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Revista Mundo Antigo PDF

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Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 2, N° 04 – Dezembro – 2013 ISSN 2238-8788 Cometas, Eclipses e Ragnarök: uma interpretação astronômica da escatologia nórdica pré-cristã.1 Johnni Langer2 Submetido em Novembro/2013 Aceito em Dezembro/2013 RESUMO: O presente trabalho tem como principal objetivo tentar explicar o surto escatológico que ocorreu durante o século X na Escandinávia e Europa Setentrional, com temas que deram origem à uma grande iconografia do Ragnarök, provindas essencialmente da mitologia nórdica pré-cristã. Nossa hipótese básica é que ocorreram diversos fenômenos astronômicos durante os séculos VIII e IX (eclipses totais do sol e passagens de cometas, ambos relacionados à constelação da Boca do Lobo – as Híades) que despertou no homem nórdico seus temores escatológicos, originando a grande quantidade de imagens próximas do ano 1000. Nossa principal metodologia é a Astronomia Cultural, conjugada com as perspectivas da história cultural dos mitos. Palavras-chave: Mitologia nórdica; Era Viking; Escandinávia Medieval; Astronomia Cultural; Astromitologia. ABSTRACT: This work has as main goal to try to explain the eschatological outbreak that occurred during the tenth-century in Scandinavia and Northern Europe, with themes that gave rise to a great iconography of Ragnarök, stemmed primarily from the pre-Christian Norse mythology. Our basic hypothesis is that many astronomical phenomena occurred during the VIII and IX centuries (total eclipses of the sun and passages of comets, both related to the constellation of Wolf jaw - the Hyades) which aroused the Nordic man his eschatological fears, yielding the large amount images next year AD 1000. Our main methodology is the Cultural Astronomy, coupled with the prospects of the cultural history of myths. Key-words: Norse mythology; Viking Age; Medieval Scandinavia; Cultural Astronomy; Astromythology. 1 O presente artigo faz parte do projeto de pesquisa: “A morada dos deuses: mitologias celestes e Etnoastronomia na Escandinávia Medieval”, iniciado em 2012. Para maiores detalhes sobre o projeto consultar: http://lattes.cnpq.br/3561550459580228 Acesso em 05 de janeiro de 2014 2 Pós-Doutor em História Medieval pela USP, professor da UFPB. Coordenador do (cid:24)EVE, (cid:24)úcleo de Estudos Vikings e Escandinavos (neve2012.blogspot.com.br). E-mail: [email protected] 67 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT CHT/UFF-ESR Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 2, N° 04 – Dezembro – 2013 ISSN 2238-8788 “E tu, das nove Irmãs a mais interessante para mim, a mais querida, tu, que, desdenhando as moradas terrestres, elevas teu carro para os céus, e escondes tua fronte em meio aos astros, divina Urânia, propícia a meus votos, sustenta, e jamais abandones um Poeta dedicado a ti”. Roger Boscovich, Les Eclipses, 1779. Astronomia cultural e Mitologia: alguns conceitos e problemáticas A relação entre fenômenos astronômicos e mitologia não é algo novo na academia. Durante o início do século XIX, vários estudiosos tentavam estudar a origem de narrativas míticas a partir do vislumbrar da natureza, como Max Müller, A. Krappe e Paul Decharme. Mesmo entre os escandinavistas a teoria naturalista era muito comum, sendo frequentes as sistematizações dessa época - a exemplo de (cid:24)orthern mythology de Benjamin Thorpe – que consideravam os deuses como personificações de eventos metereológicos, astronômicos ou atmosféricos. Essa visão simplista e determinista dos mitos foi sendo deixada de lado pouco a pouco. Durante o século XX, mas especialmente após os anos 1960, estudiosos começaram a descobrir que muitos monumentos de povos europeus antigos, como Stonehenge, Carnac e Avebury, continham orientações astronômicas, dando início à disciplina da Arqueoastronomia. Em seguida, os pesquisadores começaram a aplicar os referenciais antropológicos para o estudo do conhecimento astronômico entre povos ágrafos, como os indígenas americano, africanos e polinésios (mais tarde ampliando essa perspectiva para culturas com escritas), originando a Etnoastronomia.3 3 Alguns acadêmicos preferem utilizar o termo Astronomia Cultural, que englobaria a Arqueoastronomia e a Etnoastronomia e ainda segundo alguns a tradicional História da Astronomia (Polcaro & Polcaro, 2009, 223). Alguns também consideram que na realidade a Arqueoastronomia é uma divisão da História da Astronomia e com metodologia não muito definida, enquanto que para outros a Arqueoastronomia seria uma subdivisão da Arqueologia (Polcaro & Polcaro, 2009, 223). Para uma perspectiva histórica dos estudos de Arqueoastronomia e Etnoastronomia, consultar Iwaniszewski, 1994, 5-20. Segundo esse autor, os pesquisadores norte-americanos tentam explicar as causas das antigas atividades astronômicas, partindo de fontes literárias, artísticas e culturais, enquanto que os europeus se preocupam com a precisão das antigas atividades astronômicas (em uma metodologia quantitativa e estatística), Iwaniszewski, 1994, 11. Para o arqueólogo espanhol Juan Antonio Belmonte Avilés (2005-2006, 26) a Arqueoastronomia é qualquer investigação das práticas de observação do céu com finalidades culturais (religião, adivinhação, arquitetura, decoração, pintura, engenharia, calendário, navegação, etc) em qualquer região do planeta que não se considera uma contribuição direta ao estudo da História da Astronomia moderna. Neste caso, a divisão entre Arqueoastronomia norte-americana e europeia dentro do modelo de Iwaniszewski já não se sustenta mais. O folclorista estoniano Andres Kuperjanov (2006, 37-62) vem adotando o termo Astronomia folclórica para definir o estudo do conhecimento astronômico em povos medievais e modernos. 68 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT CHT/UFF-ESR Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 2, N° 04 – Dezembro – 2013 ISSN 2238-8788 Atualmente podemos definir alguns paradigmas em torno destas duas disciplinas congêneres: a perspectiva arqueo/etnoastronômica pode auxiliar a resolver alguns problemas da pré-história ao medievo, sendo seu principal método a comparação (mas sem cair em esquemas generalizantes, universalistas ou psicológicos) e considerando o céu uma categoria abstrata e cultural. Também é necessário o auxílio da linguística, literatura e folclore: Baitty, 1973, 389-422. É conveniente uma abordagem interdisciplinar que possibilite compensar a ausência de teorias aceitas universalmente entre os acadêmicos das ciências humanas e exatas: Iwaniszewski, 1994, p. 12. A Arqueoastronomia deve manter uma linha de investigação muito além das ciências exatas, sendo demarcada dentro dos estudos de Arqueologia da paisagem, da história das religiões e da Arqueologia do poder: Avilés, 2005-2006, 25. O referencial arqueoastronômico pode conceder importantes elementos aditivos para o estudo da cultura material da religiosidade antiga: Polcaro & Polcaro, 2009, 242. A Arqueoastronomia não pode utilizar somente os referenciais modernos da Astronomia porque é produto da racionalidade ocidental e fragmenta os conceitos de natureza e cultura. Assim, é necessário aproximar os eventos celestes da visão social da época estudada, indo além das fontes puramente materiais: Serrano & Caderot, 2009, 11-21. Quanto aos referencias da Astronomia Cultural em relação aos mitos, eles geralmente partem de estudos de caso referendados pela Antropologia e História das Religiões – especialmente entre os arqueoastrônomos norte-americanos. Para o famoso pesquisador Anthony Aveni (1993, 96-148), o céu era um reflexo da sociedade, sendo as mitologias astronômicas algumas das unidades que regulavam o cotidiano individual e coletivo. Segundo Jean-Pierre Verdet (1987, 11-23) os mitos astronômicos são constituídos basicamente de imagens simbólicas que se modificam dinamicamente conforme o contexto histórico. Diretamente vinculado ao nosso objeto, alguns mitos podem ser reflexo diretos de fenômenos celestes anormais (eventos cataclísmicos segundo o referencial antigo, como o vislumbrar de cometas e eclipses, mas especialmente impactos físicos de meteoritos), cuja interpretação social foi definida por valores religiosos e simbólicos em uma dada época, resultando em uma mitologia preservada iconograficamente, arquitetonicamente ou literariamente (Bon et al, 2010, 221-222). 69 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT CHT/UFF-ESR Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 2, N° 04 – Dezembro – 2013 ISSN 2238-8788 Promissores estudos sobre a área clássica efetuados por Amanda Laoupi demonstram o referencial da análise do mito como fonte para estudos de eventos astronômicos. Além de farta documentação sobre o uso das Plêiades (aglomerado da constelação de Touro) em orientação náutica, demarcador de sazonalidade e calendário, periodicidades de equinócios e solstícios, esse aglomerado estelar também foi relacionado com mitologias relacionadas a desastres. A arqueóloga Laoupi (2011, 1-32; 2010, 1-18; 2006a, 1-15; 2006b, 129-142; 2006c, 5-22) também vem realizando uma série de estudos sobre as periodicidades de eventos catastróficos no mundo clássico e sua presença em dados arqueológicos e mitológicos (cometas, supernovas, emissões solares, etc) e seus efeitos na dinâmica social dos povos antigos do Mediterrâneo, dentro do que ela denomina de Astromitologia e Arqueologia do desastre. De nossa parte, consideramos mito um sistema de representações baseado no cotidiano e na religiosidade, estruturado de acordo com as práticas sociais e cujo sentido é organizado na adequação da experiência individual com os significados simbólicos definidos pela cultura de uma dada época (Langer, 1997, 116). Para o estudo dos mitos astronômicos, acreditamos que a abordagem comparatista seja a mais adequada, não somente para entendermos melhor o impacto dos fenômenos astronômicos nas sociedades antigas, mas também para percebermos as interações e redes que os mitos possuem em um dado campo cultural. O mitólogo Marcel Detienne (2004, 109-120) argumentou sobre o uso de uma abordagem experimental que demonstrasse a ligação entre a mitologia com os objetos e fenômenos da vida social e do mundo natural, demonstrando que os simbolismos inerentes aos mitos também possuem uma faceta objetiva relacionada diretamente aos aspectos materiais e concretos de uma cultura, não sendo apenas metáforas ou produtos teológicos abstratos. Os estudos de mitologia astronômica da área escandinava medieval já produziram alguns resultados, mas ainda pouco significativos em comparação com outras áreas e épocas. O melhor estudo ainda é o de Otto Siegfried Reuter (1982, 47-50), originalmente publicado em 1934, relacionando mitos com fenômenos celestes, mas sem maiores aprofundamentos sobre a relação entre mitologia e sociedade. O único livro publicado sobre a temática, Star myths of the vikings, de autoria do médico islandês Bjór Jonsson (1994) 70 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT CHT/UFF-ESR Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 2, N° 04 – Dezembro – 2013 ISSN 2238-8788 sofreu pesadas críticas de astrônomos e de escandinavistas, mas possui o mérito de ter despertado o interesse pela Astromitologia da Era Viking. Alguns estudos de caso foram publicados mais recentemente pelos astrônomos James Ogier (2002) e Timothy Stephany (2006), com resultados pouco satisfatórios, pelo desconhecimento mais profundo em mitologia escandinava, suas fontes e seus debates acadêmicos. Ao contrário do escandinavista Gísli Sigurðsson (2009, 851-861) com uma excelente crítica sobre os mitos nórdicos, mas carente de um enfoque da Astronomia Cultural (em termos de teorias, problemáticas e hipóteses) e mesmo de um conhecimento mais técnico em efemérides celestes. Outro escandinavista, Thomas Dubois, vem investigando de modo comparativo as tradições astronômicas da Escandinávia e as do báltico, por meio dos mitos e folclore, mas ainda sem publicações disponíveis.4 Nas próximas seções, demonstraremos nossas interpretações de como o aglomerado das Hiades em conjunção com eclipses totais do Sol e Lua e cometas durante o século VIII e IX contribuíram para a explosão de referências literárias e iconográficas sobre o Ragnarök nas ilhas britânicas e na Escandinávia próximas do ano mil. O Ragnarök e a figura do lobo O termo Ragnarök significa “consumação dos destinos dos poderes supremos” e se refere a uma série de acontecimentos que culminariam com a morte dos deuses nórdicos mais importantes e a destruição de parte do universo, após o qual algumas deidades e humanos sobreviveriam em uma nova e renovada ordem cósmica.5 O Ragnarök foi pouco representado imageticamente até a Era Viking, ao contrário de outras narrativas míticas, sendo mais conhecido em fontes literárias e iconográficas a partir do século X. Sendo 4 Dubois realizou a conferência Underneath the self-name Sky: comparative perspective on Sámi, Finnish, Medieval Scandinavian Astral Lore no evento (cid:24)ordic Mythologies da Universidade da Califórnia em 2012. Para um enfoque bibliográfico mais detalhado sobre os estudos de Astromitologia, Etnoastronomia e História da Astronomia na Escandinávia Medieval, consultar: Langer, 2013a; 2013b, 97-112; 2013c, 1-32. 5 Para um vislumbrar das principais fontes literárias e iconográficas, bem como das interpretações acadêmicas sobre o Ragnarök, consultar Langer, 2012, 1-30. Christopher Abram (2011, 157-168) considera que a principal fonte sobre o Ragnarök , o poema Völuspá é um produto cultural de uma época de instabilidade, da coexistência entre o paganismo e o cristianismo – que influenciaram simultaneamente o sincretismo cultural dos poetas e audiência da época. Para um debate recente sobre escatologia nórdica pré-cristã, especialmente em torno do poema éddico Völuspá, consultar Gunnel & Lassen, 2013. 71 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT CHT/UFF-ESR Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 2, N° 04 – Dezembro – 2013 ISSN 2238-8788 originalmente parte da cosmovisão pagã, porque o Ragnarök foi pouco representado visualmente antes do século IX? Em nosso trabalho anterior (Langer, 2012, 1-30) sugerimos que o “despertar” das representações artísticas deste tema foram causadas pelo confronto dos dinamarqueses pagãos em um mundo cristão repleto de referências apocalípticas e milenaristas (a Inglaterra anglo-saxônica durante o século IX). Sem negarmos essa via interpretativa, incluindo o uso ideológico por parte da Igreja para com as narrativas da morte dos deuses nórdicos, acreditamos que houve motivações anteriores para essa eclosão imagética, todas relacionadas com a constelação da Boca do Lobo. 1 2 Figura 1: Bracteado de Trollättan, Suécia, séc. VI. Figura 2: Bracteado de Skrydstrup, Dinamarca, séc. VI. A primeira figura é interpretada como sendo o deus Týr atacado pelo lobo Fenrir, após o mesmo ter sido enganado pelos deuses. Imagens retiradas de: http://commons.wikimedia.org (Acesso em 05 de janeiro de 2014). A segunda imagem possivelmente trata-se do deus Odin (cercado por dois pássaros, um cavalo ou cervo e uma serpente na base, típica de outros conjuntos odínicos). O canídeo representado de seu lado esquerdo é ameaçador, com a boca aberta e repleta de dentes, atacando o mesmo pelas costas. Segundo Aleks Pluskowski (2001, 113-131), a figura 2 é uma uma representação do Ragnarök, evidenciando que o mesmo fazia parte do imaginário pré-cristão. A figura do lobo é de extrema importância na história das religiosidades europeias pré-cristãs e assim como o cachorro, possui relação simbólica com a morte. Além disso, ambos os animais possuem ligação com a ideologia guerreira (como os ulfheðnar e os dois lobos de Odin, Freki e Geri) e com as batalhas, originando nomes de família relacionados a lobos em inscrições rúnicas e iniciações ritualísticas de jovens guerreiros, como atesta Anne-Sofie Gräslund (2004, 124-129). Outra associação muito importante e também conectada à morte e a guerra é o tema do lobo na caçada selvagem de Odin. 72 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT CHT/UFF-ESR Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 2, N° 04 – Dezembro – 2013 ISSN 2238-8788 3 4 Figura 3: Cena da cruz de Gosforth, Inglaterra, século X, representando um lanceiro combatendo uma figura lupina. Figura 4: Cena da cruz de Gosforth, Inglaterra, século X, representando um guerreiro abrindo a mandíbula de uma figura lupina. Ambas as ilustrações foram realizadas por Finnur Jónsson em 1913 e retiradas de http://commons.wikimedia.org (Acesso em 05 de janeiro de 2014). O motivo dominante de Gosforth é a cabeça de um lobo, cujo corpo entrelaça-se, terminando em outra cabeça canídea, ou com estrutura corpórea transformando-se em pequenas asas. Uma das cabeças foi esculpida defrontando a boca aberta contra um cavaleiro armado de lança, possivelmente o deus Odin (Face norte); em outro lado da cruz, duas cabeças de monstros são seguras por uma lança de um guerreiro, que em outra mão porta um corno (Face Oeste, figura 1). Alguns pesquisadores acreditam que se trata do deus Heimdall, mas possivelmente deve ser outra representação de Odin e Fenrir. A face frontal mais famosa da cruz apresenta duas cenas separadas (Face Leste). A primeira, onde uma cabeça lupiniana é segura por um guerreiro portando lança, cuja mão abre a mandíbula superior e a perna adentra a língua bifurcada e estende a mandíbula inferior – uma alusão a Vithar matando Fenrir durante a batalha de Vígríd (figura 2). A cruz de Gosforth constitui uma maravilhosa obra artística que revela o enorme hibridismo cultural que vivia a sociedade neste momento, atestando a adaptação de valores pagãos ao cristianismo. A principal figura lupina da mitologia escandinava é Fenrir,6 lobo inimigo dos deuses, filho de Loki e da giganta Angrboda. Originalmente, Fenrir significava habitante do Pântano, um termo apropriado para monstro. Fenrir também é chamado de Fenrisúlf (o lobo de Fenrir), mas esse uso nunca foi devidamente explicado segundo John Lindow (2001, 111), que ainda atribui a essa entidade dois papéis na mitologia: como esfacelador de Týr e matador de Odin no Ragnarok. Já segundo Rudolf Simek (2007, 80), o mito de Fenrir teria sido dividido por Snorri Sturlusson em quatro narrativas independentes: a prisão do lobo; a batalha do Ragnarök e sua morte por Vidar; a fuga de Hel, na mesma via que Garm; o devorar do Sol e da Lua. Assim, Simek (2007, 81) acredita que Fenrir, Garm, Skoll e Hati são nomes diferentes para a mesma entidade. A antiguidade do mito de Fenrir pode ser conferida em imagens do período de migração, em bracteados realizados entre os séculos V a VI d. C., como o de Trollättan, Suécia, que apresenta um homem sendo atacado na mão por um canídeo (figura 1). Em outro bracteado (Skrydstrup, Dinamarca), um homem encontra-se cercado por um cavalo e 6 Langer, 2014. Principais referências aos canídeos nas fontes mitológicas nórdicas: Völuspá 40, 44, 49, 51, 56, 58; Grímnismál 19, 39, 44; Gylfaginning 11, 33, 37, 49, 50; Lokasenna 38; Fjölsvinnsmál 14; Hákornarmál 20; Eiriksmál 7. 73 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT CHT/UFF-ESR Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 2, N° 04 – Dezembro – 2013 ISSN 2238-8788 dois pássaros, enquanto um terceiro animal de formas canídeas o ataca pelas costas (talvez uma imagem precoce de Odin no Ragnarök) (figura 2). Para Aleks Pluskowski (2001, 113- 131) essas imagens são evidências da origem da imagem do lobo como inimigo dos deuses e desmente a ultrapassada visão oitocentista de Sophus Bugge em considerar o Ragnarök como uma construção totalmente cristã. Também em inscrições rúnicas (como a de Ribe, século VIII), temos a associação entre lobo, Odin e Týr. Dois poemas escáldicos do século X confirmam a presença do lobo Fenrir como um animal inimigo dos deuses e também respaldam a antiguidade do Ragnarök no imaginário pagão nórdico:7 Eiríksmál 7 “Então, por que privas ele da vitória, “Hvi namt þu hann sigri þa quando você mesmo pensou sê-lo bravo? er þer þotti hann sniallr vera Não prevejo o que deveria para saber, diz Óðinn, þvi at ovist er at vita sagðe Oðenn entretanto, o lobo cinza olha ser ulfr enn hausve sombriamente para a morada dos deuses.” a siot goða.” Hákonarmál 20 “Deve ir sem amarras “Mun óbundinn aos assentamentos dos homens á ýta sjöt o lobo Fenrir, Fenrisulfr of fara, tão bom como foi antes áðr jafngóðr do caminho desguarnecido á auða tröð surge um homem da realeza.” konungmaðr komi.” 7 Tradução de Pablo Miranda com base na edição de Finnur Jónsson, 1908 e 1911. 74 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT CHT/UFF-ESR O poema Eiríksmál1 faz referencia ao Ragnarök por meio da citação do lobo Fenrir, que observa os deuses esperando o momento de ser libertado. A sua coloração citada, cinza, também revela possíveis implicações com a noção de vulcanismo (típicos na Islândia)2 ou de eclipses totais do sol. Uma das estrofes mais famosas do poema Hákonarmál3 (a vigésima) é uma referência ao lobo Fenrir, que se soltará brevemente – uma evidência de que o Ragnarök não foi uma invenção cristã tardia, mas sim baseado numa autêntica tradição nativa pré-cristã.4 A maior dificuldade dos pesquisadores é encontrar a origem da imagem do lobo como monstro apocalíptico, uma representação inexistente na cosmologia cristã e com várias referências tardias na tradição nórdica, cujo maior período de representações visuais e literárias foi a partir do século X. Desenvolvemos uma hipótese que pode elucidar alguns aspectos desse problema. Partindo da ideia criada por Otto Siegfried Reuter (1982) em 1934 (figuras 5 e 6) e seguida por Jonas Persson (2003), consideramos que o aglomerado das Híades5 (constelação do Touro, Tau) foi 1 Eiríksmál (Os ditos de Eirik) é um poema escáldico fragmentado e anônimo, composto após 954 e narrando a morte do rei Eiríkr Bloodaxe. O poema utiliza intensamente narrativas da mitología escandinava para descrever a chegada do rei no Valhalla (Langer, 2014). 2 Em recente conferência, o arqueólogo Neil Price (2013) discorreu sobre a possibilidade do inverno que antecede o Ragnarök (Fimbulwinter) na mitologia escandinava, ter sido originado por uma erupção de um vulcão em 536 d. C., com impacto devastador no clima mundial, inclusive com um prolongado obscurecimento do disco solar. 3 Hákonarmál (Os ditos de Hakon) é um poema escáldico, de autoria de Eyvind Finnsson skáldaspillir. É uma fervorosa elegia em memória do rei Hakon Haraldsson (c. 920-960, irmão de Eirík Bloodax) - geralmente descrito como “o bom”. O poema é encontrado no manuscrito da Heimskringla de Snorri, citado parcialmente na Edda Menor e no manuscrito da Fagrskinna, datado do século X (Langer, 2014). 4 Outra evidência da origem pagã do Ragnarök é a inscrição rúnica de Skarpåker (Sö 154, Suécia, datada do início do século XI): “kunar raisþi stain at lyþbiurn sun sin iarþ sal rifna uk ubhimin” (Gunnar ergueu essa pedra em Lydbjörn; a Terra deve abrir-se e o céu acima...”) (Tradução de nossa autoria, com base na edição de Alain Marez, 2007). É praticamente impossível que uma narrativa – supostamente “inventada” pelos cristãos – pudesse ter tido um divulgação tão ampla entre os anos 930 a 1020 e conter tantas referências literárias e iconográficas em contextos pagãos tão diferentes (na Inglaterra dinamarquesa, na Islândia e na Suécia). Como demonstramos em estudo anterior (Langer, 2012, 1-30) a escatologia nórdica pré-cristã talvez originalmente não tivesse a importância de outras narrativas míticas, mas o contato com a tradição cristã alterou esse quadro – somado aos motivos que apresentamos no presente estudo – e ela passou a ter uma importância muito maior. Também não negamos aqui o fato das narrativas terem sofrido acréscimos por parte dos escritores cristãos e de que alguns simbolismos terem sido utilizados como meio propagandístico e ideológico para a melhor conversão dos pagãos. Mas isso não permite considerar a escatologia nórdica pré-cristã como produto totalmente tardio da nova religião. 5 O aglomerado estelar aberto das Híades desenha a face do Touro e a estrela mais brilhante desta constelação, Aldebarã (na realidade não pertence ao aglomerado) era o olho deste animal para os povos da Mesopotâmia, Grécia, Egito e Roma, tendo continuidade deste simbolismo no mundo medieval e árabe. A 150 anos luz da Terra, as Híades são o aglomerado estelar mais próximo de nós. No braço das Híades, situa-se Theta Tauri, uma estrela dupla visual, mas a estrela mais brilhante do conjunto é Theta 1 (com magnitude 3.1). As Híades cobrem 5° do firmamento celeste. Na mitologia grega, as Híades foram as filhas de Atlas e Aethra e irmãs das Plêiades (Ridpath, 2011, 172-173). O aglomerado das Híades sempre foi muito importante para as sociedades asiáticas, do Oriente Médio, do Mediterrâneo e da América do Sul. Ela foi associada com marcações de calendário no templo de Mnajdra I na ilha de Malta; na Índia e no Egito antigo; no Peru pré-incaico (Keley & Milone, 2011, 202, 271, 294, 444). Num Revista Mundo Antigo – Ano II, V. 2, N° 04 – Dezembro – 2013 ISSN 2238-8788 interpretado pelos nórdicos pré-cristãos como sendo o asterismo da Boca do Lobo: trata- se de um conjunto de estrelas brilhantes que formam um V (com dez vezes a largura aparente da Lua) oblíquo em redor da brilhante estrela Aldebarã. Este aglomerado é bem perceptível durante quase todo o ano nas regiões escandinavas, especialmente entre outubro a março, sendo mais de uma dúzia de estrelas visíveis a olho nu em seu conjunto. Não existe uma referência direta da associação nas fontes escandinavas entre as Híades e o lobo Fenrir, tendo Reuter baseado-se na descrição do Gylfaginning 51: “Fenrisúlfr ferr með gapandi munn, ok er inn neðri kjöftr við jörðu, en in efri við himin. Gapa myndi hann meira, ef rúm væri til. Eldar brenna ór augum hans ok nösu” (Fenrir o lobo corre com a boca aberta, sua mandíbula superior alcança o céu e a inferior a Terra; ele bocejaria ainda mais se houvesse espaço. Fogo sai de seus olhos e narinas6). Como veremos a seguir, existem evidências do envolvimento astronômico das Híades com cometas e eclipses, que somados à iconografia da mandíbula lupina na Europa Setentrional da Alta Idade Média, tornam essa hipótese altamente convincente. 5 6 Figura 5: A constelação da Boca do Lobo (Wolfs radjen, Hyaden) segundo o pesquisador alemão Otto Reuter (ilustração original em alemão, 1934), situada entre as Plêiades (Sete estrelas) e Órion (Roca de Frigg). Figura 6: Ilustração colorida em inglês baseada no original de Otto Reuter de 1934 (Wolf´s Jaws, Reuter, 1982). A interpretação da constelação de Órion como sendo a Roca de Frigg é baseada no folclore medieval nórdico e também consideramos como correta. instigante estudo, os classicistas Boutsikas & Hannah (2011, 342-348) demonstraram que as Híades eram relacionadas com as narrativas do rei mítico de Atenas, Erechtheus, mas também conectadas a festivais religiosos durante a visibilidade deste aglomerado acima da Acrópolis, envolvendo jovens meninas de 7 a 11 anos. 6 Tradução de nossa autoria, com base na edição de Guðni Jónsson, 2013. 76 http://www.nehmaat.uff.br http://www.pucg.uff.br NEHMAAT CHT/UFF-ESR

Description:
Key-words: Norse mythology; Viking Age; Medieval Scandinavia; Cultural Astronomy;. Astromythology. solares intensas (c. 807), chuvas de meteoros (c. 810; c . Norse Mythology: a guide to the gods, heroes, rituals, and beliefs.
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