Arquivos do Museu Nacional, Rio de Janeiro, v.63, n.3, p.595-598, jul./set.2005 ISSN 0365-4508 PRIMEIRO REGISTRO PLEISTOCÊNICO DE PTERONURA BRASILIENSIS (GMELIN, 1788) (CARNÍVORA, MUSTELIDAE) 1 (Com 3 figuras) CÁSTOR CARTELLE 2 SUZANA HIROOKA 3 RESUMO: É feita sucinta caracterização de material de Pteronura brasíiiensis que é o primeiro registro da espécie em sedimentos pleistocênicos. O achado ocorreu na Gruta do Curupira, Município de Rosário do Oeste, no Estado do Mato Grosso. Com esta, são cinco as espécies de mustelídeos brasileiros com registro fóssil do Pleistoceno final. Palavras chave: Mustelídeos. Pteronura brasüiensis. Pleistoceno final. Mato Grosso. ABSTRACT: The first record of Pteronura brasüiensis (Gmelin, 1788) (Carnívora, Mustelidae) from the Pleistocene. A brief description of the first Pteronura brasüiensis material found in the Pleistocene sediments was undertaken. The material was found in Curupira cave in the Municipality of Rosário do Oeste, State of Mato Grosso, Brazil. There are now five species of Brazilian mustelids with a fóssil occurrence registered in the late Pleistocene. Key words: Mustelids. Pteronura brasüiensis. Late Pleistocene. Mato Grosso. INTRODUÇÃO brasüiensis Linnaeus” como sendo sinônimo de “Pteronura brasüiensis Linnaeus”. WINGE (1895- Os achados pleistocênicos de mustelídeos que 6) explicitou que dos Carnivora recentes que Lund ocorreram no Brasil pertencem às espécies Eira registrara para Lagoa Santa havia o registro fóssil barbara (Linnaeus, 1758), Conepatus semistriatus de todos, exceto para Procyon cancrivorus (Cuvier, (Boddaert, 1784), Galittis vittata (Schereber, 1776) 1798) e “Lutra brasüiensis Zimmermann”. Também e Lontra longicaadis (Olfers, 1818). Todas têm observou que a denominação usada por Lund ocorrência em Minas Gerais e as duas primeiras, “Lutra brasüiensis Linnaeus” correspondia a “Lutra também na Bahia (WINGE, 1895-6; CARTELLE, platensis”, a lontra brasileira, enquanto que a 1992, 1995). denominação “Lutra brasüiensis Zimmermann” Especial referência merece Pteronura brasüiensis refere-se a P. brasüiensis, a ariranha. Fez notar, (Gmelin, 1788). Em 1841, Peter Lund realizou ainda, que desta espécie Lund só conhecera uma descoberta de grande importância na Lapa do pele que remeteu para a Dinamarca uma vez que Sumidouro, região de Lagoa Santa (MG): fósseis de P. brasüiensis “nenhum osso foi achado na terra” associados de espécies recentes, extintas e de por Lund. WINGE (1895-6), que estudou ampla e humanos foram coletados por ele na mesma minuciosamente o material que Lund coletara em camada sedimentar. Lagoa Santa (MG), nada referiu a ariranha. O LUND (1842) descreveu esses achados e neles registro da espécie como fóssil do Pleistoceno final identificou peças semelhantes às da espécie vivente da região de Lagoa Santa que alguns autores da região u Lutra brasüiensis Linnaeus”. A espécie fizeram (MARSHALL etal, 1984), não ocorreu. foi incluída na listagem de fósseis encontrados por ele na região de Lagoa Santa e que colocava em PROCEDÊNCIA cada trabalho que publicava. Esses fósseis foram registrados no catálogo manuscrito de Lund como Poucos são os registros de mamíferos pleistocênicos sendo de “Lutra aff. Brasüiensis”. para o Estado do Mato Grosso. LEME (1911) referiu Paula Couto (in LUND, 1950) identificou “Lutra “ossos de mamífero” encontrados no Município de 1 Submetido em 16 de abril de 2004. Aceito em 22 de julho de 2005. 2 Museu da Pontifícia Universidade Católica - MG. Av. Dom José Gaspar, 500, 30535-610, Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: [email protected]. 3 Instituto ECOSS. Av. Beira Rio, 2000, 78070-200, Brasil. E-mail: [email protected]. 596 C.CARTELLE & S.HIROOKA Cáceres. OLIVEIRA (1915) registrou o achado de crescente. Para- e metacones são também cortantes ossadas fósseis de animais de grande tamanho na e alinham-se em planos paralelos ao mediano do localidade de Flechas. ARRUDA (1938) assinalou dente. Entre estas cúspides, as duas vestibulares a existência de fósseis às margens de rio, também e a lingual, situa-se amplo vale onde se encaixava em Cáceres. VLALOU et al. (1995) identificaram uns o talonido do quarto pré-molar inferior. Medidas poucos restos de preguiça terrícola como do dente são fornecidas na tabela 1 (C). Glossotherium aff. Glossotherium lettsomi Owen No úmero esquerdo (Fig. 3) estão destruídas porções coletados no sítio arqueológico de Santa Elina, dos tubérculos maior e menor. Longitudinalmente Município de Rosário do Oeste. é convexo cranialmente. O forame supracondiloideo Os fósseis aqui estudados foram encontrados na Gruta do Curupira, localizada no Município de Rosário do Oeste, associados a restos de espécies atuais e extintas (Fig.l). Dentre estas foram identificadas Eremotherium laurillardi (Lund), Glossotherium sp., Catonyx cuvieri (Lund), Pampatherium humboldti (Lund) e Propraopus punctatus (Lund), espécies também registradas em outras jazidas brasileiras do final do Pleistoceno. A coleta dos fósseis, realizada por um de nós (SH), foi feita com grande rigor estratigráfico o que permite a segura afirmação da sincronia do material recolhido. SISTEMÁTICA Ordem Camivora Bowdich, 1821 Família Mustelidae Fisher, 1817 Subfamília Lutrinae Bonaparte, 1838 Gênero Pteronura Gray, 1837 Pteronura brasiliensis (Gmelin, 1788) MATERIAL E DESCRIÇÃO Dois caninos superiores (CC-863 esquerdo e CC- 718 direito). M1 direito (CC 602). Úmero esquerdo (CC-151). Usamos para comparação os espécimes atuais MCN-M 25 e MCN-M 47, ambos da coleção osteológica do Museu de Ciências Naturais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. O material fóssil encontra-se depositado na Universidade Federal do Mato Grosso. Os caninos superiores têm possante raiz e na base LEGENDA da coroa, cíngulo raso percebendo-se nas faces CAVrHMA 00 Ci/NUiPlJM * mesial e distai da mesma finas cristas longitudinais. CAwr *<. CJBAPC Medidas do dente são fornecidas na tabela 1 (B). pnvw*pn O primeiro molar superior direito (Fig.2) tem três raízes sendo a lingual mais robusta do que as vestibulares. Como em outras espécies da família, este dente tem maior largura (vestíbulo-lingual) do que comprimento (mesio-distal) assim como cíngulo o .7__«• _ bem marcado no perímetro basal da coroa. Na face oclusal, o protocone é o acidente de menor projeção Fig.l- Localização da Gruta do Curupira, Município de e consiste em crista afilada com formato de Rosário do Oeste, Mato Grosso. Arq. Mus. Nac., Rio de Janeiro, v.63, n.3, p.595-598, jul./set.2005 PRIMEIRO REGISTRO PLEISTOCÊNICO DE PTERONURA BRASILIENSIS (GMELIN, 1788) (CARNÍVORA, MUSTELIDAE) 597 tem formato oval com seis milímetros de diâmetro espécie com excepcional adaptação à vida aqüícola. maior. Tanto as cristas deltoide quanto a supinatória CARTELLE (1999) defende a hipótese de que a maioria são robustas. Morfologicamente não há diferenças dos fósseis intertropicais brasileiros da fauna entre a peça fóssil e as de animais recentes com as pleistocênica, coletados em ambiente de caverna, quais a comparamos. Medidas da peça são foram carreados para lá por enchentes esporádicas fornecidas na tabela 1 (A). do final desse período temporal. As inundações provocadas pela pluviosidade tiveram graves conseqüências para mamíferos não adaptados à água. DISCUSSÃO Arrastados pelas correntezas, foram transportados Como anteriormente justificamos, é este o primeiro para o interior de grutas por rios que as cruzavam, lá registro de P. brasüiensis. A raridade dos achados sendo depositados. As ariranhas, nessas pleistocênicos da espécie poderia atribuir-se a duas circunstâncias, estavam capacitadas para minimizar possibilidades: a de ocorrer populações com reduzido os efeitos das enchentes que levaram outras espécies número de indivíduos; ou, mais plausível, a de ser não tão bem adaptadas à vida aqüícola à morte. TABELA 1. Medidas comparativas. A) Úmero esquerdo CC-151 MCN-M25 Comprimento máximo 104 109 Largura transversa no meio do corpo 10 11 Largura máxima transversa proximal 28* 35 Largura transversa máxima distai 35 38 Espessura da tróclea 16 17 Comprimento transverso da tróclea 20 21 B) Canino superior direito CC-938 MCN- M25 Comprimento mesio-distal na base da coroa 9.0 8,5 Comprimento linguo-vestibular na base da coroa 7,6 6,8 C) M1 direito CC-602 MCN- M25 Comprimento mesio-distal (face vest.) 12,6 11,0 Comprimento mesio-distal (face ling.) 10.0 9.0 Largura linguo-vestibular (face mesial) 18.0 17.0 Obs.: Medidas em mm; (*) calculada. Fig.2- Primeiro molar superior direito de Pteronura brasüiensis. Vista oclusal. (A) espécime atual MCN-M 25; (B) espécime fóssil CC 602. Na escala, cada traço equivale a lcm. Arq. Mus. Nac., Rio de Janeiro, v.63, n.3, p.595-598, jul./set.2005 598 C.CARTELLE & S.HIROOKA Fig.3- Úmero esquerdo de Pteronura brasiliensis. Vista cranial. (A) espécime atual MCN-M 25; (B) espécime fóssil CC 151. Na escala, cada traço equivale a lcm. REFERÊNCIAS Mathematiske Aflandlinger, Kjõbenhavn, 9:137-208. LUND, P.W., 1950. Memórias sobre a paleontologia ARRUDA, G.P., 1938. Um trecho do Oeste brasileiro: brasileira revistas e comentadas por Carlos de São Luiz de Cáceres, Matto Grosso. S/D. Rio de Paula Couto. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Janeiro. 222p. Livro. 59lp. CARTELLE C., 1992. Os Edentata e megamamíferos MARSHALL, L.G.; BERTA, A.; HOFFSTETTER, R.; herbívoros da Toca dos Ossos (Ourolândia. BA), PASCUAL, R.; REIG, O.A.; BOMBIM, M. & MONES, A., Belo Horizonte. 700p. Tese de Doutorado. Curso de 1984. Mammals and stratigraphy: geocronology of the Pós-Graduação em Morfologia. Universidade Federal continental mammal-bearing Quaternary of South de Minas Gerais. America. Paleovertebrata. Memoire extraordinaire, CARTELLE, C., 1995. A fauna local de mamíferos da Montpellier. p.1-76. Toca da Boa Vista (Campo Formoso, BA). Belo OLIVEIRA, E.P., 1915. Geologia: Reconhecimento Horizonte. 131p. Tese apresentada para o Concurso Geológico do Noroeste de Matto Grosso. Expedição de Professor Titular. Instituto de Geociências. scientífica Roosevelt-Rondon. Rio de Janeiro. Universidade Federal de Minas Gerais. Comissão de linhas telegráphicas estratégicas de Matto CARTELLE, C., 1999. Pleistocene mammals of the Grosso ao Amazonas. Annexo 1, Publicação 50. 82p. Cerrado and Caatinga of Brazil. In: EISENBERG J. VIALOU, A.; AUBRY T.; BENABDELHARDI, M.; & REFFORD K.H. (Ed.) Mammals of the CARTELLE, C.; FIGUIY, L.; FONTUGNE, M.; SOLARI, Neotropics. v.3. Chicago: The University of Chicago M. & VIALOU, D., 1995. Decouverte de Mylodontinae Press. p.27-46. dans um habitat préhistorique daté du Mato Grosso LEME, A.B.P., 1911. Mineralogia e Geologia. Rio de (Brésil): Tabri rupestre de Santa Elina. Comptes Janeiro: Papelaria L. Macedo. Comissão de linhas Rendues de la Académie des Sciences, Paris, telegráphicas estratégicas de Matto Grosso e 320:655-661. Amazonas. Anexo 5, publicação 18. WINGE, H., 1895-6. Jorfundne of nulevende Aber LUND, P.W., 1842. Blik paa Brasiliens Dyreverden F. (Primates) Rovdyr (Carnívora) fra Lagoa Santa, Sidste Jordomvaeltning. Det Kongelige Danske Minas Geraes, Brasilien. E Museo Lundii, Videnskabernes Selskbas Naturvidenskabelige og Kjõbenhavn, 2(2): 1-187. Arq. Mus. Nac., Rio de Janeiro, v.63, n.3, p.595-598, jul./set.2005