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richard shaull e o pensamento educacional latino-americano PDF

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27 A matéria publicada nesse periódico é licenciada ISSN on-line: 1982-9949 sob forma de uma Licença CreativeCommons –Atribuição 4.0 Doi: 10.17058/rea.v25i2.8861 Internacional http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/" “O INTELECTUAL COMO TRANSGRESSOR”: RICHARD SHAULL E O PENSAMENTO EDUCACIONAL LATINO-AMERICANO Danilo Romeu Streck1 Resumo O artigo analisa a contribuição de Richard Shaull (1919-2002), teólogo protestante norte- americano e um dos pioneiros da teologia da libertação, para o pensamento latino-americano. Como missionário e professor na Colômbia e no Brasil, entre os anos de 1942 e 1962, ele foi profundamente tocado pela realidade latino-americana e, em troca, marcou uma geração de jovens e manteve desde então interlocução com pensadores que são referência na pedagogia latino-americana: Orlando Fals Borda (1925-2008), Paulo Freire (1921-1996) e Rubem Alves (1933-1914). Serão apresentados lugares onde as biografias destes quatro intelectuais se encontram e alguns aspectos do seu pensamento transgressor em relação ao conhecimento e visão de sociedade. Palavras-chave: Richard Shaull; Paulo Freire; Rubem Alves; Orlando Fals Borda; Pedagogia Latino-Americana “THE INTELLECTUAL AS TRANSGRESSOR”: RICHARD SHAULL AND THE LATIN AMERICAN EDUCATIONAL THOUGHT Abstract 1 Danilo Romeu Streck - Doutor em Educação - Programa de Pós-Graduação em Educação – Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Endereço para correspondência: Rua Pastor Rodolfo Saenger, 144 Bairro Jardim América - cep:93035-110 - São Leopoldo RS, [email protected] ou [email protected] Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 27-45, Maio./Ago. 2017. http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index 28 The article analyses the contribution of Richard Shaull (1919-2002), a protestant North American theologian and a pioneer of Theology of Liberation, to Latin American pedagogical thought. As a missionary in Colombia and Brazil, between 1942 and 1962, he was profoundly touched by Latin American reality and, at the same time, left important imprints on a generation of young people and kept, since then, dialogue with intellectuals that are reference in Latin American pedagogy: Orlando Fals Borda (1925-2008), Paulo Freire (1921-1996) and Rubem Alves (1933-2014). The text identifies themes where the biographies of these four intellectuals meet, as well as marks of transgression of their thought regarding knowledge and vision of society. Keywords: Richard Shaull; Paulo Freire; Rubem Alves; Orlando Fals Borda; Latin American Pedagogy “EL INTELECTUAL COMO TRANSGRESOR”: RICHARD SHAULL Y EL PENSAMIENTO EDUCACIONAL LATINOAMERICANO Resumen El articulo analiza la contribución de Richard Shaull (1919-2002), teólogo protestante norteamericano y uno de los pioneros de la teología de la liberación, para el pensamiento latinoamericano. Como misionero y profesor en Colombia y en Brasil, entre los años 1942 y 1962, fue profundamente tocado por la realidad latinoamericana y, a su vez, marcó una generación de jóvenes y mantuvo desde entonces una interlocución con pensadores que son referencia en la pedagogía latinoamericana: Orlando Fals Borda (1925-2008), Paulo Freire (1921-1996) y Rubem Alves (1933-1914). Se presentarán lugares donde las biografías de estos cuatro intelectuales se encuentran y algunos aspectos de su pensamiento transgresor en relación al conocimiento y visión de sociedad. Palabras-clave: Richard Shaull; Paulo Freire; Rubem Alves; Orlando Fals Borda; Pedagogía Latinoamericana 1 INTRODUÇÃO Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 27-45, Maio./Ago. 2017. http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index 29 Historical existence is a continuous struggle toward liberation, in the midst of which man is time and again surprised by new possibilities of meaning and fulfillment – in individual and collective life. (SHAULL, 1967, p. 216). Na atividade acadêmica, como na vida de modo geral, aparecem apenas poucos dos inúmeros fios com que o trabalho e a vida são tramados. O texto, seja livro, artigo ou o conjunto da obra, é a ponta de um iceberg que guarda muitos segredos e mistérios, não apenas para o leitor, mas também para o próprio autor. Essas conexões esquecidas, no entanto, permanecem vivas na memória e a qualquer momento podem emergir na consciência e inspirar novos pensamentos e novas práticas. Essa é a ideia força que me anima a escrever este ensaio sobre um pensador norte-americano e três pensadores latino-americanos que compartilharam o sonho de um mundo mais justo e de uma vida digna para todas as pessoas. A título de introdução, cabem algumas explicações ou advertências sobre as escolhas feitas. Conheci Richard Shaull como professor no Princeton Theological Seminary, nos Estados Unidos, na década de 1970, quando num seminário avançado abordou o tema dos “movimentos da margem” (fringe movements) na América Latina e o seu impacto nas instituições. Só mais tarde fui apreendendo o poder da metáfora da margem para pensar o papel da educação popular como uma experiência que, na América Latina, produziu um vigoroso movimento pedagógico. Foi a mesma época em que se publicaram os hoje clássicos Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire, e Teologia da libertação, de Gustavo Gutierrez. Na economia, a teoria da dependência, apoiada na metáfora centro-periferia, mostrava como o subdesenvolvimento dos países periféricos é o subproduto do desenvolvimento dos países centrais do mesmo sistema capitalista. Shaull tinha uma profunda identificação com os movimentos de mudança revolucionária e de resistência às ditaduras militares que foram se instalando na América Latina e ao longo de sua carreira acadêmica e atividade pastoral manteve este mesmo interesse e compromisso, em seu próprio país e em outras regiões onde a cultura ecumênica se estendia para além das igrejas2. Embora realizando a sua atividade acadêmica a partir da teologia, seu campo de visão não ficava restrito a essa área. Seu empenho em conhecer o mundo de seu tempo e ler neste mundo os sinais de transformação levam-no a outros campos de conhecimento como a sociologia, a filosofia e a pedagogia. 2 A dimensão ecumênica do trabalho de Richard Shaull não poderá ser abordada neste artigo. Remeto, para este assunto à tese de doutorado de Fábio Henrique de Abreu “Do protestantismo de missão ao protestantismo social: história da militância ecumênica no Brasil” (2015, sob orientação de Zwinglio Mota Dias. O leitor encontrará informações importantes sobre a relação de Shaull com o Conselho Mundial de Igrejas, em Genebra, com o ISAL (Igreja e Sociedade na América Latina) e como CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação), que mais tarde se transformou na Ação Educativa. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 27-45, Maio./Ago. 2017. http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index 30 Na primeira parte do artigo, detenho-me a fazer alguns entrelaçamentos entre as biografias dos três autores, reconhecendo que há muito mais a ser dito. Trata-se de biografias densas, em boa parte já conhecidas individualmente, mas que também se abrem para novos diálogos e aproximações. Orlando Fals Borda é internacionalmente conhecido como um dos criadores da investigación acción participativa (IAP); o outro é Paulo Freire cuja reflexão, especialmente no período quando esteve vinculado ao Conselho Mundial de Igrejas, está impregnado pela Teologia da Libertação; e Rubem Alves, conhecido pela irreverência e pela linguagem metafórica, que considera Shaull um de seus mentores intelectuais. Na segunda parte, abordo alguns temas que indicam convergências entre estes autores muito diferentes, cada um com uma personalidade e um perfil acadêmico muito próprio. As convergências se dão em torno do espírito transgressor de que falava Shaull. Não se trata, portanto, de buscar ou justificar influências numa simplificada relação de causa e efeito, mas de identificar lugares onde eles se encontraram para pensar a sociedade de seu tempo e nela agir. 2 ENCONTROS, PARCERIA E CUMPLICIDADE Ao visitar a biblioteca do Princeton Theological Seminary dirigi-me, como de praxe, a um computador para iniciar a busca pelo nome de Richard Shaull como autor. Uma funcionária atenta percebeu que poderia estar necessitando de ajuda e ao ser informada do que buscava, disse que para isso havia outro acervo. Trouxe então nada menos que seis grandes caixas de papelão onde havia desde agendas com registro dos compromissos profissionais e pessoais até rascunhos de trabalhos, alguns publicados e outros não; alguns ainda escritos em máquina de escrever com as tradicionais revisões com caneta. Neste texto utilizo preferencialmente este material ali encontrado, não como curiosidade exótica, mas para trazer à luz aspectos da nossa história nele guardadas. Shaull e Freire: Já na primeira caixa encontrei um importante motivo para continuar a busca. Sabia que Richard Shaull havia escrito o prefácio para a edição de Pedagogia do oprimido, de Paulo Freire, em língua inglesa3, mas foi importante encontrar registros do diálogo sobre o processo de publicação. Em carta escrita em Santiago do Chile e datada de 11 de setembro de 1968, Paulo Freire escreve, a mão, informando que em janeiro do próximo 3 Pedagogy of the oppressed foi publicado pela editora Herder and Herder (New York), em 1970, mesmo ano da publicação em português, pela editora Paz e Terra (Rio de Janeiro). O livro de Gustavo Gutierrez, Teología de la liberación, foi publicado em espanhol, em 1971, e em inglês, em 1973. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 27-45, Maio./Ago. 2017. http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index 31 ano, estaria em Nova York para um encontro promovido pelo Catholic InterAmerican Cooperation Program (CICOP) e que nessa ocasião gostaria de se encontrar com Shaull para “conversar sobre temas que nos interessam mutuamente”. A carta menciona um seminário de formação com grupos evangélicos de 10 países da América Latina e um outro programado com teólogos brasileiros: No próximo mês, provavelmente, terei aqui um grupo de teólogos católicos brasileiros que acabam de apresentar um documento excelente em um congresso internacional sobre catequese (não gosto deste conceito) em Colômbia. Sobre todas estas coisas, gostaria de trocar ideias com o senhor. A carta termina com referências a uma certa cumplicidade entre dois exilados, um deles em sua pátria após expulsão do Brasil, e o outro em uma pátria emprestada: “Como sei de suas ocupações, escrevo-lhe com antecedência para ver se seria possível que nos víssemos, terminado o encontro em CICOP. Aguardando notícias, receba um abraço fraternal do amigo e admirador (Paulo Freire)”. O conteúdo desta carta revela, para além da admiração pessoal, o envolvimento de setores progressistas das igrejas com o movimento de resistência às ditaduras, respectivamente, de transformação de suas sociedades. Eram movimentos dentro das igrejas do norte e do sul, evangélicas (protestantes) e católicas, unindo-se em torno de questões que afetavam a sociedade de seu tempo. A resposta de Richard Shaull dá-se uma semana depois, em 18 de setembro de 1968, escrita em inglês. A carta indica claramente que a relação de amizade entre os dois se estendia para o campo intelectual. Shaull escreve: My dear friend Paulo Freire: Your good letter which arrived yesterday served to perturb my conscience and to remind me how delinquent I have been in responding to you. Your exciting letter of some months ago arrived here and I read it with great interest. Your discussion of the significance of the reality of oppressor-oppressed in the educational process fascinated me and immediately suggested a number of new thoughts, for which I am grateful4. A continuação do diálogo é registrada em carta de 17 de fevereiro de 1969, na qual Shaull agradece a presença de Freire na Filadélfia, onde foi possível “conhecer seu trabalho recente, e sentir o estímulo de seu pensamento.” Compartilha que tem encontros semanais com um grupo bastante incomum de jovens professores para discutir o conteúdo do novo 4 No arquivo de Shaull a carta de Freire à qual se refere não foi encontrada. Percebe-se, no entanto, que Freire estava buscando interlocuções sobre temas do seu novo livro. Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 27-45, Maio./Ago. 2017. http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index 32 livro. Comunica também que estão avançando bem as negociações para a publicação de Pedagogia do oprimido em inglês. Herder and Herder estaria muito interessada, junto com outras editoras e que em breve, deveria fazer novo contato com uma proposta específica. A carta termina assim: “With warmest personal regards, and thanks for all that you have done for us while you were here, I remain, Sincerely yours, (Richard Shaull).” Chega-se assim ao prefácio que Shaull (1970, p. 11) escreve para Pedagogy of the oppressed. Já no primeiro parágrafo, registra aquilo que motivou a aproximação entre autor e prefaciador, entre o educador e o teólogo: “Education is once again a subversive force.” Referindo vários dos muitos autores, de diferentes matizes teóricos, Shaull conclui: “He has made use of the insights of these men to develop a perspective of education which is authentically his own and which seeks to respond to the concrete realities of Latin America.” E em tom grave denuncia a esterilidade de grande parte do trabalho acadêmico: Fed up as I am with the abstractness and sterility of so much intellectual work in academic circles today, I am excited by the process of reflection which is set in a thoroughly historical context, which is carried on in the midst of a struggle to create a new social order and thus represents a unity of theory and praxis. (SHAULL, 1972, p. 12). Aponta para a relevância do livro para o contexto norte-americano, em especial para as lutas dos negros, dos migrantes latinos e dos jovens. Ainda, para o iminente perigo de a sociedade tecnológica transformar as pessoas em objetos, programando todos para a conformidade à lógica do sistema. A cultura do silêncio ultrapassava fronteiras geográficas e ideológicas. Shaull e Rubem Alves: Não menos reveladores foram os achados sobre a relação de Richard Shaull com Rubem Alves, um dos pensadores mais instigantes e irrequietos de sua geração. Essa relação está bem descrita na biografia de Rubem Alves por Gonçalo Junior (2015, p. 153-156). Ele narra como a vinda de um jovem professor, que fora expulso da Colômbia como subversivo, criou uma “confusão” no seminário pelas ideias revolucionárias que trazia. Para além de ideias teológicas inovadoras, Shaull organizou um grupo de estudantes que, inspirados na experiência dos padres operários da França, desenvolveu um projeto nas fábricas na Vila Anastásio, em São Paulo. Rubem estava entre eles. No obituário publicado no Correio Popular de Campinas no dia 10 de novembro de 2002 (www.cpopular.com.br-Ano V) Rubem Alves conta que o que intrigava e encantava nesse novo professor é que o mesmo não demonstrava nenhum interesse nas coisas dos céus, mas se preocupava pelas realidades da gente na terra. Essa seria a lição fundamental da Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 27-45, Maio./Ago. 2017. http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index 33 teologia: “O problema do céu, Deus já o resolveu por nós; não há nada que tenhamos que fazer. Resolvido o problema do céu, estamos livres para cuidar da terra, que é o nosso destino...” Essa visão estará claramente refletida na tese defendida por Rubem Alves no Princeton Theological Seminary, publicada com o título A theology of human hope (publicado no Brasil como Da esperança). “Dick Shaull me ensinou a pensar.” É assim que Rubem Alves resume o que aprendeu com Shaull. Ele conta como, após uma prova, foi questionar sua nota 9.0, quando em sua opinião teria merecido um 10 porque escreveu tudo o que o professor havia dito. E a resposta inesperada para o estudante autoconfiante: “Por isso mesmo. Você apenas repetiu o meu pensamento. Lendo a sua prova eu não aprendi nada. Eu esperava encontrar na prova o seu pensamento...” Shaull ajudou a abalar para sempre as certezas deste jovem seminarista que, na morte deste mentor e amigo, escreveu sobre si: Quem já encontrou as verdades deixa de procurar. As certezas, então, embalam a inteligência que se põe a dormir. É tranquilizante saber-se possuidor de verdades. [...] Tão convencido estava eu do caminho que estava seguindo que até me havia matriculado numa escola onde se ensinam certezas e proibições, um seminário, porque o meu desejo era conduzir as almas pelo caminho que eu seguia. [...] Aí, o inesperado aconteceu. Um homem apareceu no meu caminho, andando na direção contrária. Perguntei-me, espantado, se ele não se dava conta de estar caminhando na direção errada. Aí, ao nos aproximarmos, ficamos um diante do outro, e olhei bem dentro dos olhos dele, e vi, refletido como num espelho, um mundo que eu nunca havia visto, o mundo que estava atrás de mim, o mundo do qual eu fugia, em busca dos céus. (ALVES, 2002). O outro mundo que se abria era um mundo sem certezas e proibições, mas um mundo onde havia horizontes, possibilidades, direções, liberdade. “E assim tenho andado pela vida afora, sem certezas e sem proibições...Tudo por causa do olhar daquele homem...” Shaull e Fals Borda: Embora não encontrasse no arquivo trocas de cartas entre Richard Shaull e Orlando Fals Borda, é bem provável que a marca do pensamento e do agir de Shaull tenha sido tão ou mais forte em sua vida do que na de Rubem Alves. Em seu livro de memórias, Shaull faz referência ao destacado sociólogo colombiano, que produziu importantes pesquisas sobre a violência na Colômbia. Registra que “em 1950 Orlando Fals Borda era um jovem estudante universitário e foi diretor do coro na igreja onde eu era pastor” (SHAULL, 2003, p. 66). Em vários escritos autobiográficos Shaull menciona o seu empenho pastoral no trabalho com jovens nas comunidades presbiterianas da Colômbia onde atuou, Barraquilla e Bogotá: My major attention focused on the young people in the Presbyterian churches. I invited them to go with me to the slums and rural areas, to take part in programs of Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 27-45, Maio./Ago. 2017. http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index 34 literacy, lay education and evangelism. I was heartened by their response; at the same time I slowly began to realize that our efforts were of little value. Only fundamental structural changes would improve the lot of the disposed; and yet the whole liberal ‘democratic’ political system functioned to preserve and legitimate the status quo. I was deeply disturbed when I had to leave Colombia in 1950. I also sensed that I had reached the end of the road.” (s/d - a, p. 5) É no depoimento de Fals Borda que a relação com Shaull se torna mais evidente. Ele afirma que não foi apenas o regente do coral da igreja, mas também diretor de Centro Juvenil Presbiteriano (CJP) em Barranquilla. Lembra o pastor com estas palavras: “O pastor da igreja era Richard Shaull que, mais tarde, seria um dos iniciadores da teologia da libertação...Ele tem uma concepção muito distinta do pastor, e lhe deu essa dimensão social, juvenil, ao CPJ” (FALS BORDA, 2006, p. 57). Com Shaull, permaneceu uma grande amizade, que se estendeu para Bogotá, onde Shaull foi pastor e Fals Borda iniciou sua carreira de sociólogo e foi novamente convidado a ser regente de coral da igreja. Ambos voltaram a se encontrar numa conferência em Genebra, quando Fals Borda já havia deixado a universidade e trabalhava nas Nações Unidas. O tema escolhido por Fals Borda para sua intervenção, “Subversão e desenvolvimento na América Latina”, segundo ele, era premonitório porque representava a tentativa de focar a subversão a partir de um ponto de vista positivo, contrariando a negatividade atribuída ao conceito pelo senso comum. 3 TRANGRESSÃO, SEUS SENTIDOS E MANIFESTAÇÕES Dentre as muitas entradas para abordar o pensamento de Richard Shaull e colocá-lo em diálogo com Paulo Freire, Orlando Fals Borda e Rubem Alves, optei pela ideia de transgressão. A própria etimologia da palavra nos ajuda a construir o escopo dos argumentos a seguir expostos. O verbo transgredir, formado pelo verbo latino gredir (ir, marchar) e pelo prefixo trans (além, através de), sinaliza um movimento que pode ter vários sentidos ou compreensões e também pode assumir formas distintas, dependendo do contexto histórico e social. Tomamos como ponto de partida temas chaves do pensamento de Richard Shaull para, a seguir, tecer algumas relações que, para leitores familiarizados com os três interlocutores selecionados, parecerão um tanto quanto evidentes e cujo aprofundamento infelizmente foge ao escopo deste artigo. No sermão “The Intellectual as transgressor” pronunciado por Shaull no dia 3 de março de 1968 no Princeton Theologial Seminary temos uma boa síntese para iniciar a nossa Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 27-45, Maio./Ago. 2017. http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index 35 discussão5. No sermão ele cita uma entrevista de Regis Debray, um jovem filósofo francês que havia sido sentenciado a 30 anos de prisão na Bolívia por causa de seu envolvimento com a guerrilha. Nessa entrevista, Debray declara que “quem aspira a ser um intelectual deveria ser um revolucionário, porque cada intelectual verdadeiro tenta recriar o mundo, em termos de ideias.” Falando em meio ao movimento estudantil que tomava conta das universidades, Shaull afirma que esta nova geração de estudantes ajudou a ver que o esforço intelectual não vale a pena, caso se contente com menos do que recriar o mundo. Como teólogo, ele busca nas histórias, nos mitos e nos símbolos do cristianismo, os elementos para compreender a vida e a história como uma peregrinação em busca de novas formas de experiência humana em novas ordens sociais. No sermão acima referido, ele explora três exemplos para relacionar estas histórias, mitos e símbolos com a situação presente. O primeiro deles é que a vitalidade intelectual está associada com a iconoclastia radical. O pensamento criativo depende de o intelectual ter a liberdade de destruir ídolos e de negar a ordem das coisas “como são”. Em outras passagens, ele argumenta, teologicamente, que a radicalidade da ação humana está em relação direta, paradoxalmente, com a transcendência radical, ou seja, de saber que a construção da sociedade é uma tarefa de homens e mulheres libertados de (ou condenados a?) viver sem absolutos, os quais pertencem a outra esfera, apenas acessível em sinais, na própria ação humana. Segundo ele, “o Reino de Deus está sempre em tensão com qualquer ordem social e política, expondo e julgando os seus elementos desumanizadores” (SHAULL, s/d -b). Há momentos da história quando a crise das instituições e a respectiva luta revolucionária podem coincidir com a vontade humanizadora da providência divina no mundo. O segundo aspecto destacado no sermão é o caráter messiânico dos símbolos judaico- cristãos. Como ainda hoje, a ideia de messianismo tinha uma conotação duvidosa, quando não negativa. Shaull tem consciência disso e explica que a força original do conceito de messianismo consiste em focar o ser humano não como ele é, mas em como ele poderia se tornar através de seu esforço de criar um novo futuro. Essa visão messiânica ou utópica, característica de comunidades voltadas a construir um novo futuro, estaria em boa medida ausente no mundo intelectual. Por fim, Shaull destaca a imagem da morte e ressureição como um parâmetro para compreender as sociedades. O liberalismo moderno, no qual se sustentam as democracias, estaria gastando suas energias para garantir o status quo e fazendo o possível para escapar da 5 Para uma análise da Teologia de Richard Shaull e sua contribuição para a teologia no Brasil remeto ao livro Fé e compromisso, de Eduardo Galasso Faria (2002). Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 27-45, Maio./Ago. 2017. http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index 36 morte. A metáfora da morte e ressurreição estaria afirmando a necessidade de disposição para morrer para permitir o surgimento de algo novo. And I would further contend that our world today very much needs a new generation of men and women who will approach the intellectual task in this spirit, who will have no hesitation in getting rid of the unburied dead in the realm of ideas, and will submit their minds and live to the type of experience and discipline that opens the possibility for creative thoughts on new frontiers. Essas ideias-força estão fortemente presentes no pensamento destes três autores e de uma geração de intelectuais latino-americanos que ousaram, a seu modo, transgredir. Destaco a seguir alguns aspectos da vida e da obra destes acadêmicos latino-americanos, onde está presente esta transgressão a que se refere Richard Shaull em torno de duas temáticas: na relação com o conhecimento e na relação com a visão de sociedade. 3.1 Transgressão e conhecimento A transgressão começa “em casa”, consigo mesmo e com seu trabalho. Rubem Alves expressa isso de forma contundente e irônica em suas Estórias de quem gosta de ensinar (1984a). Basta ver o título de algumas delas: “Os técnicos ‘sabe-tudo”, “Os hábitos alimentares da ciência” e “Meretrizes e madonas.” Em uma delas, “Os urubus e os sabiás”, os urubus, aves becadas mas sem pendor para o canto, decidem se tornar grandes cantores e para isso fundam escolas onde titulam e hierarquizam os iniciados em seu canto, mesmo que desafinado e sem graça alguma. Nisso, a floresta é invadida por uma multidão de pássaros com suas vozes lindas e cantos diferenciados. Contrariados em seu desejo de controle sobre o canto, decidem expulsar da floresta os pássaros que cantavam sem licença. “MORAL: Em terra de urubus diplomados não se ouve canto de sabiá.” É a denúncia do monopólio do conhecimento que a ciência arroga para si mesma. Essa absolutização do conhecimento técnico-científico, em que pese todos avanços da tecnologia, significa um atrofiamento da capacidade de se relacionar com o mundo e com os outros. Em termos educacionais, dirá ele, a escola opera o milagre às avessas de receber crianças de carne e osso e, depois de anos de treino com infindáveis provas, acabar transformando-as em bonecos de pau. É a história do “Pinóquio às avessas” (ALVES, 1984a, p. 9). Rubem Alves explorou essa multidimensionalidade do conhecimento em sua obra, na qual combinou uma linguagem do melhor estilo acadêmico clássico, como em Protestantismo e repressão (1979) com textos Revista Reflexão e Ação, Santa Cruz do Sul, v. 25, n. 2, p. 27-45, Maio./Ago. 2017. http://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/index

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