Signo e Poder 1 Profª Drª Dulce Adélia Adorno-Silva PUC-Campinas//Centro de Linguagem e Comunicação2 Professora e pesquisadora 1. O Poder da Linguagem Verbal Constatou-se a interferência da linguagem televisiva na escrita, por meio de pesquisa realizada nas redações do Vestibular, da PUC-Campinas, 3 portanto vale a pena fazer uma comparação entre as diferentes linguagens visuais, para observar que tipos de influência e de poder exercem sobre o homem. Para tanto, é oportuno nos deter na perspectiva da recepção de cada tipo de signo, procurando identificar como, em cada um deles, as manipulações para exercício de poder. O signo verbal oral pressupõe um emissor e um receptor (ou vice-versa) que possuam um código em comum e que sejam conhecedores de suas regras de uso, estejam em uma dada situação comunicativa e pertençam ou tenham laços de linguagem com a comunidade que utiliza o repertório da mensagem. O entendimento depende também da percepção da intenção comunicativa de quem a formulou, com o objetivo de que ela seja atendida ou respondida. Spengler observa que a linguagem não brotou do pensamento, mas da necessidade prática de comando para garantir a ação combinada coletiva, para a qual unem-se olhos e mãos: aqueles para determinar a meta a ser atingida, o espaço a ser dominado; e estas para fabricar o utensílio (independente da vida) e determinar o seu uso. Ao lado do pensamento dos olhos para o domínio do espaço, junta-se o pensamento das mãos, prático e atuante. O olhar atua na ordem da causa ao efeito, enquanto a mão manobra segundo os meios e os fins.4 Por essa razão, o homem e os animais observam como nasce o fogo (causa e efeito), mas somente ele é capaz de reproduzi-lo (meios e fins), e, assim, descobre sua capacidade e habilidade de substituir a natureza no ato de criar. Mas o que ele cria, não é apenas a técnica (por exemplo: como produzir fogo) mas objetos 1 Trabalho apresentado à Seção Temática 7: Comunicação e Cultura do VII Colóquio Brasil-França 2 Professora na PUC-Campinas e líder do Grupo de pesquisa “Propaganda, Significação e Sociedade”, cadastrado no CNPq; doutora pela UNICamp em Educação, Sociedade e Cultura (tese: A Mente Controlada); trabalhos publicados em revistas científicas da universidade. 3 Em pesquisa realizada para Tese de Doutorado, em amostra de 540 redações, apenas 10 estudantes não repetem frases veiculadas pela TV. 4 Ibidem, p.67 174 artificiais que, à medida que evoluem, fazem com que se afaste da natureza. Também em relação ao exercício da guerra as armas dos homens são artificiais enquanto as dos animais são naturais. Segundo Spengler, a finalidade primeira da linguagem é desencadear uma ação, em conformidade com uma intenção e com o tempo, o lugar e os meios disponíveis. 5 Logo, a grande virada na História do homem foi decorrente não da evolução dos objetos, mas da Ação Coletiva Combinada (ou seja, os atos organizados de um número de indivíduos, mais ou menos elevados, em conformidade com um Plano.6), que pressupõe um plano, a divisão de tarefas e tem, como condição sine qua non, a linguagem. Portanto, a linguagem nasceu do diálogo, cujas frases se ordenavam segundo a conversação entre várias pessoas, ou seja, sua finalidade não era o juízo, o conhecimento a partir do raciocínio, mas o acordo mútuo obtido por meio de perguntas e respostas 7. A fala era usada quando estritamente necessária. O pensamento, para o qual a palavra é um ato de matriz intelectual, que se realiza com o auxílio dos sentidos, brotava da prática. Com o intuito de obter mais poder, ampliar sua superioridade além de suas forças físicas, aumenta-se a artificialidade dos processos 8, o número de braços para executar as tarefas necessárias ao empreendimento que se projeta conforme um plano e realiza-se pelo comando, por meio da linguagem. Há, então, uma técnica de dirigir e outra de executar, com a separação das atividades mentais e manuais9, assim formular projetos e executá-los passam a ser atividades distintas. Desde então, quando a linguagem dirige os empreendimentos há dois tipos de homens: os que planejam (técnica de dirigir) e os que executam (técnica de executar). Na ânsia de expandir o poder, surge a guerra como empreendimento com chefes e guerreiros e batalhas organizadas e, para domínio dos vencidos, impõe-se-lhes a lei, perante a qual todos (ou a maioria) devem ser iguais, mas que é sempre do mais forte, diante de quem tem que se curvar o mais fraco10 . McLuhan, cita o mito de Cadmo, ao retomar a relação entre escrita e civilização, também observando-a do ponto de vista do poder. O alfabeto fonético11, acha-se associado aos dentes, que, junto com as garras, denotam agressividade, ataque, domínio, poder militar. Essa associação 5 Oswald SPENGLER, O Homem e a Técnica. , p.81 6 Ibidem, p. 77 7 Ibid., p.80 8 Ibid., p.84 Ibid., p.86 10 Ibid., p.90 Segundo Spengler, quando a lei é reconhecida e instituída por um longo tempo, constitui a paz e a política é um substituto temporário para a guerra, o qual utiliza armas intelectuais. 11 Elias Canetti, Massa e Poder. Mostra que as garras e os dentes representam a agressividade animal, os meios de ataque. E McLuhan compara a justaposição dos dentes com a justaposição das letras na escrita. 175 permite outra interpretação sobre a origem mítica da escrita: os dentes, além de representarem a expressão da agressividade, significam também a fonetização da escrita, a relação do número reduzido de letras com a quantidade maior de sons da fala. A idéia mítica de que dos dentes do dragão lançados surgiu o alfabeto, pode ser interpretada como se alguém tivesse espalhado a fala (sucessão de sons no tempo) no espaço da escrita: o registro da sucessividade sonora pela seqüência linear das letras combinadas. O gesto de lançar representa a objetividade da escrita, o distanciamento, para o que é necessário que se desfaça a proximidade entre o eu e o objeto, ou o eu e os outros, entre os próprios indivíduos. Nesse sentido, o emissor controla à distância, sem perigo de trair-se pelo gesto, pela expressão facial, pela entonação da fala, que denunciavam as emoções: medo, raiva etc. O poder se exerce melhor pela organização estruturada, fixada pelo registro da escrita, porque a informação permanece fria e objetiva do que pela fala que se perde e se transforma ao passar de um indivíduo a outro. A escrita convoca a uniformidade: se a informação é o registro único, todos têm que aceitá-la de uma única forma e reagir conforme o modo indicado. Isso facilita o comando, o exercício do poder. Com a imprensa e reprodução técnica, expandiu-se a abrangência do poder, que se definiu ainda mais pelo desejo de que os que manejavam a técnica em número cada vez maior atendessem ao comando dos empreendedores. Ao mesmo tempo, porém, que a escrita significou dominação, possibilitou a relação antitética, fundamentando idéias de sustentação de movimentos sociais contra o poder. Ela propicia o pensamento crítico. Outro tipo de limitação foi imposto pela escrita: a relação emissor e receptor. Tudo concorre para que a vastidão da realidade, cuja ausência se faz representar pela sonoridade da fala, seja retomada. Mas há um sentimento de impotência, porque a fala jamais foi capaz de abranger a realidade: Falar mete-me medo porque, nunca dizendo o suficiente, sempre digo também demasiado. 12 Se as limitações impõem à fala uma responsabilidade, por causa da presente relação emissor-receptor, a escrita a exige muito maior, porque representa um corpo mais independente e um registro mais estável, ao mesmo tempo que apaga a horizontalidade e toda a carga expressiva dessa relação. Como escreve Mcluhan, a fala é inclusiva e a escrita, exclusiva. Assim, ela exclui o emissor e só revela o seu corpo frio pelo ato da leitura, que o aquece. Escrever é retirar-se. Não para a sua tenda para escrever, mas da sua própria escritura. Cair 12 Jacques Derrida, A Escritura e a Diferença, p.21 176 longe da sua linguagem, emancipá-la ou desampará-la, deixá-la caminhar sozinha e desmunida. Abandonar a palavra.13 A ausência do emissor torna ausente, também, parte do sentido que ele, individualmente, morador da História, situou num espaço determinado, mas deixa presente todos os sentidos que possam ser revelados pelos receptores, a partir daqueles que permanecem memoráveis no texto. A leitura é um outro momento em outro espaço, que desvendará o segredo do labirinto do texto. Cada texto escrito é criptográfico, porque sempre esconde algo - ou o dissimula - que nunca se revela a cada nova leitura. Todo mistério admite em seu círculo apenas um número restrito de iniciados, que são partícipes e guardadores do segredo. Por isso, escrever-ler é um privilégio que ainda não se desfez, dada a grande massa de analfabetos e de iletrados, que não conseguem, a não ser funcionalmente, penetrar nesse mistério. Se a escrita ainda não é do domínio da totalidade da população, ela também não é veiculada em dupla mão de direção. A maioria acata as leis, recebe as informações em uma recepção vertical, mas pode perfazer o caminho de volta a partir do texto, ao pensar sobre a escrita usada para a manutenção do poder, do status quo a fim de questioná-lo. Outro motivo para que a escrita atendesse ao poder, foi, com a criação dos tipos móveis, a possibilidade de difusão que, segundo McLuhan, é necessária à criação de públicos em escala nacional 14. Os públicos se fizeram necessários ao consumo dos livros produzidos em série, da mesma forma que a existência da autoria, desnecessária na Idade Média, quando o conhecimento era considerado integrante de um todo. Com a imprensa, escrever passa a ser importante. A cultura letrada produz uma nova sociedade de cultura visual de processamento uniforme. A uniformidade facilita o controle associando-se à leveza do papel e à facilidade de se transportar ordens escritas para lugares distantes. A portabilidade deu condições para que informações escritas (ordens, por exemplo) fossem deslocadas para lugares e situações estratégicas e, assim, ampliassem o exercício do poder. Embora tenha sido usada como exercício de poder e tenha tido como conseqüência uma civilização visual, linear, com relações mais formais, devido a seu caráter individual de escrita e de leitura, valorizou o indivíduo dentro das fronteiras da nação, delimitadas pela língua nacional, 13 Ibidem, p.61 14 Marshall MCLUHAN, A Galáxia de Gutenberg, p. 15 177 que se torna estável a partir da escrita e, mais importante, não perdeu até agora, o privilégio de ser o lugar do pensamento e da originalidade. A civilização da escrita foi tão importante, que foram organizadas instituições que lhe dessem suporte - a escola - cuja técnica precisava ser aprendida: não apenas escrever (desempenho manual), mas a relação entre letras e sons, como combiná-los e também decodificá-los. Ela é tecnologia porque sai do âmbito familiar e precisa ser aprendida de modo diferente da fala (intuitiva). Ir à escola significa não apenas aprender uma nova forma de pensar, mas todas as dela: relações objetivas entre as pessoas, condutas formais ou regras sociais. 2. O Poder de Testemunho Um dos grandes valores da fotografia, sem dúvida alguma, é o seu valor de prova. Ela testemunha um acontecimento apreendido em um momento presente que não volta a se repetir: ela repete mecanicamente o que nunca mais poderá repetir-se existencialmente.15 Como a escrita, jamais abrange a totalidade dos acontecimentos (isso é uma utopia), mas prende-se à contigência, ao momento, fixa uma particularidade do mundo que se movimenta continuamente. Ao fixar uma particularidade, um momento de qualquer objeto, ela traz consigo o seu referente, por isso é signo, porque mostra o referente, que é lembrado, embora não exista mais. Essa aderência do referente ao signo torna-a diferente da escrita, que mesmo sendo um signo visual, não possui essa propriedade específica da imagem. Para identificar-se o referente do signo verbal, é preciso conhecer o código e a relação significativa no texto e no mundo. Além disso, a escrita literária conserva a autoria, o emissor da mensagem, cujo pensamento e imaginação se expõem na escrita; a relação do fruidor é suprir com imagens de sua memória os espaços descritos, as personagens caracterizadas, acompanhar, descobrir o pensamento do escritor e, se possível, questioná-lo. Já a fotografia faz objeto o sujeito fotografado que passa a ser imagem fixada pela ação da luz e de substâncias químicas: imagem no papel. Mesmo com o poder de fazer com que o sujeito se transforme em objeto, a idéia de tempo adquire feições interessantes, porque, ao fixar o momento presente, no instante da revelação ele já se fez passado, que só era apreensível pela mente humana, no desenho ou na palavra, retido pelo presente fixado. 15 Roland BARTHES, A Câmara Clara , p.13 178 Embora o poder do signo fotográfico seja de testemunho, de transformar o sujeito em objeto, é limitado em relação à realidade que se movimenta continuamente. Virilio, citando Rodin sobre o poder de testemunho da imagem fotográfica afirma: ..., pois se a imagem instantânea visa à exatidão científica dos detalhes, o congelamento da imagem ou antes o congelamento do tempo da imagem da instantaneidade falsifica invariavelmente a temporalidade sensível do testemunho, este tempo que é o movimento de uma coisa criada. 16 A percepção desse olhar deficiente da câmera, como o entendeu Rodin, não se compara com a percepção do olhar humano: a aquisição da imagem mental jamais é instantânea, ela é uma percepção consolidada na memória.17 Mas, apesar da diferença, esse novo modo de ver também interfere, segundo constata Virilio sobre a dificuldade que as gerações atuais têm de compreender o que lêem porque são incapazes de re-presentar (apud). Logo, (...)...as imagens percebidas mais rapidamente deviam substituir as palavras;hoje em dia elas nada têm a substituir e os analfabetos e os diléxicos do olhar não param de se multiplicar.18 Durante a Primeira Guerra Mundial, a fotografia já havia sido intensamente usada para a observação aérea, produzindo um grande fluxo de imagens de cuja interpretação, leitura ou deciframento dependia a vitória.19 A luminosidade já tinha sido uma arma durante esse conflito: em 1914, grandes holofotes foram acoplados aos canhões não só para localizar o avião bombardeiro, mas para criar uma mistura instantânea de dados e fascinação, a qual destrói a percepção consciente do espectador e o conduz à hipnose, ou a qualquer outra condição patológica análoga. 20 A descaracterização da visão humana com a luz e a imagem fotográfica, acontece pela perda de sua velocidade e sensibilidade, porque a ação das câmeras é mais rápida (os instantâneos), e corresponde a uma dependência tecnológica: a percepção da imagem é o modelo que tem como conseqüência a padronização do olhar. A expansão da visualização,devido também aos processos de aceleração (reprodução técnica) provoca a intensificação da mensagem visual: logotipos, iniciais, siglas, silhuetas etc (sobre o que já comentamos anteriormente). O testemunho, com o advento da câmera fotográfica, deixa de ser verbal para ser icônico; as câmeras suplantam o olho humano para revelar a verdade: graças à fidelidade implacável dos 16 Paul Virilio, A Máquina de Visão, p. 16 17 Ibidem, p. 23 18 Ibid., p.24 19 Paul VIRILIO, A Máquina de Visão, p. 74 20 Paul VIRILIO, Guerra e Cinema, p. 19 179 instrumentos (...) lhes permitia fixar e mostrar o movimento com uma precisão e riqueza de detalhes que escapam à visão, porque decupa no espaço e fixa no tempo quadros inimitáveis, que eternizam o minuto fugidio em que a natureza se mostra genial... este olho é o da objetiva.21 A crença no registro fotográfico como verdade arraigou-se de tal modo na mente humana, que durante a Primeira Guerra Mundial, segundo Mattelart, ele é usado para conseguir sucesso na gestão da opinião de massa e persuadir a China a juntar-se aos aliados. São duas fotos: uma com cadáveres de soldados que são transportados para serem enterrados; outra com pedaços de cavalos mortos que são enviados para uma fábrica de sabão. A troca de legendas impressionou os chineses cuja cultura não admite a profanação de cadáveres. 22 Tanto a experiência de fruição do livro como da fotografia – instante da escrita e instantâneo fotográfico – inscrevem-se menos no tempo que passa do que no tempo de exposição 23, pois diferentemente da fala, ambos superam a duração diária e aumentam a distância entre o instrumento de transmissão (a imprensa e a câmera fotográfica) e a nossa capacidade de assumir o presente. Mas o olho da câmera é capaz de suplantar o tempo de exposição da leitura silenciosa, porque o amplia excessivamente, afastando as pessoas de sua própria memória – sua história – que passam a preferir o envolvimento da imagem, cuja conseqüência é uma enorme onda de iletramento; é mais importante ver do que compreender (ler). Os valores se modificam com a tecnologia. produção do signo (pelo ser humano ou pela tecnologia) não é neutra e nem imparcial, mas ideológica porque está eivada pela História, contextualizada em uma época e em um dado lugar. Sua ação substitutiva, faz com que, cada vez mais, o homem se descaracterize, transformando sua dimensão lingüística por outra cuja base seja a imagem. 3. Cinema e Poder O arranjo fílmico para o cinema nem sempre significa intuição que produz conhecimento de dentro e, portanto, nem sempre representa consciência desperta, principalmente porque muitas 21 Idem, A Máquina de Visão, p.41 22 Armand MATTELART, Comunicação Mundo: História das Idéias edas Estratégias, p.59 23 Paul VIRILIO, Guerra e Cinema, p.66-67 - Assim se expressa o autor: “A inovação da leitura silenciosa faz com que cada um acredite que o que se escreve é verdadeiro, pois, no momento da leitura, tem-se a ilusão de que se é o único a ver o que está escrito,...Existem numerosas afinidades entre o instante da escrita e o instantâneo fotográfico, cada um se inscreve menos no tempo que passa do que no tempo de exposição. Com a impressão,...o meio de comunicação retém o imediato e desacelera-o para fixá-lo em um tempo de exposição que escapa à duração diária e ao calendário social...” 180 imagens apresentadas que nos levam ao interior do filme, podem significar controle para legitimação do poder instituído, levando a reações programadas diante de determinadas situações. Usado para exercício de poder, o cinema pode nos condicionar a movimentos reiterativos, automáticos, sem o exercício da crítica. Tendo sido percebida essa possibilidade desde a Segunda Grande Guerra e sabendo que, na fruição fílmica, se é transportado para o interior do objeto a fim de coincidir com o que há de único e conseqüentemente de inexprimível sobre ele 24, o cinema tornou-se uma faca de dois gumes. Se a imagem leva o espectador para dentro de sua realidade pode tanto fazer adormecer a consciência pela geração de atitudes controladas e por isso automáticas, como despertá-lo para decisões necessárias e importantes dando-lhe conhecimento, a fim de agir sobre a realidade. O cinema afetou a vida de tal modo, que sua tecnologia modifica a concepção de guerra, porque Não existe, portanto, guerra sem representação ou arma sofisticada sem mistificação psicológica, pois, antes de serem instrumentos de destruição, as armas são instrumentos de percepção, ou seja, estimulantes que provocam fenômenos químicos e neurológicos sobre órgãos do sentido e sistema nervoso central, afetando as reações e a identificação e diferenciação dos objetos percebidos. 25 O olhar não é mais subjetivo, a visão não é mais uma relação direta do olho humano com o mundo, a fim de apreendê-lo em conjunto ou imagem por imagem, mas percebê-lo só é possível com a interceptação do olho pela câmera. A visão natural se converte em tecnológica; a percepção dos fenômenos naturais ou produzidos pelo próprio homem passa a depender também de todos os efeitos gerados pela luz e pelo movimento. Segundo Virilio, a guerra depois da tecnologia do cinema modifica-se, transfomando-se em espetáculo pleno de efeitos sonoro-luminosos. A percepção, a seleção de imagens da realidade, foi reconhecida e aproveitada em função do nazismo por Goebbels, que sabia da sua importância como arma de guerra. A grandiosidade do espetáculo fílmico (as grandes produções) ganha a mesma proporção na guerra: a grandeza única de uma operação militar consiste no que ela tem de monstruoso 26. O ministro da Propaganda de Hitler utiliza-se não unicamente dos efeitos especiais, mas também do filme como narrativa, que cria a surpresa técnica ou psicológica; e, como linguagem icônica em movimento, coloca o espectador por ilusão dentro da história narrada. Ou em relação 24 Henri BERGSON, A Intuição Filosófica, p.61, NRP 79 25 Paul VIRILIO, Guerra e Cinema, p.12 26 Ibidem, p.14 - Virilio faz uma citação de J.P. Goebbels. 181 à percepção como conjunto de imagens (Merleau-Ponty) ou procedendo à seleção de imagens por meio de cortes, o fato é que, como Susanne Langer observou, a relação onírica do espectador com o filme, esse momento presente de participação e assimilação de uma realidade similar a situações já vividas, fundamenta a sedução ideológica de que o poder se aproveita. Com essa finalidade, o nazismo produziu O Judeu Süss, de caráter tendencioso e foi exigente em relação a filmes que não atendiam às expectativas técnicas: proibiu a projeção de um filme em cores (A Bela Diplomata), porque ao compará-lo com filmes americanos, achou as cores abomináveis. Investiu, por isso, no aperfeiçoamento do Agfacolor e, em 1943, possibilitou ao cineasta J. Von Braky, lançar As Aventuras do Barão de Münchhausen, com efeitos especiais. A relação tecnologia-estado foi de tal modo eficaz que, a UFA (Universum Aktion Film) que completava 25 anos de fundação (1917), tornou-se o principal complexo de produção, distribuição e comercialização da Alemanha em guerra.27 Virilio observa que a UFA sempre esteve aliada ao grande capital da Krupp (indústria bélica) assim como aos subsídios do Estado. Goebbels, que tivera relação de desprezo para com os profissionais do cinema, depois que toma consciência da importância desse meio, submete atores e diretores ao regime militar alemão. Entre as duas guerras, o ministro enviou cerca de 50 mil discos de propaganda às casas que possuíam fonógrafo e exigiu que cinemas exibissem curta-metragens de veiculação ideológica. A imagem na guerra constitui-se um olhar sobre o que se move.28 Em vez das sombras serem as aliadas para o ocultamento e a camuflagem, a luz desempenha esse papel, porque condicionada pela tecnologia do cinema (luz e movimento), sua recepção fica restrita ao estado onírico que impede que a realidade seja percebida. A luz produz a camuflagem da realidade. Nos Estados Unidos, também, na Segunda Grande Guerra, o Alto Comando Militar acompanhava a produção cinematográfica, quando não o próprio Pentágono era produtor e distribuidor de filmes de propaganda. Conforme Virilio, Luiz Buñuel era visto rodando documentários para o exército americano e as canções e as danças de Fred Astaire convidavam dissimuladamente a uma nova mobilização. Durante a Guerra Fria, o cinema continuou como arma ideológica, porque um sem número de filmes de propaganda ideológica, foram produzidos: os ocidentais eram sempre super-heróis, além de sedutores, em luta contra os vilões soviéticos. 27 Ibid., p.16 28 Ibid., p.25 182 Não é somente a percepção que importa durante a guerra: segundo Napoleão, a aptidão à guerra é a aptidão ao movimento29. Na Segunda Guerra, as cenas de dança de Fred Astaire, além do movimento, estavam repletas de apelos visuais, não organizados de forma rítmica como os primeiros objetos fósseis encontrados, mas misturados de forma que a fascinação destruísse a percepção consciente do espectador. O espetáculo da luz junto ao movimento leva à automatização da consciência pelo excesso de estímulos imagéticos, conduzindo à desorganização do campo perceptual, que impede o indivíduo de selecionar imagens, pois as recebe como lhe são impostas: previamente selecionadas. A aviação e o cinema são contemporâneos e, por esse motivo, tornaram-se nas guerras, simultâneos: o piloto de guerra, ao disparar uma arma, acionava uma câmera. Alterando a percepção, a guerra mistura as performances dos meios de destruição ao desempenho dos meios de comunicação da destruição 30: adultera aparências, distâncias e dimensões. Na guerra, a realidade não importa: a primeira vítima de uma guerra é a verdade.31 O olhar a olho nu não serve mais como testemunho da informação, portanto verdadeiras são as informações coletadas pela câmera, porque a tecnologia, além de colhê-las com mais rapidez e precisão, presta-se à veiculação ampla que não mais abrange grupos de pessoas, mas grandes multidões. Hitler e Mussolini usaram a propaganda – “A propaganda é a minha melhor arma!, dizia Mussolini.” 32 – servindo-se da tecnologia de comunicação como arma de guerra. Hitler, em 1934, para realizar O Triunfo da Vontade fornece a Leni Riefensthal: um orçamento ilimitado, uma equipe de trezentos técnicos e nove cinegrafistas, para divulgar para o mundo o mito nazista, a partir do registro do congresso do Partido Nacional-Socialista. Segundo depoimento de Virilio, os aliados só conseguiram atingir a infalibilidade carismática de Hitler quando se colocam na vanguarda das técnicas cinemáticas. 33 A guerra da tecnologia do cinema, não pára no momento quando termina a Segunda Guerra; depois dela, o campo de batalha transfere-se não apenas para a diplomacia que procura resolver a possibilidade de um grande conflito por meio da dissuasão, mas para as salas de cinema com a exibição de filmes de caráter ideológico que buscam a adesão do público para a política ocidental, no mundo dividido 29 Ibidem, p.19 30 Ibidem, p.45 31 Ibidem, p.61 32 Ibid., p.126 33 Ibid., p.136 183
Description: