES TRUNCADAS.........................................................................................................................143 OBSERVAÇÕES FINAIS AOCAPÍTULO.....................................................................................................154 CAPÍTULO 5: “BEM-AVENTURADOS OS QUE POSSUEM, PORQUE ELES SERÃO CONSOLADOS”.....................................................................................................................................158 APREFERÊNCIA PELO EVANGELHO DE MATEUS.....................................................................................164 APROXIMAÇÕES COM O CINISMO?........................................................................................................166 APROXIMAÇÕES COM O ECLESIASTES?..................................................................................................172 OBSERVAÇÕES FINAIS AOCAPÍTULO.....................................................................................................174 CAPÍTULO 6: “SE EU NÃO TIVESSE OSOLHOS ADOENTADOS DAVA-ME A COMPOR OUTRO ECLESIASTES”.......................................................................................................................175 ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA SABEDORIA BÍBLICA.........................................................................177 SABEDORIA COMO SAGACIDADE...........................................................................................................180 AFIGURA DO SÁBIO..............................................................................................................................181 OLIVRO DE JÓ......................................................................................................................................182 OLIVRO DE ECLESIASTES......................................................................................................................185 Estilo e forma de Eclesiastes..........................................................................................................186 Alguns aspectos literários de Eclesiastes.......................................................................................188 “Tudo é vaidade”...........................................................................................................................189 OBSERVAÇÕES FINAIS AO CAPÍTULO.....................................................................................................193 CAPÍTULO 7: RELÍQUIAS RECOLHIDAS......................................................................................195 “OPAI”,UM CONTO REPRESENTATIVO.................................................................................................195 RELÍQUIAS RECOLHIDAS EM CONTOS E CRÔNICAS................................................................................197 RELÍQUIAS RECOLHIDAS EM ROMANCES...............................................................................................205 Sutilezas bíblicas em Memórias Póstumas.....................................................................................205 Motivações bíblicas em Dom Casmurro.........................................................................................209 OBSERVAÇÕES FINAIS AOCAPÍTULO.....................................................................................................225 CONCLUSÃO........................................................................................................................................226 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS..................................................................................................230 2 RESUMO Propõe-se, neste trabalho, averiguar o papel que os escritos bíblicos desempenham na construção e na sustentação das principais ênfases da obra de Machado de Assis. Dois princípios constituem o guia teórico desta investigação. O primeiro refere-se à noção bakhtiniana de polifonia e a seus desdobramentos, constantes nos termos intertextualidade e interdiscursividade. A noção de contrato semiótico (Fiorin, 2003) é o segundo. Conceitos auxiliares serão pontualmente utilizados, como o de sátira menipeia, que terá base em autores como Griffin (2005), Sá Rego (1989) e Óliver (2008). A juventude de Machado caracterizou-se por uma atividade liberal de razoável envergadura. Charles Ribeyrolles e Renan foram influências decisivas para a consolidação dessas convicções. Essa tendência destaca a presença da Bíblia, evocada como fonte dos princípios que defendia. A portentosa obra de ficção, desde suas primeiras manifestações, testemunha grande fascínio pela Escritura, sob diversas formas. Uma delas foi a retomada de mitos bíblicos, que servem de vínculo para aproximação entre os eventos originários e os acontecimentos comezinhos do dia a dia em que ocorre ressignificação das narrativas míticas. Esse olhar para o passado, guiado pela Bíblia, ajusta-se à ênfase machadiana na eterna mesmice do drama humano. Temas sapienciais aparecem invariavelmente diluídos nos escritos machadianos. A sabedoria tem seu lugar de destaque, com Eclesiastes e Jó. Também os escritos bíblicos são aplicados à reinterpretação de temas caros aos seres humanos. Isso é feito com liberdade de quem tem elevado tino ficcional. Machado joga com palavras e expressões, torce, retorce e distorce sequências linguísticas e narrativas para, dando a elas um lustro diferente, projetar novos e relevantes sentidos. Machado, além de temas bíblicos, serve-se de personagens e eventos diversos, de forma livre, para ressiginificá-los, quase sempre em dissonância com a tradição religiosa e teológica. O amparo teórico bakhtiniano e a noção de contrato semiótico ajustam-se à análise desse diálogo frutífero com as fontes bíblicas, sob a motivação estética da crise da representação presente nos escritos machadianos. Palavras-chave: Machado de Assis; Bíblia; interdiscursividade; intertextualidade; contrato semiótico. 3
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