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Problema no paraí­so - Do fim da história ao fim do capitalismo PDF

207 Pages·2015·1.22 MB·Portuguese
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Slavoj Žižek Problema no paraíso Do fim da história ao fim do capitalismo Tradução: Carlos Alberto Medeiros Para Jela – um messias que chegou bem na hora Sumário Introdução: Divididos venceremos! 1. Diagnose: Hors d’oeuvre? Crise, que crise? Quebrar ovos sem fazer uma omelete Agora sabemos quem é John Galt! Estar à beira da dívida como modo de vida 2. Cardiognose: Du jambon cru? Liberdade nas nuvens Vampiros versus zumbis A ingenuidade cínica O reverso obscuro da Lei Superego, ou a proibição proibida 3. Prognose: Un faux-filet, peut-être? Mortes no Nilo Demandas… e mais O fascínio do sofrimento Raiva e depressão na aldeia global Mamihlapinatapei Lênin na Ucrânia 4. Epignose: J’ai hâte de vous servir! De volta à Economia do Presente A ferida do eurocentrismo Sol bemol não, lá Rumo a um novo Mestre “O direito de necessidade” Apêndice: Nota bene! Batman, Coringa, Bane Traços de utopia Violência, que violência? Valores familiares dos Weathermen Fora do malttukbakgi Notas Introdução Divididos venceremos! Ladrão de alcova, obra-prima de Ernst Lubitsch de 1932, é a história de Gaston e Lily, um feliz casal de ladrões que vive roubando os ricos, mas cuja vida se complica quando Gaston se apaixona por Mariette, uma de suas abonadas vítimas. A letra da canção que se ouve durante os créditos iniciais fornece uma definição do “problema”a a que o título se refere, da mesma forma que as imagens que a acompanham: primeiro vemos as palavras “trouble in”, em seguida, embaixo dessas palavras, uma ampla cama de casal, e então, sobre a cama, em letras grandes, “paradise”. Assim, esse “paraíso” é o das relações sexuais plenas: “That’s paradise/ while arms entwine and lips are kissing/ but if there’s something missing/ that signifies/ trouble in paradise.”b Falando de forma brutalmente direta, “problema no paraíso” é o nome dado por Lubitsch a il n’y a pas de rapport sexuel. Então, onde está o problema no paraíso de Ladrão de alcova? Há uma ambiguidade fundamental em relação a esse aspecto-chave. A primeira resposta que se impõe é: embora Gaston ame Lily tanto quanto ama Mariette, a verdadeira relação sexual “paradisíaca” seria com Mariette, motivo pelo qual é essa relação que deverá permanecer impossível e irrealizada. Essa irrealização confere ao final do filme um toque de melancolia: todo o riso e a confusão do último minuto, toda a festiva exibição da parceria entre Gaston e Lily, só fazem preencher o vazio dessa melancolia. Não está Lubitsch apontando nessa direção com a repetida cena da cama de casal vazia na casa de Mariette, uma cena que relembra a cama vazia durante os créditos do filme? Também há, contudo, a possibilidade de uma leitura exatamente oposta: Será que o paraíso não é na verdade o escandaloso caso de amor de Gaston e Lily, dois ladrões chiques que cuidam um do outro, enquanto o problema é a sublime e escultural Mariette? Será que Mariette, numa ironia fascinante, não é a cobra espreitando Gaston em seu Jardim do Éden encantadoramente pecaminoso? O paraíso, a boa vida, é a vida criminosa cheia de glamour e riscos, e a tentação maligna aparece sob a forma de madame Colet, cuja abastança sustenta a promessa de uma relaxada dolce vita sem a ousadia ou os subterfúgios do crime, apenas a monótona hipocrisia das classes respeitáveis.1 A beleza dessa leitura é que a inocência paradisíaca está situada na glamourosa e dinâmica vida do crime, de modo que o Jardim do Éden é equiparado ao submundo, enquanto o apelo da respeitabilidade associada à alta sociedade é equiparado à tentação da serpente. Entretanto, essa inversão paradoxal é explicada pelo sincero e rude acesso de raiva de Gaston, o primeiro e único no filme, representado sem elegância nem distanciamento irônico, depois que Mariette se recusa a chamar a polícia quando ele lhe conta que o presidente do conselho de sua empresa tem roubado milhões dela, sistematicamente, durante anos. A reprovação de Gaston deve-se ao fato de que, embora esteja pronta a chamar a polícia de imediato quando um ladrão comum como ele lhe rouba uma quantidade relativamente pequena de dinheiro ou bens, Mariette não hesita em desviar os olhos quando um membro de sua própria e respeitável classe rouba milhões. Não estaria Gaston parafraseando nisso a famosa afirmação de Brecht: “O que é roubar um banco comparado a fundar um?” O que é um roubo direto como os de Gaston e Lily comparado ao roubo de milhões sob o disfarce de obscuras operações financeiras? Há nisso, contudo, um outro aspecto a ser notado: seria a vida criminosa de Gaston e Lily realmente tão “cheia de glamour e riscos”? Debaixo do glamour superficial de seus roubos não constituiriam eles “um casal essencialmente burguês, profissionais diligentes com gostos caros – yuppies antes do tempo? Gaston e Mariette, por outro lado, fazem o par verdadeiramente romântico, os amantes aventureiros e audazes. Ao voltar para Lily e para a criminalidade, Gaston faz a coisa sensata – retornar a sua ‘estação’, por assim dizer, optando pela vida rotineira que conhece. E ele o faz lamentando-se profundamente, o que transparece em seu longo diálogo final com Mariette, cheio de angústia e intensidade exuberante de ambos os lados”.2 G.K. Chesterton observou como as histórias de detetive nos explicam de certa forma o fato de a civilização em si ser a mais sensacional das aventuras e a mais romântica das rebeliões … Quando, num romance policial, um detetive se vê sozinho e de alguma forma se mostra absurdamente destemido em meio a facas e punhos no território dos bandidos, isso certamente serve para nos fazer lembrar que o agente da justiça social é que é a figura original e poética, enquanto ladrões e bandidos são apenas velhos e plácidos conservadores cósmicos, felizes na imemorial respeitabilidade dos macacos e dos lobos. O romance policial … baseia-se no fato de que a moral é a mais obscura e audaciosa das conspirações.3 Não é essa também a melhor definição de Gaston e Lily? Esses dois ladrões não estariam vivendo em seu paraíso antes da queda na paixão ética? O que é fundamental aqui é o paralelo entre crime (roubo) e promiscuidade sexual: e se, em nosso mundo pós-moderno de transgressão autorizada, em que o compromisso marital é percebido como algo ridiculamente fora de época, os que se aferram a ele fossem os verdadeiros subversivos? E se, hoje em dia, o casamento convencional fosse “a mais obscura e audaciosa das transgressões”? Essa é justamente a premissa implícita de outro filme de Lubitsch, Sócios no amor: uma mulher leva uma vida calma e feliz com dois homens; numa experiência perigosa, tenta um casamento convencional, mas a iniciativa fracassa miseravelmente e ela retorna à segurança da vida com dois homens, de modo que o resultado final pode ser parafraseado a partir das palavras de Chesterton citadas acima: o casamento em si é a mais sensacional das aventuras e a mais romântica das rebeliões. Quando os amantes fazem seus votos matrimoniais, sozinhos e mostrando-se absurdamente destemidos em meio às múltiplas tentações dos prazeres promíscuos, isso certamente serve para nos fazer lembrar que o casamento é que é a figura original e poética, enquanto traidores e participantes de orgias são apenas velhos e plácidos conservadores cósmicos, felizes na imemorial respeitabilidade dos macacos e dos lobos promíscuos. Os votos matrimoniais … baseiam-se no fato de que o casamento é o mais obscuro e audacioso dos excessos sexuais. Uma ambiguidade homóloga está presente na escolha política básica com que hoje nos defrontamos. O conformismo cínico nos diz que os ideais emancipatórios de maior igualdade, democracia e solidariedade são enfadonhos e até perigosos, levando a uma sociedade sombria, exageradamente regulada, e que nosso único e verdadeiro paraíso é o “corrupto” universo capitalista existente. O engajamento emancipatório radical parte da premissa de que as dinâmicas capitalistas é que são enfadonhas, oferecendo mais do mesmo sob o disfarce da mudança constante, e que a luta por emancipação é ainda a mais perigosa de todas as aventuras. Há uma maravilhosa anedota francesa sobre um inglês esnobe em visita a Paris que acha que entende francês. Ele vai a um restaurante caro no Quartier Latin e, quando o garçom lhe pergunta “Hors d’oeuvre?”, sua resposta é: “Não, não estou desempregado, ganho o suficiente para poder comer aqui! Alguma sugestão de entrada?” O garçom sugere presunto cru: “Du jambon cru?” O esnobe responde: “Não, não acho que foi presunto que eu comi aqui da última vez. Mas tudo bem, pode servi-lo de novo. E o prato principal?” “Un faux-filet, peut-être?” O esnobe explode: “Traga-me o verdadeiro, já disse que tenho dinheiro suficiente! E depressa, por favor!” O garçom lhe assegura: “J’ai hâte de vous servir!”, ao que o esnobe rebate: “Por que odeia me servir? Eu lhe daria uma boa gorjeta!” Finalmente, o esnobe chega à conclusão de que seu conhecimento de francês é limitado; para salvar sua reputação e provar que é um homem de cultura, decide, ao ir embora no final da tarde, dar boa-noite ao garçom em latim, já que o restaurante fica no Quartier Latin, e o brinda com um “Nota bene!”. ESTE LIVRO AVANÇA em cinco fases, imitando as gafes do infeliz esnobe inglês. Começaremos pela diagnose das coordenadas básicas de nosso sistema capitalista global; prosseguiremos então para a cardiognose, o “conhecimento do coração” desse sistema, ou seja, a ideologia que nos faz aceitá-lo. Segue-se a prognose, a visão do futuro que nos aguarda se as coisas continuarem como estão, assim como as presumíveis aberturas ou saídas. Vamos concluir com a epignose (termo teológico que designa o conhecimento em que acreditamos, envolvendo-nos em nossos atos, subjetivamente assumidos), delineando formas subjetivas e organizacionais apropriadas à nova fase de nossa luta emancipatória. O apêndice vai examinar os impasses dessa luta em nossos dias usando como referência o último filme do Batman. O “paraíso” do título deste livro faz referência ao paraíso do Fim da História (tal como elaborado por Francis Fukuyama: o capitalismo liberal-democrata como a melhor ordem social possível enfim encontrada), e o “problema”, evidentemente, é a crise permanente que levou o próprio Fukuyama a abandonar sua ideia de Fim da História. Minha premissa é que aquilo que Alain Badiou chama de “hipótese comunista” é o único arcabouço adequado ao diagnóstico da crise. A inspiração veio da série de palestras que dei em Seul em outubro de 2013 como o Eminent Scholar na Universidade Kyung Hee. Ao aceitar o convite, minha primeira reação foi: não é uma loucura total falar sobre a Ideia de Comunismo na Coreia do Sul? A dividida Coreia não é o exemplo mais claro imaginável, quase clínico, de onde estamos hoje após o fim da Guerra Fria? De um lado, a Coreia do Norte dá corpo ao beco sem saída do projeto comunista do século XX; do outro, a Coreia do Sul vê-se em meio a um desenvolvimento capitalista explosivo, alcançando novos níveis de prosperidade e modernização tecnológica, com a Samsung solapando a primazia da própria Apple. Nesse sentido, a Coreia do Sul não seria a prova suprema de como é falso falar de uma crise global? O sofrimento do povo coreano no século XX foi imenso. Não admira que – assim me contaram – mesmo hoje seja tabu na Coreia falar das atrocidades cometidas pelos japoneses durante a ocupação na Segunda Guerra Mundial. Eles temem que falar sobre isso possa perturbar a paz de espírito dos mais velhos: a destruição foi tão ampla que os coreanos fazem o possível para esquecer essa época e seguir em frente. Essa atitude, portanto, envolve uma inversão profundamente nietzschiana da fórmula padrão “perdoamos, mas não esquecemos”. Com respeito às atrocidades perpetradas pelos japoneses, os coreanos têm um ditado: esquecer, mas jamais perdoar. E estão certos: há uma coisa muito hipócrita na fórmula “perdoar, mas não esquecer”, que é duplamente manipulativa, já que envolve uma chantagem do superego: “Eu o perdoo, mas, não esquecendo seu erro, vou garantir que você sempre se sinta culpado por ele.” Logo, como os coreanos suportam esse sofrimento? Gostaria de começar com o relato de Franco Berardi, teórico social italiano, de sua recente viagem a Seul: No final do século XX – após décadas de guerra, humilhação, fome e bombardeios terríveis –, a paisagem física e antropológica deste país havia sido reduzida a uma espécie de abstração devastada. Naquele ponto, a vida humana e a cidade se entregaram docilmente à mão transformadora da forma mais elevada de niilismo contemporâneo. A Coreia é o marco zero do planeta, um modelo para o futuro do mundo … Depois da colonização e das guerras, da ditadura e da fome, a mente sul-coreana, liberta da carga do corpo natural, entrou tranquilamente na esfera digital com um nível de resistência cultural mais baixo do que praticamente qualquer outra população do mundo. Essa é, em minha opinião, a principal fonte do incrível desempenho econômico que esse país tem tido no período da revolução eletrônica. No espaço cultural esvaziado, a experiência coreana é marcada por um grau extremo de individualização e ao mesmo tempo se orienta para o cabeamento final da mente coletiva. Essas mônadas solitárias caminham pelo espaço urbano em suave e contínua interação com fotos, tuítes, jogos surgindo de suas telinhas, perfeitamente isoladas e conectadas à serena interface do fluxo … A Coreia do Sul tem a mais alta taxa de suicídios do mundo … O suicídio é causa de morte mais comum de pessoas abaixo de quarenta anos neste país … Curiosamente, a taxa de suicídios na Coreia do Sul dobrou na última década … No espaço de duas gerações, sua condição certamente melhorou do ponto de vista de renda, nutrição, liberdade e possibilidade de viajar para o exterior. Mas o preço dessa melhoria tem sido a desertificação da vida cotidiana, a hiperaceleração dos ritmos, a individualização extrema das biografias e a precariedade do trabalho, que também significa uma competição agressiva … O capitalismo high-tech naturalmente implica uma produtividade sempre crescente e uma intensificação incessante dos ritmos de trabalho, mas também é a condição que tornou possível uma melhoria impressionante dos padrões de vida, nutrição e consumo … Mas a alienação atual é um tipo diferente de inferno. A intensificação do ritmo de trabalho, a desertificação da paisagem e a virtualização da vida emocional estão convergindo para produzir um nível de solidão e desespero que é difícil de recusar e combater conscientemente … Isolamento, competição, senso de insignificância, compulsão e fracasso: a cada ano, 28 pessoas em cada 100 mil têm sucesso em sua tentativa de escapar, e um número muito maior o tenta sem êxito. Como o suicídio pode ser considerado a marca decisiva da mutação antropológica ligada à transformação e à precarização digitais, não surpreende que a Coreia do Sul esteja em primeiro lugar no mundo no que se refere à taxa de suicídios.4 O retrato que Berardi faz da Coreia do Sul parece seguir o incomparável modelo dessas representações nas últimas décadas, o famoso retrato de Baudrillard de Los Angeles (em América) como um inferno hiper-real. É fácil demais rejeitar esse tipo de retrato como um exercício pretensioso pseudointelectual de pós-modernistas europeus que usam uma terra ou cidade estrangeira como tela em que projetam suas mórbidas distopias. A despeito de todos os exageros, há um grão de verdade neles; ou mais precisamente, parafraseando a conhecida frase de Adorno sobre a psicanálise, no retrato que Baudrillard faz de Los Angeles nada é verdade, exceto os exageros. E o mesmo vale para as impressões de Berardi sobre Seul: o que elas fornecem é a imagem de um lugar privado de sua história, um lugar sem mundo. Badiou refletiu que

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