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Ressocializaçao... Uma Disfunçao Da Pena De Prisao PDF

28 Pages·2003·24.283 MB·Portuguese
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Ordenamento Constitucional da Política Urbana. 7~214 Aplicação eEficácia doPlano Diretor. , 1()2() SCOTT, Paulo H.Rocha (Prof. daULBRA, Mestre emDireito) Direito Constitucional Econômico: Estado eNormalização da Economia TRINDADE, A.A.Cançado (Prof. Titular daUnivers deBrasília) Direitos Humanos eMeio-Ambiente/Paralelo dos ditor Sistemas de Proteção InternaF:íonal 9 ~ SUMÁRIO INTRODUÇÃO 15 CAPÍTULO I - PENA DE PRISÃO 17 1.1 Funções declaradas efunções reais da pena 17 1.2 A cifra negra da criminalização 20 1.3 A seletividade da pena 24 CAPÍTULO II - O CÁRCERE E A RESSOCIALIZAÇÃO.......... 29 2.1 Ressocialização ou socialização.......................................... 29 2.2 Ressocialização mínima ou máxima.................................... 36 2.3 O cárcere como reprodutor da ordem capitalista 39 CAPÍTULO III - MALES DO CÁRCERE.... 43 3.1 Desaculturação, aculturação ou prisionização 43 3.2 Estigmas do sistema............................................................. 50 3.3 Estigmas do cárcere 52 CONCLUSÃO 57 BIBLIOGRAFIA 61 INTRODUÇÃO A realidade carcerária, na atualidade, tem demonstrado que a pena privativa de liberdade não vem cumprindo as suas funções precípuas de ressocializar o criminalizado e o de evitar a reinci- dência criminosa. Ao contrário, a prisão, em si mesma, tem-se demonstrado cri- minógena, além de haver-se transformado em fábrica de reinci- dência. Em vez de ressocializar o criminalizado, o cárcere degenera-o, dessocializa-o e ernbrutece-o, reconduzindo-o a uma carreira de desvio. O discurso oficial ressocializador encontra-se desacreditado e, como consectário, deslegitimado. A realidade é que, hoje, se reconhece que o cárcere é incapaz de ressocializar o apenado, conseguindo, só e somente, impingir-lhe um sofrimento inútil, atítulo de castigo. Será, portanto, que a pena prisional tem obtido o sucesso, anunciado, pomposamente, pela nova defesa social, no que pertine 13 aos seus objetivos de ressocialização e de combate à reincidência UIllU nova dicção terminológica, tais como: criminalizado, em vez criminosa? dú "criminoso"; criminalização, em vez de "criminalidade", Rele- Como ocorre o fenômeno da "cifra negra" e o processo de sele- Vt.H;C, apenas, que foi utilizada a velha nomenclatura de crimi- tividade da pena? uulidade e outros vocábulos do paradigma tradicional, só e somen- Outra questão posta: ressocialização ou socialização. Pode-se lu, por fidelidade aos autores citados, mesmo em paráfrases. falar em ressocialização do apenado, sem, antes, se preocupar com a educação da própria sociedade, criminógena, na estrutura capi- talista? É possível cogitar-se de ressocialização, máxima ou míni- ma, sem violação dos direitos fundamentais do indivíduo? O cárcere deve ser analisado, como instituição autônoma, ou no contexto sistêmico capitalista, como mero reprodutor das rela- ções de produção? Como ocorrem a desaculturação, a prisionização e os estigmas carcerários? De que forma estes fenômenos do cár- cere impedem a reabilitação do preso e fomentam sua reinci- dência? No primeiro capítulo, procura-se demonstrar a falácia do discurso oficial, sobre as funções declaradas da pena, bem co- mo são trazidas ao debate as suas reais funções, ou funções ocul- tas. Também se analisa a incidência do fenômeno da "cifra ne- gra" e da seletividade da pena, no processo da criminalização de condutas. No segundo capítulo, são tratados os temas da ressocialização ou socialização, os níveis, mínimos e máximos, da ressocialização e o cárcere, enquanto reprodutor ideológico da ordem burguesa. No terceiro e último capítulo, objetiva-se demonstrar os principais males do cárcere, pondo-se, em relevo, a ocorrência dos fenômenos da desaculturação, aculturação ou prisionização, bem assim a dupla carga estigmatizante - sistêmica e da prisão -, a que vive submetido o apenado. Finalmente, convém enfatizar-se que os temas foram formu- lados, à luz do novo paradigma da reação social, refutando-se o paradigma da criminologia etiológica. Tanto assim que, no trans- curso da monografia, deparar-se-á, aqui e ali, com a utilização de 14 15 CAPÍTULO I PENA DE PRISÃO 1.1FUNÇÕES DECLARADAS E FUNÇÕES REAIS DA PENA o moderno saber penal e a Criminologia Crítica, ao tempo em [ue têm procurado "um novo discurso legitimante da pena e mais ompativel com a democracia real'"; têm, também, procurado desnu- dar o discurso, palavroso e bombástico, da criminologia tradicional. Discurso falacioso, que o novo paradigma da reação social tem desmistificado, ao questionar as funções declaradas e as funções reais da pena de prisão. Como se sabe, odiscurso oficial da prisão éno sentido de controlar acriminalidade ede promover areeducação do apenado. Incontroverso, no entanto, é que a pena de prisão vive uma crise aguda de legitimidade, nos dias atuais, por não vir cumprindo, egundo Andrade, a sua "função instrumental de efetivo controle (e redução) da criminalidade ede defesa social".z ISANGUINÉ, Odone. Função Simbólica da Pena. Fascículos de Ciências Penais, Porto Alegre, n. 3,jul./ago./set. 1992. p.125. 2ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A Ilusão de Segurança Jurídica: do controle da violência àviolência do controle penal, p.291. 17 Ao contrário de seus fins declarados, a pena prisional tem Assim sendo, o "fracasso" da prisão é só aparente, para que o cumprido, antes de tudo, funções simbólicas e ideológicas do sistema, sistema carcerário continue funcionando. Basta se leia Foucault: diferentes de seus objetivos instrumentais. "O pretenso fracasso não faria então parte do funcionamento da É certo que a prisão, como método de controle social, "fracas- pn.sa-o ....?,,5 sou", de referência aos seus objetivos declarados. "Se tal é a situação, a prisão, ao aparentemente "fracassar", não Tanto assim que, em vez de "reduzir a criminalidade ressociali- erra seu objetivo ...,,6 zando o condenado produz efeitos contrários a tal ressocialização, "O atestado de que a prisão fracassa em reduzir os crimes deve isto é, a consolidação de verdadeiras carreiras criminosas cunhadas talvez ser substituído pela hipótese de que a prisão conseguiu muito pelo conceito de "desvio secundário".3 bem produzir adelinqüência ... Verdade apodítica é que a prisão possui efeitos criminogênicos, O sucesso é tal que, depois de um século e meio de "fracassos", a como agência nutriz do processo de criminalização secundária e de prisão continua a existir, produzindo os mesmos efeitos e que se têm reincidência criminosa. Exatamente, porque a sua função real, ao maiores escrúpulos em derrubá-Ia". 7 contrário do que anuncia, é de "sementeira" de criminalização e de Dir-se-ia, então, que o ''fracasso'' da prisão tem sido o seu aves- reiteração criminal. SO, a saber, a história de seu sucesso. Vale enfatizar-se que o aparente fracasso das funções declaradas O desafio da Criminologia crítica, portanto, consiste na descons- da pena, historicamente, corre, parelhas, com o êxito de suas funções trução do discurso oficial do sistema repressivo, que soa falso e insin- reais. Difícil de cortar, assim, esses discursos simbióticos, à medida ero. que um não sobrevive sem o outro, mas se explicam, mutuamente. Por sinal, explicitando os objetivos ideológicos e objetivos reais Enfim, só na aparência, tais funções são antagônicas. do sistema carcerário, assevera Cirino dos Santos: Tanto assim que, explicitando a correlação entre as funções "Entretanto, o projeto técnico-disciplinar do aparelho carcerário, declaradas e as encobertas da pena, diz Andrade, em citação remissiva estruturado conforme objetivos da correção, do trabalho, da modu- de Foucault: lação da pena, etc. (sob controle dos "engenheiros da conduta"), mar- cará sua existência na sociedade capitalista por duas características "O fracasso das funções declaradas da pena abriga, portanto, a constantes: história de um sucesso correlato: o das funções reais da prisão que, a) por sua eficácia invertida, reproduzindo a criminalidade pela opostas às declaradas, explicam sua sobrevivência e permitem reincidência, fabricando e favorecendo aorganização da delinqüência, nem compreender o insucesso que acompanha todas as tentativas reformistas corrigindo o delinqüente, nem reduzindo a criminalidade; b) pelo isomor- de fazer do sistema carcerário um sistema de reinserção social"." fismo reformista, observado nareposição domesmo projeto, na sucessão de Hipoteticamente, se se desse a palavra ao sistema punitivo e se lhe fracasso, reforma, fracasso, etc. É a insistência na manutenção desse pro- desse voz, para explicar essa aparente contradição, entre os objetivos jeto, com essas características negativas verificadas e comprováveis ao declarados e latentes da pena, por certo, ele diria, irônico e cínico: longo da história, que fundamenta (também FoucauIt) adistinção esclarece- Meu fracasso é a medida de meu sucesso. Declaro que meu objetivo dora (já realizada por Pasukanis) entre objetivos ideológicos e objetivos é reduzir a crirninalidade e evitar a reincidência, através da ressocializa- reais do sistema carcerário: os objetivos ideológicos afirmam arepressão e ção do condenado. Mas o que quero, realmente, é reproduzir a delin- a redução da criminalidade, como modo de ocultar a seleção da incrimi- qüência e aprópria reincidência. Esse é meu objetivo real e oculto. 5 FOUCAULT, Michel. Vigiar ePunir: nascimento da prisão, p. 239. 3Ob. cit., mesma página. 6Ob. cit., p. 243. 4ANDRADE, ob. cit., p. 291. 7Ob. cit., p. 244. 18 19 nação e a organização e repressão da delinqüência como 'tática de sub- diferença existente, entre condutas criminalizáveis efetivamente missão aopoder', que constituem osobjetivos reais do sistema."s pl'nticadas e acriminalidade, constante dos registros estatísticos. II Urge que se lhe descerre a cortina, simbólica e ideológica, que 3m verdade, inúmeros fatos que, apesar de se subsumirem, tipi- encobre suas funções reais e perversas. Principalmente, porque: cumcnte, na moldura da lei penal, não aparecem nas estatísticas ofi- duis, uma vez que o sistema subestima-os ou ignora-os. "Os objetivos reais do sistema carcerário aparecem em uma dupla reprodução: reprodução da criminalidade (recortando formas de crimi- Tal fenômeno, por isso mesmo, pareceu anormal aos criminólogos, nalidade das classes dominadas e excluindo a criminalidade das classes dl~HpcJ'tando-lhes,então, a atenção, ao ponto de buscarem, mediante pes- dominantes) e reprodução das relações sociais (a repressão da crimina- qulsns, levantar a extensão dos fatos, legalmente, puníveis, mas menos- lidade das classes dominadas funciona "como tática de submissão ao prezados pelo sistema. Tanto éverdade que Hulsman acentua: poder" das classes dorninantesj.?" "Se um grande número de vítimas não denuncia os fatos puníveis Discorrendo, também, sobre as funções não declaradas da pena à polícia, esta também não transmite todos os fatos que lhe são comu- privativa de liberdade, pontua Maria Lúcia Karam: nicados ao Parquet, o qual, por sua vez, longe de mover processos em relação a t040s os fatos que lhe são submetidos, arquiva a maior parte. "A distância social entre os apenados e aqueles que, aparente- Isto quer dizer que o sistema penal, longe de funcionar na totalidade dos mente, obedecem às leis e decisiva para a formação da imagem do cri- casos em que teria competência para agir, funciona em um ritmo minoso, bem como para a interiorização e efetivo cumprimento deste extremamente reduzido. Tal constatação suscita duas observações. Com papel de criminoso, sendo esta uma das funções - talvez a mais im- uma ponta de humor, pode-se desde logo dizer que as pesquisas sobre a portante - não declaradas da pena privativa de liberdade". 10 "cifra negra" se voltam contra o sistema: pode haver algo mais absurdo Numa palavra, dir-se-á que os sistemas punitivos, por serem do que uma máquina que se deva programar com vistas a um mau insinceros e falaciosos, proclamam cumprir funções instrumentais, rendimento, para evitar que ela deixe de funcionar?,,12 quando, em verdade, realizam funções simbólicas. No mesmo sentido, evidenciando a dimensão científica das esta- tIsticas criminais, estribilha Andrade que: "Reapropriadas doravante como informativas dos resultados da 1.2A CIFRA NEGRA DA CRIMINALIZAÇÃO criminalização, as estatísticas criminais possibilitaram também aconclusão de que acifra negra varia em razão daclasse de estatística (policial, judicial A elaboração conceitual da Criminologia tradicional, sobre o fenô- ou penitenciária): Nem todo delito cometido é perseguido; nem todo delito meno da delinqüência, repousava nos registros estatísticos oficiais. perseguido é registrado; nem todo delito registrado é averiguado pela No marco desse pensamento criminológico, a "criminalidade" era, polícia; nem todo delito averiguado é denunciado; nem toda denúncia é apenas, a legal, inscrita nas estatísticas das agências do controle penal. recebida; nem todo recebimento termina emcondenação. Contudo, há algumas décadas, os criminólogos se viram, diante Os delitos não perseguidos, que não atingindo o limiar conhecido de um fenômeno, que, sem o viés, estritamente, crítico do sistema, foi pela polícia (pois não se realizam nas ruas por onde ela passa), nem cognominado de "cifra negra", "cifra obscura" ou "zona obscura" chegam a nascer como fato estatístico, constituem a propriamente chamada criminalidade oculta, latente ou não-oficial.v'? (dark number) da criminal idade. Deve-se entender por "cifra negra" a 8SANTOS,Juarez Cirinodos.As Raizes do Crime: UmEstudosobreasEstruturase 11ANDRADE,VeraReginaPereirade.AIlusão de Segurança Jurídica: docontrole asInstituiçõesdaViolência,p. 157-158. daviolênciaàviolênciadocontrolepenal,p.261-262. 9SANTOS,JuarezCirinodos.ACriminologia Radical, p.56-57. 12HULSMAN,Louk,CELLIS,J. B.de.Penas Perdidas, p.65. 10KARAM,MariaLúcia.De Crimes, Penas eFantasias, p. 184. 13ANDRADE,ob.cit.,p.262 - 263. 20 21 Sendo assim, diante da chamada criminalidade oculta, que viceja, Outro dado revelado pelas pesquisas, sobre a "cifra negra", diz latentemente, no âmbito do sistema oficial, há de se reconhecer que a Baratta: criminalidade real é muito maior que aregistrada, oficialmente. "As pesquisas sobre acifra negra da criminalidade, ligadas a uma Não bastasse isso, sobreleve-se que a via peregrina do crime, de análise crítica do método e do valor das estatísticas criminais para o instância a instância (Polícia-Ministério Público-Justiça-Administra- conhecimento objetivo do desvio em uma dada sociedade, não se refe- ção penitenciária), isto é, o processo de criminalização é, em todas as rem, contudo, somente ao fenômeno da criminalidade do colarinho suas fases, criador de cifras negras e, por isso, redutor dos contin- branco, porém, mais em geral, à real freqüência e à distribuição do gentes de cnm..ma li1dade.14 comportamento desviante penalmente perseguível, em uma dada socie- Esses caminhos peregrinos do crime, através das instâncias for- dade. Essas pesquisas levaram a uma outra fundamental correção do mais do sistema, produzem o chamado "efeito-de-funil" ou a "mortali- conceito corrente de criminalidade: a criminalidade não é um compor- dade de casos criminais", operada ao longo do corredor da delinqüên- tamento de uma restrita minoria, como quer uma difundida concepção cia, isto é, no interior do sistema penal". 15 (e a ideologia da defesa social a ela vinculada), mas, ao contrário, o comportamento de largos estratos ou mesmo da maioria dos membros Adite-se, ainda, que as pesquisas sobre "as cifras obscuras" per- de nossa sociedade,"!" mitiriam a desconstrução do discurso falacioso da Criminologia positi- va, segundo o qual a "criminalidade" é o atributo de uma minoria de Vale explicitar-se que, a partir do momento em que os novos indivíduos socialmente perigosos que, seja devido a anomalias físicas -rirninólogos direcionaram as luzes de seu saber, iluminando essa, até (biopsicológicas) ou fatores ambientais e sociais, possuem uma maior ntão, "zona obscura" da criminalização, muitos conceitos do saber tendência adelinqüir. 16 trudicional ficaram desacreditados. Tanto assim que pontua Hulsman: Além disso, as estatísticas criminais, pertinentes à "cifra oculta" "De uma forma mais profunda, pode-se dizer que é a idéia e aos crimes do colarinho branco, revelam que a criminalização de- mesma, é aprópria noção ontológica de crime que fica abalada. Se uma pende, essencialmente, do status social, aque pertence o desviante. enorme quantidade de fatos teoricamente passíveis de serem enqua- E mais, segundo Baratta, drados na lei penal não são vistos ou não são avaliados como tal pelas supostas vítimas ou pelos agentes do sistema pessoalmente alertados "... sendo baseadas sobre a criminalidade identificada e perseguida, as por denúncias concretas, isto significa que os fatos chamados pela lei de estatísticas criminais, nas quais a criminalidade de colarinho branco é crimes (ou delitos) não são vividos como se tivessem um natureza a representada de modo enormemente inferior à sua calculável "cifra parte, como se fossem separáveis de outros acontecimentos. Pesquisas negra", distorceram até agora as teorias da criminalidade, sugerindo um sobre vitimização mostram isso claramente. quadro falso da distribuição da criminalidade nos grupos sociais. Daí Como achar normal um sistema que só intervém na vida social de deriva uma definição corrente da criminalidade como um fenômeno maneira marginal, estatisticamente tão desprezível? Todos os princípios concentrado, principalmente, nos estratos inferiores, e pouco represen- ou valores sobre os quais tal sistema se apoia (a igualdade de cidadãos, tada nos estratos superiores e, portanto, ligada a fatores pessoais e a segurança, o direito àjustiça, etc...) são radicalmente deturpados, na sociais correlacionados com apobreza ..."17 medida em que só se aplicam àquele número ínfimo de situações que são.os casos registrados. O enfoque tradicional se mostra, de alguma forma, às avessas. A cifra negra deixa de ser anomalia para se constituir 14ANDRADE,ob.cit.,p.263. na prova tangível do absurdo de um sistema por natureza estranho à 15ANDRADE,ob.cit.,mesmapágina. 16ANDRADE,ob.cit.,mesmapágina. 17BARATIA,Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdu- çãoàSociologiadoDireitoPenal,p. 102. 18BARATTA,ob.cit.,p. 103. 22 23 vida das pessoas. Os dados das ciências sociais conduzem a uma con- as ameaças, etc. fossem concretamente criminalizados, praticamente não testação fundamental do sistema existente.,,19 haveria habitante que não fosse, pordiversas vezes, criminalizado".22 aí, O engodo do sistema, ao vender a todos a ilusão de seguran- '1\ jurídica. Como visto, está programado o sistema punitivo para não 1.3 A SELETIVIDADE DA PENA npcrur concretamente. E, assim, é a sua montagem estrutural: não operar a legalidade Analisando-se mais uma função da pena de prisão, sob um enfo- processual. Em contraposição, fazer exercer seu poder, altamente, que sistêmico, - já que o sistema punitivo não constitui uma realidade elotivo e arbitrário, direcionado para as camadas sociais, economica- autônoma - conclui-se que ela serve para solidificar o processo sele- uicnrc mais débeis. tivo da criminalização. onvém acentuar, ainda, que, segundo Baratta, a criminalidade não É inquestionável que o sistema punitivo, visto pelo marco da Cri- mais uma qualidade ontológica de determinados comportamentos e de minologia crítica, é estruturado de modo a não ter a operacionalidade dl'lurminados indivíduos, mas se revela, principalmente, como um status prometida. ttrlbufdo a determinados indivíduos, mediante uma dupla seleção: em Até porque a realização da criminalização programada "provoca- prlruciro lugar, a seleção dos bens protegidos, penalmente, edos compor- ria um resultado que ninguém deseja, é irrecusável que o sistema tumcntos ofensivos destes bens, descritos nos tipos penais; em segundo penal se estrutura de forma que a legalidade processual não opere, ampIt·ando a seIett"vdid,a,2oe . IIIHllr,a seleção dos indivíduos estigmatizados, entre todos os indivíduos, que realizam infrações anormas penalmente sancionadas.r' Por sinal, Zaffaroni, também, realça a dissonância existente, entre o E prossegue Baratta, delineando a criminal idade como um 'bem discurso jurídico penal punitivo e sua real capacidade de criminalização ucgutivo', distribuído, desigualmente, conforme a hierarquia dos inte- programada. Para ele, a voz do discurso jurídico-oficial é tão absurda, IOIiIiCS, fixada no sistema sócio-econômico e conforme a desigualdade como a acumulação de material bélico nuclear, com todo o seu potencial nciul entre os indivíduos. destrutivo, apto a destruir, várias vezes, a vida do planeta. Mas, diferen- Assim sendo, não há dúvida de que, à luz dos postulados de Ba- temente, ocorre com o material bélico acumulado, porque, apesar de seu muu, o direito penal não protege todos e, apenas, os bens essenciais, poderio destruidor, há um discurso, justificador da acumulação - anular nos quais estão igualmente interessados todos os cidadãos, e, quando qualquer possibilidade programadora de seu uso. Tal não ocorre, todavia, com o sistema penal, já que este só pode ser visto como um autêntico 11\1110 as ofensas aos bens essenciais, o faz com intensidade desigual e du modo fragmentário; A lei penal não é igual para todos, o status de embuste: pretende utilizar de um poder que não possui, ocultando o crlrninoso é distribuído de modo desigual entre os indivíduos; O grau verdadeiro poder que exerce. Mesmo porque, se o sistema penal, efetiva- ofctlvo de tutela e a distribuição do status de criminoso é indepen- mente, realizasse acriminalização programada, provocaria uma catástrofe dente da danosidade social das ações e da gravidade das infrações à social. 21Noutropasso, oautor figura aseguinte hipótese: h-i, no sentido de que estas não constituem a variável principal da "se todos os furtos, todos os adultérios, todos os abortos, todas as icucão criminalizante e da sua intensidade.i" defraudações, todas as falsidades, todos os subornos, todas as lesões, todas \9 HULSMAN, Louk, CELLIS, J. B. de. PenasPerdidas,p. 65-66. 20AZEVÊDO, Jackson C. de. Reforma e "Contra'í-Reforma Penal no Brasil: Uma 11Ob. cit., p.26. ilusão...que sobrevive, p. 45. 'I3ARA TIA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Intro- 2\ ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das Penas Perdidas. A perda de legitimi- dução àSociologia do Direito Penal, p. 161. dade do sistema penal, p. 26-27. ·1"'I). cit., p. 161-162. 24 25 Sob o novo paradigma crítico da Criminologia, tem-se, primeira- lem, como autor, indivíduos pertencentes aos estratos sociais mais mente, que o direito penal seleciona os bens protegidos e os compor- débeis e marginalizados. tamentos lesivos, de forma fragmentária, privilegiando os interesses Na trilha do raciocínio de Baratta, é de se dizer que os meca- das elites e imunizando-as do processo criminalizador. A criminali- nismos da criminalização secundária acentuam, mais e mais, o caráter zação, destarte, opera, de modo desigual e seletivo, por parte do sis- letivo do direito penal. No pertinente à seleção dos indivíduos, o tema penal. Em contrapartida, o processo criminalizante direciona to- purudigma mais eficaz, para a sistematização dos dados da observa- ,no, da a sua tirania, principalmente, para as formas de desvio, típicas das é o que assume, como variável independente, a posição ocupada classes subalternas. Lógica, tão mais perversa e injusta, se se consi- pelos indivíduos na escala social. derar que, segundo Andrade, os pobres não têm uma maior tendência Na linha, pois, dos postulados de Baratta, as maiores chances de a delinqüir, mas sim a serem criminalizados. De modo que à minoria t'l'selecionado, para fazer parte da "população criminosa", aparecem, criminal da Criminologia positivista opõem-se a equação minoria du futo, concentradas, nos níveis mais baixos da escala social (subpro- criminal x minoria pobre regularmente criminalizada.P ktnriado e grupos marginais). Salientando-se, ainda, que a posição No que se refere à seletividade pela natureza do delito, sustenta precária, no mercado de trabalho (desocupação, subocupação, falta de Baratta, que isso ocorre: qunlificação profissional) e defeitos de socialização familiar e escolar, "...com aescolha dos tipos de comportamentos descritos na lei, e com a IJIIC são características dos indivíduos, pertencentes aos níveis mais hnlxos, é que levam o indivíduo a ser etiquetado com o status de cri- diversa intensidade da ameaça penal, que freqüentemente está em relação inversa com a danosidade social dos comportamentos, mas com uilnoso. Ao contrário do entendimento da criminologia positivista e de a própria formulação técnica dos tipos legais. Quando se dirigem a hnu parte da criminologia liberal contemporânea, as quais tinham tais comportamentos típicos dos indivíduos pertencentes às classes subalter- 1'II10l'ecSomo indicativos da criminalização. nas, e que contradizem às relações de produção e de distribuição capi- Noutro passo, Baratta traça um paralelo de como o cárcere e a talistas, eles formam uma rede muito fina, enquanto a rede é freqüente- rplicação seletiva das sanções penais, por serem superestruturas, mente muito larga quando os tipos legais têm por objeto acriminalidade rcprodutoras do sistema, contribuem para a manutenção da escala ver- econômica, e outras formas de criminalidade típicas dos indivíduos tlcnl da sociedade. De tal forma que, incidindo, negativamente, sobre- pertencentes às classes no poder.,,26 tudo, no status social dos indivíduos, pertencentes aos estratos sociais Basta se recorde dos delitos econômicos, ecológicos, ações da IIIl1isbaixos, esse processo seletivo impede sua ascensão social. criminalidade organizada, que, embora representem graves desvios e Enfim, veja-se, ainda, que a Criminologia crítica promove, tam- serem de maior potencial ofensivo, são subestimadas e, praticamente, 116m,a desconstrução do mito igualitário do direito penal, reputado o a conduta dos seus agentes não é criminalizada, na maioria das vezes. direito igual por excelência. Dir-se-ia que, ao contrário do que declara, Notadamente, por serem estes pertencentes às elites do sistema. Ao \) direito penal é tão mais desigual que os demais ramos do direito contrário, outros delitos, como os perpetrados contra o patrimônio, burguês, podendo ser mesmo considerado desigual por excelência.V embora de maior visibilidade, são mais punidos, severamente, porque Analisando-se, criticamente, o mito da suposta igualdade, ver-se- sem desenganos, que o direito penal c1assista anuncia promessas, I "vãs e platônicas", porque jamais cumpridas na realidade. Tanto assim que a igualdade formal, abstratamente, considerada, se contrapõe à 25ANDRADE, Vera Regina Pereirade.AIlusãodeSegurança Jurídica: docontrole daviolênciaàviolênciadocontrolepenal,p.265. 26BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Intro- duçãoàSociologia doDireitoPenal,p. 165. 'UARATTA, ob.cit.,p. 162-166. 26 27

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