Universidade de São Paulo Instituto de Psicologia Sandra Maria Patrício Ribeiro ANATOMIA SOCIAL DE UM CRIME EM FAMÍLIA Estudo psicossocial sobre a dialética dos discursos e representações sobre família, afetos, homens e mortes. Dissertação apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestre em Psicologia. Área de Concentração: Psicologia Social e do Trabalho Orientadora: Profa. Dra. Sueli Damergian São Paulo 2001 ANATOMIA SOCIAL DE UM CRIME EM FAMÍLIA Estudo psicossocial sobre a dialética dos discursos e representações sobre família, afetos, homens e mortes. Sandra Maria Patrício Ribeiro BANCA EXAMINADORA: Profª Drª Sueli Damergian (Orientadora) Profª Drª Eda Terezinha de Oliveira Tassara Prof. Dr. Luiz Carlos Rocha Dissertação defendida e aprovada em: 28/08/2001 2 Porque a matéria-prima deste trabalho custou-lhes a todos o sacrifício de suas vidas, fica pesarosamente dedicado a Mário, Karin, Roberto, Cristina, Paulo e André. 3 Índice Resumo/ Abstract 5 Agradecimentos 7 Preâmbulo 8 Parte Teórica Capítulo 1. O trabalho de teorizar sobre homicídios 25 O trabalho arqueológico de descobrir fábulas 32 O trabalho genealógico de compreender fábulas 38 O trabalho ético de contar uma nova fábula 52 O trabalho fabuloso de construir um método para a psicologia social 57 Estudo de Caso Capítulo 2. As confabulações sociais sobre homicídios violentos 66 Capítulo 3. Roberto e sua família... 95 Capítulo 4. Roberto, o patri-matri-fratricida... 107 Capítulo 5. O Estado contra Roberto 114 O incompreensível Roberto... 121 Roberto, o epiléptico condutopata... 127 Roberto, o assassino torpe... 135 Capítulo 6. Roberto, o monstro da zona sul. 144 (In) conclusões Capítulo 7. As confabulações psi sobre os homicidas violentos 174 Feldman e os componentes hereditários da personalidade 178 Paiva e as origens do tanatismo 194 Palomba e a epilepsia condutopática 211 Notas para um novo modo de confabular dentro do campo psi 237 Capítulo 8. Um ensaio sobre homicidas e homens fabulosos 249 Bibliografia 269 Anexos 273 4 Resumo O presente estudo versa sobre os discursos policial, jurídico, psiquiátrico e jornalístico produzidos acerca de um jovem, autor de um quíntuplo homicídio em família (patri-matri-fratricídio). O dossier sobre o caso, e ainda mais três explicações para a conduta violenta, oriundas do campo psi, foram analisados a partir da arqueologia, genealogia e ética foucaultianas visando esclarecer os motivos e os modos de construção destes discursos. O estudo permitiu constatar que as diferentes instâncias sociais solidarizaram-se para forjar uma representação do homicida compatível com o consagrado modelo da psicopatia - a ausência de remorsos, a incapacidade para a empatia, a frieza afetiva e a insensibilidade moral; também, que produções do campo psi prestam-se a dar referendo científico às colusões sociais que retratam os homicidas como seres malígnos, portadores de aberrações biológicas que os incapacitam a desenvolver adequadamente a afetividade e a moralidade, condenando-os aos atos criminosos violentos. Estas constatações, discutidas pelo prisma das contradições da sociedade contemporânea, deixam vislumbrar parte daquilo que se obnubila por estes discursos: remetendo ao plano biológico as determinações da conduta irracional e violenta, poupa-se de crítica o ordenamento sistemático das relações sócio-econômicas. Em conclusão, apresenta-se como imperativo derivar para a ciência psi a injunção de conhecer e denunciar as interveniências dos planos individual e coletivo em toda e qualquer conduta humana - o mais irracional e violento dos crimes cometido por um homem, guarda obrigatoriamente os traços da irracionalidade e violência do sistema social que o envolve; aperceber-se deles é condição de transformá-los. 5 Abstract This present study considers the police, legal, psychiatric and journalistic speeches about a young man who is the author of a quintuplet family homicide (patricide-matricide-fraticide). The dossier about the case, and three explanations else for the violent behaviour from the psy area, were analysed from the archaeological, genealogical and ethical foucaultian considering to clear up the cause and way these speeches were constructed.The study has allowed to show up the different social resort to join forces to forging a representation of the murderer with the stablished model of psychopath - no remorses, the incapacity for empathy, coolness affection and moral insensibility; it is also to show that productions of the psy area are suitable for giving scientific endorsement to the social agreement that show the murderer as evil beings who are owners a such of biological aberrations that make them incapable of developing the affecting and morality and to sentence them to criminal violent actions. All these observations were talked about by the point of view of the contemporany society contradictions and they let to glimpse part of that are hided by those speeches: the systematic order of social economical relations indulgences itself of criticism when it sends the determinations of irrational and violent behaviour to the biological area. As conclusion, it shows the necessity to deduce to the psy science the obligation to knowing and denouncing the interference between individual and collective plans in all human behaviour - the most of irrational and violent crimes commited by a man hides traces of irrationality and violence of social system that involves it. The capacity of see the traces is the conditions to be able to change them. 6 Agradeço: Aos mestres, próximos ou remotos, no tempo ou no espaço, que iluminaram meu caminho, e a todas as pessoas que facilitaram ou incentivaram minha caminhada. Algumas pessoas do IP-USP/PST devem ser expressamente mencionadas, porque merecem minha especial gratidão: Profa. Dra. Sueli Damergian, Profa. Dra. Eda Terezinha de Oliveira Tassara, Sra. Nalva, Srta. Cecília. Durante a realização deste estudo, estive forçada a enfrentar adversidades de toda ordem. Alguns amigos ajudaram-me na superação de cada uma delas e sou-lhes grata por isto. À Vera Helena Ostronoff agradeço, sobretudo, o acolhimento e a fé; ao Renato Accioly, seus imoderados elogios, nem sempre justos, mas sempre animadores. Elisabete Rodrigues contribuiu de tantas maneiras para a realização deste trabalho que sempre faltarão palavras para agradecer-lhe o bastante. Resta-me registrar meu compromisso de fraternidade, que é como posso traduzir minha gratidão por sua amizade. Ao Marcelo e às crianças, Lívia, Enzo, Ítalo e Leon, nem é caso de agradecimento. A eles, expresso meu amor. Ao CNPq, pela concessão da bolsa que viabilizou minha dedicação ao estudo, meu reconhecimento. 7 Preâmbulo Preciso começar contando o que chamarei a pré-história deste estudo. Não sei quando começou. Lembro-me apenas a partir do início dos anos 80, quando trabalhava com jovens infratores na periferia de São Paulo, visando sua reintegração comunitária. Eu estava em torno dos vinte anos e alguns deles eram meus coetâneos, embora a maioria fosse adolescente e alguns ainda crianças. Esta circunstância, aliada à nossa origem e condição social comum, determinava que eu estivesse mais próxima, tanto do ponto de vista afetivo-emocional quanto do ponto de vista intelectual, daqueles rapazes e moças que do grupo de monitores que desenvolvia o trabalho – estes, em sua maioria, mais velhos, oriundos da classe média alta e com formação superior. Minha relação com eles era bastante singular, quando comparada com as relações que estabeleciam com os demais monitores; minha posição comportava suficiente ambigüidade para constituir-me em interlocutora privilegiada destes jovens infratores: eu aparecia-lhes, simultaneamente, como sua igual e como diferente. Isto, por um lado, dificultava minha comunicação no grupo de monitores e, de certo modo, afastava minha atuação junto ao grupo de infratores das diretrizes formalizadas do trabalho. Por outro lado, propiciou contatos bastante especiais, talvez impossíveis de ocorrer noutras condições. Algumas situações vividas durante os quatro anos que dediquei a este trabalho foram particularmente marcantes, e penso poder considerá-las como pedras fundamentais das preocupações que enfrento no presente estudo. Uma destas situações refere-se a Quincas, de 15 anos, rapaz que vendia maconha, praticava furtos e participava de roubos à mão armada nos 8 bairros próximos. Já estivera preso algumas vezes nas delegacias de polícia da região e em sua última prisão havia sido submetido a intensa tortura. Outra situação marcante refere-se ao conteúdo de algumas conversas que mantive com infratores, que ilustrarei contando uma das declarações de crueldade que ouvi. Impossível relatar, quase vinte anos depois, tudo quanto me atingiu e tudo quanto presenciei nestas situações – isto precisa estar claro. Não se pode relatar um caso, mas precisamos fazê-lo e isto causa infinita confusão. Acredito poder, ao menos, alertar o leitor de que meu relato encontra-se limitado pelos meus objetivos atuais e pela minha lembrança, e esta, por sua vez, além de limitar-se pelo que eu cheguei a conhecer da vida daquelas pessoas, limita-se ainda pelo que eu era capaz de apreender na época dos fatos e pelo que fui capaz de reter ao longo destes anos. Por estas e outras razões, peço ao leitor que se abstenha de julgar as atitudes dos protagonistas destes casos, ou de avaliá-las segundo qualquer gabarito. Eles, como todos nós, naquele, como em qualquer tempo e lugar, reagiam como podiam às contingências da vida e eram, na realidade, pessoas inteiras, que jamais poderei retratar num escrito. Assim é que, quando Estela veio pedir-me que escondesse Quincas em minha casa, pois a polícia o acuara em um matagal próximo, concordei. Eu estava bastante impressionada com as marcas das cordas em seus pulsos e tornozelos, marcas do pau-de-arara, que ele havia exibido quando fora libertado da delegacia, menos de uma semana antes. Estela providenciou para que trouxessem Quincas, e ele chegou coberto de excrementos e sanguessugas, aterrorizado. Estivera escondido durante duas horas dentro de uma valeta de esgoto, disposto a tudo para não cair novamente nas mãos da polícia. Quincas ficou em minha casa por duas ou três semanas. Neste tempo, demonstrava uma gratidão e uma humildade 9 desmedidas. Era gentil e externava francamente seu agradecimento. Falava baixo, comia pouco, antecipava-se em executar as tarefas domésticas de minha casa, procurava agradar-me e ao meu marido. Foi Estela quem contou porque a polícia o perseguia: naquele dia, durante uma discussão, Quincas havia espancado sua mãe (Dejanira), e quebrado vários móveis de sua casa. Dejanira, enraivecida, informara à polícia que Quincas guardava em casa um revólver, mas imediatamente disse isto à Quincas, que saiu levando a arma. Quando os policiais chegaram, não encontrando o revólver, passaram a perseguir Quincas pelo bairro, até acuá-lo no matagal. Quincas pouco falou sobre sua mãe enquanto esteve em minha casa. Eu a procurei dois ou três dias depois, junto com outro monitor do trabalho, e passei a ter contato frequente com ela: era muito pobre, analfabeta, tivera vários companheiros e atualmente viera morar consigo um homem de emprego muito modesto que comprava parte dos mantimentos para a casa, bebia muito e desentendia-se com Quincas e seus irmãos. Parecia aliviada porque alguém estivesse assumindo o encargo de cuidar de Quincas e orientá-lo. Era visível que mãe e filho se amavam, como era visível que se odiavam. Era visível, também, que um não podia contar com o outro e que nenhum dos dois podia esforçar-se mais para cuidar do outro. Ambos, mãe e filho, sentiam-se magoados e desamparados por isto, e recriminavam-se mutuamente. Daí as brigas e os espancamentos; primeiro de Quincas por Dejanira e depois, ele crescido, de Dejanira por Quincas. A nenhum deles ocorria que estavam ambos desamparados e machucados, e que cada um deles não podia prover o outro de cuidados porque nenhum deles tinha o bastante sequer para si mesmo; que o mais esforço necessário para alterar sua condição era despropositadamente grande. Parecia-lhes a ambos que o outro recusava-se provê-lo por desamor... ou pior: por maldade. Na época, mesmo para mim era difícil compreender as origens sociais destas mágoas e deste desamparo. Quincas ainda voltou para a casa de sua mãe e 10
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