ESTUDOS ARQUEOLÓGICOS DE OEIRAS Volume 23 2016 /2017 • A RUI BOAVENTURA HOMENAGEM À SUA MEMÓRIA Editores Científicos: João Luís Cardoso e Rui Mataloto CÂMARA MUNICIPAL DE OEIRAS 2016 / 2017 Estudos Arqueológicos de Oeiras é uma revista de periodicidade anual, publicada em continuidade desde 1991, que privilegia, exceptuando números temáticos de abrangência nacional e internacional, a publicação de estudos de arqueologia da Estremadura em geral e do concelho de Oeiras em particular. Possui um Conselho Assessor do Editor Científico, assim constituído: – Dr. Luís Raposo (Museu Nacional de Arqueologia, Lisboa) – Professor Doutor Nuno Bicho (Universidade do Algarve) – Professor Doutor João Zilhão (Universidade de Barcelona e ICREA) – Doutora Laure Salanova (CNRS, Paris) – Professor Doutor Martín Almagro Gorbea (Universidade Complutense de Madrid) – Professor Doutor Rui Morais (Universidade do Minho) ESTUDOS ARQUEOLÓGICOS DE OEIRAS Volume 23 • 2016/2017 ISSN: 0872-6086 EditorEs CiEntífiCos dEstE VolumE – João Luís Cardoso e Rui Mataloto dEsEnho E fotografia – Autores ou fontes assinaladas Produção – Gabinete de Comunicação / CMO C orrEsPondênCia – Centro de Estudos Arqueológicos do Concelho de Oeiras Fábrica da Pólvora de Barcarena Estrada das Fontainhas 2745-615 BARCARENA Os artigos publicados são da exclusiva responsabilidade dos Autores. Aceita-se permuta On prie l’échange Exchange wanted Tauschverkhr erwunscht oriEntação gráfiCa E rEVisão dE ProVas – João Luís Cardoso e Autores Paginação – M. Fernandes imPrEssão E aCabamEnto – Graficamares, Lda. - Amares - Tel. 253 992 735 dEPósito lEgal: 97312/96 Índice Geral / contents PAULO VISTAS Prefácio Foreword ................................................................................... 9 JOãO LUíS CARDOSO & RUI MATALOTO Apresentação Presentation................................................................................. 11 RUI MATALOTO & JOãO LUíS CARDOSO Rui Boaventura (1971-2016), apontamento biográfico e bibliografia Rui Boaventura (1971-2016), biographical note and bibliography ..................................... 13 RUI MATALOTO, MARCO ANTÓNIO ANDRADE & ANDRé PEREIRA O Megalitismo das pequenas antas: novos dados para um velho problema The Megalithism of small dolmens: new data to an old problem........................................ 33 ANDREA MARTINS Entre o Atlântico e o Maciço Calcário Estremenho: a arte rupestre da Estremadura Between the Atlantic and the Maciço Calcário Estremenho: the rock art of Estremadura.................. 157 ANTÓNIO CARLOS VALERA & LINO ANDRé Aspectos da interacção transregional na Pré-história Recente do Sudoeste Peninsular: interrogando as conchas e moluscos nos Perdigões Views on the transregional interaction in Iberian Southwest Recent Prehistory: questioning the shells and molluscs from Perdigões .............................................. 189 ANA MARIA SILVA & MARIA TERESA FERREIRA Perscrutando espólios antigos 5: Contributo da análise dos restos ósseos humanos Examining old remains 5: the contribution of the study of human bones ................................. 219 JOãO LUíS CARDOSO & FILIPE MARTINS O povoado pré-histórico do Outeiro Redondo (Sesimbra): Resultados das campanhas de escavação de 2013 e 2014 The chalcolithic fortified settlement of Outeiro Redondo (Sesimbra): Results of 2013 and 2014 field seasons........................................................ 233 5 JOãO LUíS CARDOSO Correspondência epistolar remetida por eminentes pré-historiadores espanhóis ou que trabalharam essencialmente em Espanha a José Leite de Vasconcelos (1853-1941) Correspondence sent by eminent Spanish pre-historians or who worked mainly in Spain to José Leite de Vasconcelos (1853-1941)...................................................... 393 ANA CATARINA SOUSA Os tempos do Neolítico na região de Lisboa: o povoamento Times in the Neolithic from the region of Lisbon: the settlements . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 459 DIRk BRANDhERM, MIChAł kRuEGER & JOãO LuíS CARDOSO um novo método para a datação absoluta de ossos humanos cremados: a cabana 2 do Monte de São Domingos (Malpica do Tejo, Portugal) A new method for the absolute dating of cremated human bones: hut 2 at Monte de São Domingos (Malpica do Tejo, Portugal) .................................... 519 JOãO LUíS CARDOSO A ocupação do Bronze Final do Centro Histórico de Oeiras. Os materiais da Rua das Alcássimas Late Bronze materials recovered in the Historic Center of Oeiras. The artifacts of Rua das Alcássimas ........ 531 CENTRO DE ESTUDOS ARQUEOLÓGICOS DO CONCELHO DE OEIRAS Relatório das actividades desenvolvidas em 2016 Report on activities carried out in 2016 .......................................................... 555 6 Estudos Arqueológicos de Oeiras 23, Oeiras, Câmara Municipal, 2016 / 2017, p. 33-156 ISSN: 0872-6086 o MeGalitisMo das pequenas antas: novos dados para uM velho probleMa The MegaliThisM of sMall dolMens: new daTa To an old probleM Rui Mataloto1, Marco António Andrade2 & André Pereira3 Abstract The study of the megalithic phenomenon practically follows the development of Archeology as a Science, since the mid-19th century. During this time, one can recognize several stages of analysis, from the first normative readings, that consider this phenomenon as an univocal episode (explaining its different nuances by essentially contemporary cultural factors) to the formulation of the first evolutionary sequences, mainly by Manuel heleno based on his field works of almost a decade in megalithic monuments in Alentejo. These evolutionary diagrams, conditioned by the historical-culturalist thinking of their Time, result in linear, overly simplistic explanations for a theme as intricate as the origin and development of Megalithism. Basically they advocate, in general lines, a sequential evolution from simple to complex, with the universal, reductionist “shelving” of architectures and votive sets. The basic lines of this approach have remained in use until quite recently. New analyzes, mainly drawn since the 1980s, have presented alternative readings. Some plead for the total reversal of the simple – complex evolutionary sequence, almost like an “involution”; others consent the contemporaneity of several architectural solutions, admitting the cultural and chronological coexistence of simple and complex monuments. The works conducted by Rui Boaventura, mainly dedicated to the Megalithism of Alentejo and the Portuguese Estremadura, sought to order, filter and compile all the available information, as means to provide solid bases of analysis, grounded on critical readings and on the non-biased evaluation of data. In this regard, and as strictly as it was permitted, Rui Boaventura sought to characterize and define the key issue in the study of Megalithism: its actual origins and its various evolutionary levels. In this task, he recognizes the fallibility of linear readings and substantiates his analyses unconditionally on what data demonstrate, in terms of architectures, votive sets and absolute chronologies (preferentially on human samples). In this paper, the authors intend to present a series of small simple megalithic monuments, excavated in collaboration with Rui Boaventura in the areas of Redondo and Monforte, under the projects he directed (COMONPH and MEGAGEO). These are small megalithic monuments, with simple artefactual sets and simple architectural features, of the type that is traditionally assumed to be the representative of a first moment of Megalithism. With an exclusive focus in the Southwestern Iberia, the authors seek to insert these monuments, with all the questions they raise, into the chrono-cultural levels of the megalithic phenomenon in this region, trying as well to define their evolutionary sequences, with regard to the architectural features of monuments, their funerary contents and available absolute dates. It is acknowledged that, taking into account the currently available data, a simple evolution scheme could not be so applicable to the reality under consideration: even if one can accept that a substitution of architectural models had occurred, it would not have been as linear nor as chronologically detailed as normally assumed. In fact, rather than this instantaneous substitution, it seems that a gradual replacement, considerably expanded in Time, of simple monuments by complex monuments takes place, with the coexistence of tombs with various 1 Município do Redondo. [email protected]; [email protected]. 2 UNIARQ: Centro de Arqueologia da universidade de Lisboa. Fundação para a Ciência e a Tecnologia. [email protected]. 3 UNIARQ: Centro de Arqueologia da universidade de Lisboa. [email protected] 33 architectural features still during a full moment of the 4th millennium BCE. In this scope, one must also consider the funerary uses of natural caves and artificial caves, apparently contemporary and culturally comparable, according to the generic characteristics of the votive sets. Megalithism is thus a multi-faceted phenomenon, balanced by its own dynamics. Most of the ideas presented herein were widely discussed with Rui Boaventura, and the authors sought to remain faithful to his line of reasoning, which, in general terms (with the elementary personal nuances, of course), they shared. Keywords: Architecture, Chronology, Complex, Megalithism, Simple. “Change is one thing. Acceptance is another.” “It is curious how sometimes the memory of death lives on for so much longer than the memory of the life that is purloined.” “Little events, ordinary things, smashed and reconstituted. Suddenly, they become the bleached bones of a story.” arundhati roy, The God of Small Things, 1997 Rui Mataloto rui boaventura e o Megalitismo do nosso contentamento Este texto acaba por ser o corolário de um percurso de estudo e pensamento em que um dos actores principais homenageamos neste volume, Rui Boaventura. Não foi com o Rui que comecei a escavar antas, nem com ele ganhei o gosto de o fazer, esse vinha de antes, mas foi com o Rui que isso se tornou um desafio constante, onde a emoção da descoberta e a vontade de continuar, sempre, se tornou um propósito. Com ele aprendi, ou tentei aprender, a acutilância do olhar para os pequenos detalhes que tornam cada monumento único. A sensibilidade que apenas ele detinha ao observar cada anta era algo que tornava cada visita ao campo um verdadeiro prazer, pelo Amor que víamos transbordar por aquele amontoado de pedregulhos. No Rui, o Amor pelo seu Megalitismo, com M grande, abrangente, que nunca quis resumir às práticas funerárias dos IV/III milénio, era o Ar que respirava. A sua capacidade de trabalho, detalhe, rigor e positivismo verdadeiramente Cartesiano, aliada a uma obstinação, verdadeira casmurrice, que partilhávamos “numa escala matalotina”, como nos disseram, eram peças-chave para um desbravar de caminho quando outros trilhavam os mesmos. O Rui teve um percurso excessivamente breve para tudo aquilo que tomou em mãos: defender e estudar o megalitismo, anta a anta se preciso fosse, mas sempre com uma minúcia e rigor que a mim, e a muitos, nos exasperava. O seu caminho foi feito de sucessivos reveses, sempre impostos por factores externos, desde os tempos de Monforte, ou talvez mesmo antes, mas sempre persistiu, lutando desbravando e abrindo caminho, muitas vezes sozinho, mas quase sempre acompanhado, contra tudo e todos, mesmo contra mim, muitas vezes descrente nas suas vontades, mas não nas suas forças, acabava por ceder e acompanhava-o. O MEGAGEO, de que este texto é muito devedor, foi a prova de tudo o que era capaz de construir, arregimentando todos, de todas as áreas, em prol de um objectivo único, conhecer melhor o Megalitismo e as antas. A sua determinação pela memória futura impunha um rigor submilimétrico, com o qual escrutinava cada linha de cada documento antigo procurando nos grandes do Megalitismo o detalhe que exigia a si, enquanto 34 revolvia e punha em alvoroço meio MNA em busca de mais uma peça de uma anta, tantas vezes mal catalogada, como só ele se apercebia. No campo, só ele analisava pedra a pedra cada sepulcro, só ele descrevia cada minúsculo detalhe, sempre com a mesma determinação, sempre muito positivo e muito positivista. A mim, a partida do Rui apenas foi como sempre era, um “vamos falando…”, continuando a estar em cada anta que visito ou escavo, ajudando-me a questionar e a buscar as respostas, estando ali, observando o que fazemos, e a exasperar-se pelo detalhe quando me perco nas minhas efabulações paisagísticas. Assim era o nosso modo de trabalhar, o Rui, com o seu conhecimento enciclopédico de antas, observava o detalhe de cada pedra e os paralelos de cada achado, eu, perdido e entusiasmado nas minhas leituras estratigráficas, que depressa passavam para ler cada cabeço, cada paisagem, buscando razões… e assim continuávamos, horas, de debate, conversa, que deixava sempre algo por dizer, pois o gosto que devotávamos pelas antas, com o Rui, dava sempre para mais. Rui, aqui continuaremos, partilhando do entusiasmo contagiante que espalhavas junto de cada anta… MaRco antónio andRade Keep moving megaliths… Ponderar, descrever e precisar relacionamentos, à distância fria de quase um ano de ausência, poderia agora estabelecer-se como um exercício pouco complexo, mesmo mantendo uma vertente essencialmente pessoal que, obviamente, não pode ser contornada. Optei, no entanto, por reproduzir um pequeno texto que publiquei numa determinada rede social, poucos dias depois da sua partida. Poderia reescrevê-lo, objectivá-lo e circunstanciá-lo ao contexto presente; contudo, entendendo que emoções e sentimentos não se relativizam e que as impressões iniciais são sempre as mais assertivas, mantive aqui as suas linhas gerais. Conheci o Rui há pouco mais 15 anos, em Reguengos de Monsaraz, ainda como funcionário do antigo Instituto Português de Arqueologia, durante as suas visitas a STAM-3. E lembro-me que, entre o debate sobre arquitecturas e cronologias com o Professor Victor S. Gonçalves, achou particularmente estranho um jovem estudante que por lá andava com uma série de guizos presos no boné... A partir daí (e à parte o “incidente” de AGZ aqui recordado pelo André), quis o destino que os nossos caminhos científicos sempre se cruzassem, curiosamente investigando os mesmos temas nas mesmas regiões, desde a Estremadura ao Alto Alentejo. O primeiro contacto “profissional” deu-se precisamente com o seu ingresso como arqueológo no meu município de residência, em 2002, tendo como ele partilhado informações sobre uma “debilitada” Arqueologia que bem conhecia desde os meus tempos da Escola Secundária: desde logo, o Castelo da Amoreira, Pedreira do Aires, o Paleolítico do complexo basáltico e, obviamente, as Pedras Grandes (e todas as tentativas, até aí infrutíferas, de identificar o mais pequeno vestígio que restasse do conjunto megalítico do Trigache)… O interesse pelo estudo dos Megalitismos do Alentejo foi também um ponto comum, particularmente materializado nos nossos projectos individuais na área de influência da Ribeira Grande (com uma estratégica fronteira teórica estabelecida pela Cabeça de Vaiamonte: “este lado é para ti, este lado é para mim...”). Mas essa pequena sobreposição de “interesses” nunca nos conduziu ao antagonismo – muito pelo contrário, a colaboração sempre foi uma das suas principais preocupações. O que era extremamente saudável, pois o Rui, sempre com uma visão alternativa, e quase sempre contrária à minha, obrigava-me a repensar as coisas, forçando-me a ser melhor que eu próprio. Com o Rui também partilhei, durante os últimos anos, os dias frios de Inverno no Museu Nacional de Arqueologia, “fugindo” para junto dele quando me aborrecia de medir e contar machados e geométricos, com o 35 pretexto de manter “pretensos debates científicos”, mas com o verdadeiro intento de me aproximar do seu aquecedor, distraindo-o assim dos seus Megageos e “pedras verdes”… Lembro, por sua parte, as suas constantes “invasões” à minha sala de trabalho – surgindo sempre, conhecedor da minha incondicional disponibilidade para embarcar em novas aventuras, com novos materiais para estudar, sem sequer esperar pela minha resposta. “Toma lá os calcários das Baútas”, “toma lá as placas do Caladinho”, “no MEGAGEO 2, vais estudar os líticos da Comenda da Igreja”… E a resposta, invariavelmente, era sempre a mesma… Pronto, seja… Obviamente que é inútil falar sobre o Rui enquanto Investigador. O seu contributo para o estudo do Megalitismo, e da Arqueologia em geral, está bem evidente nas muitas e importantes linhas que nos deixou, assumindo-se já há algum tempo como uma referência incontornável... Como amigo? Quem o conhece, sabe com o que podia contar: com uma disponibilidade incondicional, com um espírito de cooperação sem par, com Amizade... E sempre, a sua boa disposição e energia inesgotável, que manteve até ao fim – lembrando que, ainda nos dias anteriores à sua partida, combinávamos uma sessão de trabalho em sua casa (“porque eu não posso conduzir até ao Museu, por causa da droga”, como ele jovialmente referiu). Se era uma pessoa fácil de lidar? Não era, mas isso apenas se devia à sua honestidade e frontalidade – que o levava por vezes a ser um pouco “politicamente incorrecto”, o que lhe valeu alguns dissabores e algumas “inimizades”. Mas, a meu ver, isso apenas fazia dele uma pessoa melhor... Até melhor que as outras (eu incluído)... Trabalhávamos em conjunto em alguns pequenos projectos: a ocupação calcolítica do centro urbano de Alter do Chão, as antas “helénicas” de Estremoz (com o Mataloto), a necrópole das Baútas e os seus artefactos votivos de calcário, a importância estética ou ritual do quartzo nas antas (depois de lhe descrever o espantoso esteio da anta da Gonçala 3, com a face interna cravejada de cristais de quartzo), sem esquecer a aparentemente “assombrada” escavação do “pequeno sepulcro simples” do Belo... Infelizmente, não os podemos concluir a tempo. Mas havemos de os acabar, estou certo. Aqui ou lá, continuará trabalhando connosco. Penso que não poderei escrever uma linha sobre Megalitismo sem recordar o Rui, o que poderia ser potencialmente problemático visto ser a minha área fundamental de estudo. Mas não me preocupo, que sei que quando tal acontecer, sempre o recordarei com um sorriso... E de outra maneira não poderia ser, não é? Até já, seu méne! Keep moving megaliths... andRé PeReiRa o Mega-rui Escrever meia dezena de parágrafos sobre o Rui é uma tarefa árdua. Mais árdua se torna quando tentamos, invariavelmente, rever toda e qualquer construção frásica, palavra, acento, vírgula… tal como ele o faria. Assim era o Rui e, como ele, a sua paixão e a forma como estudava o megalitismo. Recordo-me bem quando em visita à Anta Grande do Zambujeiro, no ano de 2001, no âmbito do colóquio “Arqueologia do Concelho de Évora”, eu e o Marco, jovens estudantes de arqueologia, ouvindo a conversa informal dos Ruis (Boaventura & Mataloto) sobre a recentemente escavada (também por nós) STAM-3, os abordámos. Depressa fomos ignorados… justificadamente. Foi um dos primeiros contactos com o Rui… Em 2013, enquanto aguardava a abertura do café de São Bartolomeu de Galegos para retomar, com a bica do meio da manhã, mais um dia de acompanhamento arqueológico no Parque Eólico da Lourinhã, recebo uma chamada do Rui. Já nos tínhamos cruzado e cumprimentado, entretanto, diversas vezes. O Rui, em meia dúzia de frases, todas esclarecidas e bem medidas, convidou-me a participar no seu projecto da altura, o Megageo, para 36 rever todo o Megalitismo (!!!). E, perante o entusiasmo que colocou em cada palavra, conseguiu convencer-me (apesar de, cautelosamente, eu ter empurrado a resposta para depois). “Olha que será um trabalho mais de detective…” dizia. Durante o tempo em que, como bolseiro de investigação FCT, estive a 100% a colaborar com o Megageo (i.e. com o Rui), a ideia que tinha do Rui não se desvaneceu, antes cimentou: “Tens de questionar a base de dados e confirmar as fontes bibliográficas!”, “Vai à bibliografia de base e reinterpreta!”, “E no arquivo cartográfico, fotográfico e epistolar?”. Pés de barro não podiam existir! Mesmo nas poucas saídas de campo que fizemos (para confirmar a localização de algumas antas), era vê-lo a esmiuçar todos os caracteres de um parágrafo em alemão dos Megalithgräber… para ver se estávamos nas coordenadas certas. Minúcia! Em escavação, o rigor do registo. Na anta do Monte Serves (juntamente com os amigos vilafranquenses da “Escola Agrícola”, o Rui minucioso continuou a evidenciar-se; o mesmo Rui que, já com um cansaço evidente, descreveu, igualmente de forma meticulosa, os esteios da anta da Barroca, numa tarde “daquelas”, à “Universidade do Redondo”… Sempre, mas mesmo sempre, com uma paixão contagiante pelo Mundo Megalítico. Apesar da sempre inglória tarefa de coligir legado de um amigo, e divulgá-lo, fazemo-lo com gosto, como uma sentida homenagem. E não são poucas as vezes que, durante o processo (e outros vindouros) pensamos (e pensaremos): “Ah, a falta que agora fazias para discutirmos isto, e aquilo”… Este trabalho sobre antas pequenas é muito do Rui. Do Mega-Rui. 1 – As pEquEnAs AntAs: bREvE sinOpsE dE LOngO pRObLEMA (Fig. 1) O carácter emblemático dos monumentos megalíticos e o seu impacto simbólico, ao longo dos tempos, nas paisagens, não só físicas como também sociais e culturais, sempre os permitiu assumir como elementos de particular interesse. O seu estudo praticamente acompanha o desenvolvimento da Arqueologia enquanto ciência, principalmente em obras de carácter monográfico, como (no que ao Sudoeste peninsular diz respeito) os trabalhos pioneiros de Francisco Pereira da Costa (1868), Gabriel Pereira (1875), Joaquim Possidónio da Silva (1881), Joaquim José da Rocha Espanca (1894) e Francisco Tavares Proença Júnior (1910), ou os numerosos títulos publicados por José Leite de Vasconcelos (e outros investigadores) logo desde os primeiros números d’O Archeólogo Português (num dos quais, inclusivamente, apresenta uma das primeiras plantas publicadas de pequenos sepulcros alentejanos; VASCONCELOS, 1898, p. 126) (Fig. 2). O lugar de destaque dos monumentos megalíticos em obras de carácter mais generalista também é evidenciado, como na Introdução à Archeologia da Península Ibérica, de Augusto Filippe Simões (1878), Les Âges préhistoriques, de M. Émile Cartailhac (1886), nas Religiões da Lusitânia, de José Leite de Vasconcelos (1897) ou nas Antiguidades Monumentaes do Algarve, de Sebastião Phillipes Martins Estácio da Veiga (1886, 1887 e 1889) – sendo sempre aqui assumidos como um dos principais elementos caracterizadores das sociedades pré-histórica no território actualmente português. Em relação concreta aos pequenos sepulcros megalíticos, o seu estudo efectivo ter-se-á iniciado, embora inadvertidamente, ainda durante a última década do século XIX. As intervenções de Manuel de Mattos Silva, juiz da comarca de Ponte de Sor, na área de Avis, contaram com a escavação de monumentos de média e grande dimensão, de câmara e corredor diferenciados, como o são a anta da Capela e “Anta Grande” 37 Fig. 1 – Sepulcros do Megalitismo do Centro Sul de Portugal sobre base geológica (actualizado em Novembro de 2015). Mapa elaborado no âmbito do Projecto MEGAGEO sob a coordenação de Rui Boaventura. Assinalam-se os núcleos de pequenos sepulcros das áreas de Montargil (A), Mora (B) e Coruche-Montemor (C) e sua relação geográfica com as áreas de Monforte (1) e Redondo (2), com indicação dos sepulcros apresentados. 38
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