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Rachel de Queiroz e os norte-americanos: para que serve um dirigível? PDF

14 Pages·2012·0.09 MB·Portuguese
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Rachel de Queiroz e os norte-americanos: para que serve um dirigível? Liane Schneider1 Introdução: sobrevoos iniciais Tratar do período da história do Brasil que coincide com o da Segunda Guerra Mundial, tendo como enfoque a análise literária, exige, sem dúvida, uma imersão nas relações entre os fatos (ditos) históricos e suas reconstruções literárias. Como bem apontou Aristóteles em sua consagrada Arte poética, o que diferencia o historiador e o poeta não é o fato de um escrever em prosa e o outro, em verso, e sim o fato de um escrever o que aconteceu (ou que supõe ter acontecido) e o outro, o que poderia ter acontecido (2005, p.43). A escrita literária parte, via de regra, de uma maior liberdade em relação ao fato, de uma estória desde o início imaginada, sempre reconstruída, sempre narrativizada. Ainda que mais recentemente tenha sido desconstruída a ilusão de objetividade e factualidade vinculadas à História, há ainda resquícios em vários setores culturais ecoando separações rígidas e hierárquicas entre relatos históricos e literários. No caso do conto “Tangerine-girl”, de Rachel de Queiroz, lemos o encontro/ desencontro cultural que ocorre entre as personagens do enredo – uma história que “poderia ter acontecido”. Rachel de Queiroz, cearense nascida em 1910, faleceu em 2003, com mais de noventa anos de idade e uma vasta produção literária. Sem dúvida, o local em que cresceu, e outros tantos por onde circulou, já que era uma mulher definitivamente com 1 Professora Associada da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Rachel de Queiroz e os norte-americanos: para que serve um dirigível? mobilidade geográfica, marcaram suas temáticas. Assim, em 1977, Rachel de Queiroz torna-se a primeira mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras. Especificamente no conto citado, o contexto das relações internacionais e nacionais que afetaram o território e a política brasileira ao longo da Segunda Guerra Mundial dá foco à trama, produzida no final da década de quarenta. Devemos ter em mente, ao lermos o conto, o fato de que, entre 1941 e 1946, a Segunda Guerra Mundial levou inúmeros militares norte-americanos para Natal, capital do Rio Grande do Norte, e seus arredores. Durante cinco anos, os militares ocuparam duas bases potiguaras: a Base Naval e a Parnamirim Field, a maior base da Força Aérea norte-americana em território estrangeiro. Certamente não é mera coincidência que Rachel de Queiroz, em 1948, publique seu conto que trata da presença de soldados estadunidenses no território brasileiro durante aquele período. É imprescindível aqui considerar-se também que, de 1937 a 1945, o Brasil era regido por uma ditadura – o Estado Novo, comandado por Getúlio Vargas. Inicialmente Vargas evitou assumir uma posição clara no que se referia à Segunda Guerra Mundial, já que, por um lado, sentia-se atraído pelas políticas totalitárias da Alemanha, Itália e Japão, e, por outro, mantinha laços econômicos cada vez mais fortes, principalmente em forma de empréstimos, com os Estados Unidos. Contudo, em 1942, buscando ampliar seu prestígio junto aos norte-americanos (entre outros motivos), Getúlio Vargas declarou guerra contra alemães e italianos, fazendo com que os pracinhas brasileiros lutassem lado a lado com os Aliados nos campos de batalha da Europa. Ainda que grande parte da colonização brasileira tenha sido de origem ibérica, mais precisamente, portuguesa, também não é novidade que o Brasil, bem como outros países da América Latina, passou, a partir de determinado momento histórico pós-independência, e principalmente a partir do século XX, a ser profundamente afetado no campo econômico e cultural pela América do Norte, como parte de um novo arranjo mundial marcadamente capitalista nas relações entre nações. Os Estados Unidos passaram a exercer uma tendência expansionista e imperialista, fazendo perceber seu papel no mundo e, principalmente, nas Américas, como líder e, por que não dizer, neocolonizador2. 2 Para uma discussão mais detalhada sobre a relação dos Estados Unidos com o contexto pós-colonial, consultar The Empire Writes Back, Ashcroft et al., principalmente em sua introdução. 116 Rachel de Queiroz e os norte-americanos: para que serve um dirigível? “Tangerine-girl” e o (des)encontro entre dois países em território neutro O contexto de “Tangerine-girl”, de Queiroz, trata exatamente desse momento de expansão norte-americana em novos territórios. Ficcionalmente a autora nos apresenta a comunicação estabelecida entre uma jovem brasileira, que reside em uma região periférica à capital potiguar3, e o condutor do dirigível da Marinha Americana que sobrevoa sua casa. O “encontro a distância” que vai sendo construído ao longo do texto entre estas partes nos faz relembrar uma relação invasora que se estabelecia em outras esferas nacionais ao longo do período – no espaço aéreo, na cultura, na língua, na economia, no imaginário de um povo até então bastante estimulado a suspiros nacionalistas, que passa a ser bombardeado por valores culturais importados. Inclusive, em tom bastante irônico, a voz narrativa nos explica que “amigo” era a “palavra de passe dos americanos entre nós” à época (p.162)4. Basta considerarmos que os europeus sempre se disseram “amigos” das culturas nativas das Américas para constatarmos uma relação estabelecida entre as velhas colonizações e as novas formas de intervenções assumidas pelos Estados Unidos no século XX. No conto em questão nos é apresentada uma jovem, cujo codinome passa a ser Tangerine-girl, denominação que lhe foi dada na base americana pelo fato de ela sempre surgir durante os voos do dirigível em meio ao laranjal, no quintal de sua casa; conhecemos a protagonista apenas através desse “batismo estrangeiro”, nunca nos sendo informado seu verdadeiro nome. Outra possibilidade para o codinome Tangerine- girl, menina-tangerina, poderia estar vinculada à cor de seus cabelos – ruivos, aliás, algo nem tão comum entre a população brasileira. Essa jovem sofre clara influência cultural e emocional que não vem apenas dos céus. Via sobrevoos do dirigível, mas também via o cinema e a música que invadem as salas do país, talvez as duas mais fortes influências ou interferências da América do Norte que marcavam a cultura local. Nesse espírito tão “americanizado” que permeia toda a perspectiva da narrativa, logo nas primeiras linhas do conto a menina-tangerina esclarece que as palavras “dirigível” e “zepelim”, vocábulos comuns no português da época, eram por demais “antiquadas”, não apropriadas aos 3 ‘Potiguar’, geralmente utilizado para caracterizar os nascidos no estado brasileiro do Rio Grande do Norte, está relacionado à tribo potiguar, que ocupou a região ao norte do rio Paraíba do Norte. 4 Citações do conto aparecerão apenas com o número de página entre parênteses, retiradas da edição mencionada na bibliografia. 117 Rachel de Queiroz e os norte-americanos: para que serve um dirigível? novos tempos, em que o termo em inglês blimp passa a soar melhor aos seus ouvidos. Blimp, segundo a jovem, era, sim, uma palavra “moderníssima!”, indicando respingos e suspiros estrangeiros no Brasil, que chegavam via os meios de comunicação. Através de contatos com filmes, músicas, programas de rádio, grupos de jovens criam um processo de identificação forte com a cultura estadunidense. Tradicionais formas de pertencimento e identificação nacionais passam a ser questionadas, já prenunciando mudanças socioculturais profundas que se tornariam mais corriqueiras a partir das décadas de cinquenta e sessenta. A Segunda Guerra, além de definir as posições políticas de praticamente todos os países do globo, colocou em contato povos que tinham um convívio muito restrito anteriormente. Na verdade, já se veem aí prenúncios dos contatos cada vez mais acentuados em nível global que se estabeleceriam a partir da segunda metade do século XX. Como aponta Giddens (1990, p.6), a partir da modernidade, principalmente na modernidade tardia, a interconexão que se estabeleceu entre diferentes áreas do globo causou ondas de transformação social que atingiram toda a superfície da terra. Assim, mesmo estando a nação brasileira mergulhada em um sistema marcadamente autoritário e nacionalista naquele período, a sociedade em geral, através dos meios de comunicação mais comuns à época – o rádio e o cinema –, passa a desejar ou espelhar-se, de fato, em outras referências culturais. Se o espaço aéreo brasileiro estava se abrindo à penetração estrangeira, mais precisamente à Marinha Americana, simbolicamente o imaginário do cidadão brasileiro também passa a ser exposto a outras formas de organização e de imaginação da vida social. Assim, a Tangerine-girl idealiza seu amado, o qual mal e mal visualiza em seus voos diários, pois, além da distância entre o dirigível e o solo, a jovem assume “sofrer de certo grau de miopia”. A idealização que a moça faz de seu marinheiro tem por base as referências cinematográficas dos filmes a que assiste: Emprestava ao seu marinheiro as figuras de todos os galãs que via na tela, e sucessivamente ele era Clark Gable, Robert Taylor ou Cary Grant. Ou era louro feito um mocinho que morria numa batalha naval do Pacífico, cujo nome a fita não dava; chegava até a ser, às vezes, careteiro e risonho como Red Skeleton. (p.161) Obviamente o ser desejado é aqui construído segundo os ídolos ligados ao cinema hollywoodiano. 118 Rachel de Queiroz e os norte-americanos: para que serve um dirigível? Teresa de Lauretis, teórica da área de gênero e do cinema, afirma, em “Tecnologias de gênero”, que o cinema também figura entre as tecnologias de gênero, já que nele as mulheres têm um lugar bem marcado, tanto na tela quanto como público (1994, p.222). As representações do sujeito feminino e o que se espera delas como espectadoras costumaram estar bem afinadas até recentemente. Lauretis ainda aponta que: A construção do gênero ocorre hoje através das várias tecnologias do gênero (cinema, por ex.) e discursos institucionais (por ex., a teoria) com poder de controlar o campo do significado e, assim, produzir, promover e implantar representações de gênero. (Lauretis, 1994, p.228) Além de ficar claro como foram implantados modelos do homem (e da mulher) moderno via filmes de Hollywood, no conto de Queiroz, o objeto metálico que invade o céu da cidade de Natal, o dirigível, também é visto pela jovem como algo a ser idolatrado. Pouco lhe importa a função da aeronave – o que a impressiona é sua forma, sua beleza estética, tão diferente de qualquer outro objeto anteriormente visto. Como lemos no texto, o dirigível “fascinava-a como prodígio mecânico que era, e principalmente ela o achava lindo, todo feito de prata, igual a uma joia (...)” (p. 159). Ela obviamente estabelece vínculos entre esse brilho, essa “joia”, e toda uma cultura que começa a influenciar sua vida. Fica aqui indicado que o grupo social em que se insere nossa protagonista, com seus símbolos e regras bastante restritivas, uma pequena comunidade do nordeste brasileiro, passa a ser marcado pela presença da diferença – nos céus e na terra surge um Outro, que provoca revisões dos traços culturais por parte dos que se relacionam com tais modernidades. De certa forma, pode-se suspeitar que aqui as subjetividades locais, através da Tangerine- girl, anunciam um processo de desestabilização, que se acentuaria muito mais no futuro, dando lugar a “rupturas e deslocamentos” (Cf. Hall, 2001, p.18) nas décadas seguintes. E de que forma tais desestabilizações afetam a noção de pertencimento nacional? De cultura nacional? O que o conto nos apresenta é uma jovem que se fascina com o diferente – tanto o objeto aéreo metálico moderníssimo, como todo um mundo linguístico-cultural com o qual passa a sonhar. O primeiro objeto que recebe como um presente dos céus, jogado por seu idealizado soldado, é uma caneca, em cujo fundo se lê: U.S. Navy. Ela adora a caneca – passa a usá-la para beber 119 Rachel de Queiroz e os norte-americanos: para que serve um dirigível? água, guardar lápis, e mais tarde, à medida que seu romantismo em relação ao seu marinheiro cresce, utiliza-a como vaso de flores. A caneca aparece no conto como uma primeira “dádiva”, uma “oferenda” dos céus. Outros objetos são jogados à jovem – uma revista Times, uma Life, um gorro, um lenço de seda. Poderíamos nos perguntar se o condutor do dirigível acreditava, de fato, que a jovem brasileira conseguiria ler seu idioma, as revistas de seu país, ou se esta seria simplesmente uma tentativa de aproximá-la culturalmente de seu povo, dando referências sobre o lugar de onde vinha. De qualquer forma, o efeito provavelmente esperado acontece – a jovem passa a revisitar seus livros de conversação em inglês da escola, preparando-se para o encontro com o distante navegador do zepelim. O que a jovem busca nessas tentativas, estudando o idioma estrangeiro ou prestando mais atenção às falas dos filmes americanos a que assiste, é transpor fronteiras culturais e linguísticas, tentando circular por línguas e culturas diversas no caminho da aproximação que planeja em relação ao seu amado. Conforme Kathryn Woodward destaca em seu artigo “Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual”, somos marcados por meio de símbolos, existindo uma associação entre a identidade da pessoa e as coisas que ela usa, já que os objetos seriam, potencialmente, significantes importantes na estruturação identitária do sujeito (2000, p.10). Obviamente o pertencimento a um grupo cultural também é, de fato, construído e imaginado através de símbolos e objetos, não sendo à toa o surgimento de bandeiras, de logotipos, de estilos de roupa atrelados a esse ou àquele grupo. A jovem protagonista do conto de Queiroz está sendo exposta aos objetos do seu sonhado namorado – revistas, caneca, lenço, o que a ajuda a construir uma imagem dele e de seu país mesmo a distância. Já que a representação é “um sistema linguístico e cultural: arbitrário, indeterminado e estreitamente ligado a relações de poder” (Cf. Silva, 2000, p. 91), podemos inferir aqui que quem está se representando mais explicitamente é o estrangeiro, lembrando que, ainda conforme Tomaz Silva, “quem tem o poder de representar tem o poder de definir e determinar a identidade” (p. 91). Assim, na relação a distância estabelecida entre a jovem e o aeronauta, ela, apesar de encontrar-se em seu país, em seu território, tem menos ferramentas a mão para a representação de sua identidade diante do dirigível e seu condutor. Poderíamos também considerar que ela, estando no solo, não teria como arremessar qualquer objeto para cima, ao menos não até aquelas alturas por onde o dirigível sobrevoava, restando-lhe fazer a apresentação de sua figura que, de forma bastante receptiva, coletava tudo que era jogado do alto. 120 Rachel de Queiroz e os norte-americanos: para que serve um dirigível? Pode-se perceber uma relação verticalmente estabelecida entre as partes – ela estando abaixo, na zona do não-racional, dos instintos, do feminino, do receptivo e passivo, enquanto o zepelim, máquina que pertence às esferas das novas tecnologias, com grande capacidade desbravadora, estaria, de fato, mais afinado com o fálico, com o móvel, com o que penetra o espaço do outro. Assim, o condutor do dirigível, abordando a jovem do alto, por cima, despejando objetos que possivelmente irão conquistá-la, reforçando os laços entre o que pertence à terra e o que pertence aos céus, tem o poder de dominar o campo da representação, influenciando mais do que sendo influenciado pelas visíveis diferenças entre as culturas envolvidas. Enfim, ele conduz a performance da representação que se materializa. Por outro lado, é exatamente através do olhar da jovem, bastante romântico no plano pessoal e bastante idealizador no que se refere à nação do outro, que se percebem movimentos de abertura em relação à diversidade cultural. De fato, a jovem, não apenas na nova forma de seu nome ou codinome, está cruzando fronteiras culturais já que, como aponta Tomaz Silva, “cruzar fronteiras significa não respeitar os sinais que demarcam – ‘artificialmente’ – os limites entre os territórios das diferentes identidades” (2000, p. 88). Também, se considerarmos o que propõe Glória Anzaldúa em Borderlands - La Frontera, perceberemos que o próprio contato entre mundos e sujeitos diferentes já implica, por si só, um cruzamento de fronteiras. Vale mencionar que, se há um deslocamento identitário nesse conto, este é aquele realizado pela jovem protagonista, que repensa sua identidade através do que apreende do Outro. Robert Young, em Desejo colonial, discorrendo sobre os vários usos da palavra “cultura”, acaba por concluir que “poderíamos dizer que, no coração da palavra cultura, está a colonização, ou seja, que a cultura envolve sempre uma forma de colonização, até mesmo em seu sentido convencional de cultivar o solo” (Young, 2005, p.37). Nossa tangerine-girl, como já apontado, recebe dos céus marcas culturais do aeronauta desconhecido. Dessa forma, de fato, no contexto em questão, a cultura que se apresenta, que se infiltra pelo espaço aéreo brasileiro, tem todas as marcas de processos de (neo)colonização, de “cultivo cultural”. De forma metafórica, o aeronauta está “plantando” sua cultura na terra que pertence à protagonista, exercendo um claro poder de influenciar, de cooptar, de seduzir e de, quem sabe, gerar novos frutos nesse solo estrangeiro. Percebemos nossa cultura através da diferença entre esta e outras, pela convivência com a pluralidade do termo, sendo exposto à diferença. Além disso, como destaca Robert Young em Desejo colonial, a cultura “nunca está só, antes, participa sempre de uma economia conflitiva, exprimindo 121 Rachel de Queiroz e os norte-americanos: para que serve um dirigível? as tensões entre igualdade e diferença, comparação e diferenciação, unidade e diversidade, coesão e multiplicidade, contenção e subversão” (p. 64). Conhecer o outro, a cultura do outro, é sempre um processo que desconstrói, questiona ou problematiza a própria identidade. Além disso, se considerarmos o período retratado por Queiroz, podemos certamente afirmar que nossa tangerine-girl não poderia fugir muito às referências culturais e comportamentais no que se referia ao gênero. No período em que a estória se passa, final dos anos quarenta, as distinções entre os lugares destinados ao masculino e feminino eram bastante rígidas. Havia também lugares claros para moças de família, casadoiras, e moças levianas, com quem poderiam ocorrer algumas liberdades sexuais. A família, a igreja, a escola, enfim, todas as instituições sociais reforçavam essas fronteiras, garantindo uma separação entre o mundo dos prazeres e o mundo dos compromissos. Como aponta Carla Bassanezi5, O código da moralidade era de domínio geral e praticamente todos se sentiam aptos a julgar os comportamentos de uma jovem: os pais, os vizinhos, os amigos e amigas (...). Os rapazes normalmente procuravam em suas aventuras prostitutas ou mulheres com quem não pensavam firmar compromisso (...). (2007, p. 613) Assim, quando é arremessado pelo condutor do dirigível um bilhete, solicitando que a menina-tangerina participe de um show dançante que ocorrerá na base militar às oito horas da noite, ela decide aceitar. Percebe-se, contudo, um titubear, por suspeitar estar adentrando um novo e misterioso território: Sentia-se tremendamente assustada e tímida ante aquela primeira aproximação com o seu aeronauta. (...) Juntos caminhariam até a base, depois dançariam um fox langoroso, ele lhe faria ao ouvido declarações de amor em inglês, encostando a face queimada de sol ao seu cabelo. Não pensou se o pessoal de casa lhe deixaria aceitar o convite. Tudo ia se passando como num sonho – e como num sonho se resolveria, sem lutas nem empecilhos. (p.163) 5 Apesar de o texto de Bassanezi estar voltado centralmente aos anos 50, os anos dourados, a moral no que se refere ao gênero pouco mudou do final de década de quarenta aos anos 50, a não ser que consideremos os impulsos do final da década, que já prenunciavam as rebeliões dos anos sessenta. 122 Rachel de Queiroz e os norte-americanos: para que serve um dirigível? Conforme também nos indica Carla Bassanezi, discorrendo sobre os hábitos da época, “o namoro era considerado uma etapa preparatória para o noivado e o casamento. Sendo assim, as moças não deveriam perder tempo ou arriscar-se com namoros que não tivessem chance de conduzi- las ao matrimônio” (2007, p.616). O óbvio nervosismo da protagonista, portanto, não se deve apenas à ansiedade do primeiro encontro – há muito mais em jogo, como vemos na passagem a seguir: Muito antes do escurecer, já estava penteada, vestida. Seu coração batia, batia inseguro, a cabeça doía um pouco, o rosto estava em brasa. Resolveu não mostrar o convite a ninguém; não iria ao show; não dançaria, conversaria um pouco com ele no portão. Ensaiava frases em inglês e preparava o ouvido escutando languidamente o programa de swings. (p.163) Somente quando finalmente o encontro está prestes a ocorrer, já que entendera que o aeronauta viria apanhá-la em seu portão, ela percebe que ali (..) não vinha apenas o seu marinheiro enamorado, mas um bando ruidoso deles. (...) Eles a avistaram, cercaram o portão – até parecia manobra militar -, tiraram os gorros e foram se apresentando numa algazarra jovial. (...) E, de repente, mal lhes foi ouvindo os nomes, correndo os olhos pelas caras imberbes, pelo sorriso esportivo e juvenil dos rapazes, fitando-os de um em um, procurando entre eles o seu príncipe sonhado – ela compreendeu tudo. Não existia o seu marinheiro apaixonado – nunca fora ele mais do que um mito do seu coração. Jamais houvera um único, jamais “ele” fora o mesmo. (p.163) Ao perceber que fora, durante meses, uma “namorada coletiva”, como se fosse uma “instituição” da base americana, a jovem sente-se inadequada em suas ações e sentimentos. Ela inclusive considera que os soldados “decerto pensavam que ela era também uma dessas pequenas que namoram os marinheiros de passagem”, consideração em que se percebem ressonâncias do discurso moral vigente à época, discutido por Bassanezi. Tangerine-girl tornara-se, de fato, o objeto do desejo daquele grupo de soldados que, alternadamente, dirigiam a máquina; ela era agora uma espécie de lenda da U.S. Navy. 123 Rachel de Queiroz e os norte-americanos: para que serve um dirigível? Há uma visível má compreensão entre as partes envolvidas no planejado encontro – a jovem e os condutores do dirigível. Enquanto eles parecem ter certo carinho e desejo pela jovem que lhes abana em meio ao laranjal a cada sobrevoo da aeronave, não conseguem compreender que, dentro do código moral local, ela não poderia jamais flertar com vários homens ao mesmo tempo, mesmo que a distância. Por outro lado, ela não compreende quão passageira seria a estada dos jovens condutores, tampouco compreende que ali, dentro do dirigível, sempre houve vários, que se alternavam na condução, e não apenas um. Como pensar em compromisso com um grupo de homens? Principalmente com um grupo de homens que está em território estrangeiro como parte de uma estratégia temporária de guerra? Além disso, como poderia ela sentir- se adequada em relação às rígidas regras de comportamento para jovens de família dos anos quarenta ao mesmo tempo em que sente um desejo nômade, que, dia após dia, migra de um para outro condutor? Na verdade, o encontro entre as partes resulta realmente num desencontro – linguístico, cultural, social. As trocas estabelecidas entre a jovem e os soldados só foram satisfatórias a distância, na relação verticalizada, na idealização do outro distanciado. Quando ocorre a aproximação, torna- se impossível a convivência entre essas partes. Ao final do conto, lemos que os soldados não perceberam nada especial na expressão da jovem após o encontro grupal, um deles inclusive ainda insiste em lhe oferecer o braço para acompanhá-la até a base; tampouco entenderam quando ela fugiu numa “carreira cega” e desabalada para dentro de casa, e, muito menos, por que nunca mais foi vista no laranjal. Enquanto eles, como representantes de seu país durante uma guerra que abalava grande parte do mundo, tinham o maior interesse em permanecerem unidos como grupo, como sujeitos dispostos inclusive a morrer pela nação coletiva que reinventavam (ou que era por eles imaginada, como sugere Benedict Anderson), nossa protagonista é interpelada à sedução pelo novo, pelo diverso. Na verdade, ela é praticamente convidada, via símbolos culturais e linguísticos, a fazer parte, temporariamente, da comunidade imaginada por aquele grupo de aeronautas. Contudo, o fascínio da jovem pelo dirigível, pelo aeronauta idealizado, indica provavelmente também seus desejos de libertar-se das amarras sociais locais, certamente vinculados a uma ideia de liberdade e mobilidade, aqui representadas pelos voos do dirigível. É importante destacar ainda que a voz narrativa ao longo do conto é bastante próxima à da menina-tangerina. Portanto, a história desse encontro cultural não é narrada de cima, a partir dos sobrevoos, mas sim, de baixo, a partir dos sentimentos e da perspectiva de quem, mesmo não 124

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