Dossiê: Neoateísmo: Questões e Desafios – Artigo original DOI – 10.5752/P.2175-5841.2010v8n18p104 Licença Creative Commons Attribution-NonCommercial-NoDerivs 3.0 Unported Pragmatismo Americano: O Direito de Crer diante da Morte de Deus American Pragmatism: The Right to Believe ahead the Death of Good * Rafael da Silva Mattos Resumo Pragmatismo é um movimento filosófico que inclui aqueles que afirmam que uma proposição é verdadeira se funciona de forma satisfatória, que o significado de uma proposição pode ser encontrado nas conseqüências práticas de aceitá-la, e que as idéias pouco práticas devem ser rejeitadas. O Pragmatismo começou no final do século XIX, com Charles Sanders Peirce (Como tornar nossas idéias mais claras, Fixação da Crença) e foi desenvolvido na obra de William James (Peirce e James eram membros do Clube Metafísico). O pragmatismo tem uma idéia principal: a verdade é mutável. Este artigo é uma discussão teórico-conceitual sobre o direito de crer, a partir da filosofia pragmatista de William James. O artigo inicia com uma breve discussão sobre a religião, em seguida, discute a posição de Nietzsche e, por fim, discute-se a perspectiva da filosofia americana pragmatista criada por Charles Peirce e William James. Palavras-chave: Religião; Pragmatismo; Filosofia; Morte de Deus Abstract Pragmatism is a philosophical movement that includes those who claim that a proposition is true if it works satisfactorily, and that the meaning of a proposition is to be found in the practical consequences of accepting it, and that unpractical ideas are to be rejected. The Pragmatism began in the late nineteenth century with Charles Sanders Peirce (How to Make Our Ideas Clear; The Fixation of Belief) and it was developed further in the works of William James (Peirce and James were members of The Metaphysical Club). The Pragmatism has a major idea: truth is mutable. This article is a theoretical-conceptual discussion about the right to believe, from the perspective of pragmatist philosophy of William James. The article begins with a brief discussion about religion, and then discusses the position of Nietzsche and, finally, the perspective of American philosophy created by the pragmatist Charles Peirce and William James is discussed. Keywords: Religion; Pragmatism; Philosophy; Death of God Artigo recebido em 15 de janeiro de 2010 e aprovado em 31 de agosto de 2010. Financiamento: CNPq. * Mestre em Saúde Coletiva (Ciências Humanas e Saúde) , graduando em Filosofia e doutorando em Saúde Coletiva, Instituto de Medicina Social (UERJ), bolsista do CNPq. País de origem: Brasil. E-mail: [email protected] Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p.104-126, jul./set. 2010 - ISSN: 2175-5841 104 Rafael da Silva Mattos Introdução O objetivo deste trabalho é fazer uma breve discussão sobre o pragmatismo de William James e a religião como discurso de verdade e fonte de sentidos para o ser humano, enquanto construção simbólica do real que tem consequências práticas individuais e coletivas para a vida dos sujeitos. Apresentaremos uma discussão breve sobre a religião na perspectiva de Marx e na perspectiva de Nietzsche. Ambos têm uma visão pessimista da religião judaico-cristã: enquanto Marx considera a religião como ópio do povo, na medida em que oculta relações estruturais de exploração na sociedade capitalista moderna, Nietzsche critica os valores antivitalistas da sociedade ocidental fundamentados no platonismo/cristianismo. Não temos pretensão alguma de fazer uma discussão filosófica para aproximar ou afastar o pragmatismo americano de Nietzsche, Marx ou outro autor, mas sim de apresentar de forma sucinta abordagens distintas sobre o direito de crer. Sabe-se que o ser humano, ao longo da história, sempre buscou respostas numa força superior, externa, transcendente. Ele concebe Deus (ou deuses) como aquele capaz de orientar seu caminho, de conduzi-lo a uma nova possibilidade de vida. A ajuda de um ser superior e divino possibilita que muitas pessoas tenham esperanças diante de seus problemas cotidianos. Os indivíduos procuram uma forma de dialogar com o divino, pois o pavor diante de uma situação que não conseguem explicar, pelo pensamento lógico- dedutivo-racional, acaba por remetê-los ao diálogo com uma dimensão que seja superior: o plano do sagrado (TAROT, 2008). Em geral, podemos afirmar que toda religião implica a referência necessária a uma potência sobrenatural e a existência de práticas específicas que permitem entrar em contato com essa potência. A transcendência é uma característica das religiões, embora algumas contenham princípios imanentes (HERVIEU-LÉGER, 2003). Conceitos importantes que surgem nos estudos sobre a religião são os de “crença” e “fé”. Não é nosso objetivo neste artigo discutir ou estabelecer diferenças precisas entre esses dois termos. Consideraremos o que Locke (1979, 1958) entende por fé, isto é, o assentimento em proposições, não obtido por deduções da razão ou do entendimento, mas com base no crédito e autoridade do proponente, como provenientes de Deus, através de algum modo extraordinário de comunicação. A crença, por sua vez, pode ser compreendida 105 Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p.104-126, jul./set. 2010 - ISSN: 2175-5841 Dossiê - Neoateísmo: Questões e Desafios – Artigo: Pragmatismo americano: o direito de crer diante da morte de Deus como um pensamento válido, seja ele verdadeiro ou falso. A crença pode ou não estar relacionada com a fé. De qualquer forma, deixaremos essa discussão para outra ocasião. Eliade (1987) afirma que o homem, das primeiras sociedades às mais atuais, vive num mundo sacralizado. O conjunto de comportamentos que ele produz culturalmente em torno das práticas religiosas e de suas relações com o sagrado e o profano o constituem como homo religiosus. Durkheim (2008), ao fazer uma análise detalhada do sistema de clãs e do totemismo nas tribos australianas, ressalta que todas as sociedades nasceram da religião, pois a vida religiosa é uma das primeiras expressões da coletividade. Se a religião engendrou tudo o que há de essencial na sociedade, é porque a ideia de sociedade é decorrente da religiosidade. Não existe sociedade que não tenha a necessidade de manter e revigorar, em intervalos regulares, os sentimentos e ideias coletivas que garantem sua unidade e coesão. Essa coesão é obtida por meio de reuniões, assembleias, congregações, cultos em que os indivíduos, aproximando-se uns dos outros, reafirmam seus sentimentos coletivos; ou seja, rituais que, pelos resultados que produzem e pelos procedimentos empregados, não diferem em natureza das cerimônias religiosas. Daí a constituição de todo um campo da sociologia da religião (BOBINEAU; TANK-STORPER, 2007; BOUTRY, 2006). Da mesma forma, a religião nunca foi descartada pela filosofia enquanto questão. Platão, Plotino, Agostinho, Anselmo, Tomás de Aquino, Descartes, Kant, Hegel, Feuerbach, Marx, Nietzsche, Freud, Kierkegaard, Sartre e muitos outros, em algum momento, tocaram nos temas “Deus” ou “religião”. Os argumentos que tentam provar a existência de Deus também são bem conhecidos pela filosofia: o argumento ontológico, o cosmológico e o teleológico são os mais citados. Santo Anselmo, monge italiano do século XI, é o principal expoente do argumento ontológico, no qual a existência de Deus é deduzida a partir das premissas conhecidas a priori. Os argumentos cosmológico e teleológico são, ao contrário, baseados em premissas empíricas, contingentes. No argumento cosmológico, predomina o pensamento de São Tomás de Aquino (2001), italiano do século XIII, grande autor da Suma Teológica e famoso pelas cinco vias demonstrativas racionais da existência de Deus (Via do Movimento, Via da Causa Eficiente, Via do Possível e Necessário, Via dos Graus, Via do Governo das Coisas). Ao dar unidade sistemática à racionalidade e à fé, Tomás de Aquino Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p.104-126, jul./set. 2010 - ISSN: 2175-5841 1 0 6 Rafael da Silva Mattos se tornou a referência da teologia cristã (LIBÉRA, 2009). Isso sem levar em conta Descartes (2005), com suas provas a priori e a posteriori da existência de Deus. A quarta certeza encontrada por Descartes nas Meditações é exatamente a da existência de Deus – ademais, um Deus veraz que jamais pode enganar-nos e que nos criou com as melhores faculdades possíveis. Por fim, o argumento teleológico, que ganhou força principalmente com William Paley, no século XVIII, considera que, sendo o mundo tão complexo e variado, há que se admitir a criação divina para explicá-lo. Por outro lado, há um conjunto de filósofos que também tentaram pensar problemáticas relacionadas a Deus ou à religião, sem fazer necessariamente a pergunta sobre a existência de Deus. Feuerbach (2007), por exemplo, tentou reduzir a teologia à antropologia (“a antropologia é o mistério da teologia”). Para ele, o ser humano historicamente projetou sua essência para fora de si e fez dela um objeto transcendente. A religião, principalmente o cristianismo, seria uma alienação (separação) do ser humano de si mesmo. Através da religião, o homem criou deuses separados e independentes da essência humana. Rodrigues (2009) faz uma discussão interessante sobre a Essência do Cristianismo, principal obra do jovem hegeliano em seu recente texto. A filosofia especulativa e a religião seriam apenas alienação da essência humana. Deus é a essência do próprio ser humano. O que seria, portanto, o Deus adorado por milhares de fiéis? Nada mais nada menos que a essência humana produzida na imaginação como uma realidade extra-humana. Todas as predicações atribuídas a Deus (Deus é justo, Deus é amor, Deus é sabedoria) são apenas antropomorfizações. Logo, a inferioridade do ser humano diante de Deus é a inferioridade diante da própria essência humana exteriorizada. Marx (1974, 2008), inspirado em Feuerbach, considera a religião a máxima alienação do ser humano, na medida em que este se desobriga de suas responsabilidades com relação à infraestrutura socioeconômica (a base material), deixando de se organizar como classe e lutar pela transformação. A religião, enquanto ópio do povo, oculta as relações de classes existentes entre burgueses e trabalhadores, manifestando-se como ideologia dominante. A indústria, a propriedade privada e o assalariamento alienam os trabalhadores dos meios de produção e do produto do seu trabalho. Os meios de produção e o produto do trabalho são de domínio do empresário capitalista que explora o trabalhador 107 Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p.104-126, jul./set. 2010 - ISSN: 2175-5841 Dossiê - Neoateísmo: Questões e Desafios – Artigo: Pragmatismo americano: o direito de crer diante da morte de Deus para garantir sua riqueza e dominação. Para Marx, a religião é um dos fundamentos que mantêm o sujeito alienado do produto de seu trabalho e, principalmente, de sua história. Na perspectiva marxista, a religião contribui para que o sujeito não seja capaz de perceber que as relações de produção capitalista dividem os homens em proprietários e não proprietários. Aqueles possuem os meios de produção sob a forma jurídica da propriedade privada e apropriam-se do produto do trabalho, enquanto estes não possuem os meios de produção e vendem a única forma de produção que possuem em troca de um salário: a força de trabalho. O antagonismo entre as classes sociais resultaria, portanto, dos interesses inconciliáveis entre o capitalista e o trabalhador. Só existe capitalista porque há massas de trabalhadores expropriadas que vendem sua força de trabalho em troca de um salário. Sendo assim, a história das sociedades é a história da luta de classes, da luta constante por interesses opostos (MARX; ENGELS, 2003, 2005; MARX, 2008). Pensando a partir da lógica marxista, a religião, principalmente das classes populares, contribui ideologicamente para a alienação política por intermédio de suas doutrinas e práticas, que justificam sua exploração econômica. Igrejas cristãs, com sua orientação conservadora e suas promessas de vida eterna, garantiriam a apatia ou passividade política de seus fiéis, seu desinteresse pelo jogo político, sustentando-os com uma mensagem de submissão à vontade de Deus que se traduziria na aceitação do status quo. Suas doutrinas e práticas tornar-se-iam paliativos, explicando a necessidade de sofrer neste mundo terreno para se ter felicidade no mundo transcendente. Em face desse estímulo à resignação e passividade, o cristianismo tornar-se-ia uma religião ideal para os capitalistas, donos dos meios de produção e, portanto, detentores do poder. Como trabalhadores, os fiéis seriam leais, submissos e explorados pelos seus patrões, na perspectiva marxista de compreender a religião (CAVALCANTI, 1998). Feuerbach e Marx são apenas dois exemplos de pensadores que tematizaram ou abordaram a religião no mundo moderno. Capdequí e Pasín (2006) afirmam que a religião não teve integração simples na sociedade moderna. A localização da experiência religiosa tornava-se cada vez mais estranha, perdido o seu papel de veículo humano preferencial em direção ao transcendente. O descrédito da religião foi uma das principais características do mundo moderno. O secularismo e o racionalismo desconfiavam das formas de evasão da realidade produzidas historicamente pelos homens, o que ajudou a produzir uma realidade desencantada. Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p.104-126, jul./set. 2010 - ISSN: 2175-5841 1 0 8 Rafael da Silva Mattos Apoiado por um projeto contínuo, evolutivo e universal da história, o homem foi desligando-se da religião como fonte exclusiva de verdade, tomando-a apenas como mais uma interpretação, entre outras, e subordinada à lógica científica. Neste artigo, queremos discutir a religião por outra lente. Iremos concentrar-nos na abordagem pragmatista do filósofo americano William James sobre a religião, contrapondo-a à “morte de Deus”, tão exaltada pelo filósofo alemão Nietzsche. 1 Nietzsche e a “morte de Deus” No pensamento de Nietzsche, Deus e a religião pertencem à cultura do ressentimento produzida pelo niilismo. A cultura do ressentimento caracteriza-se por uma hostilidade à vida terrena (ao corpo e ao prazer), criando-se um mundo transcendente considerado verdadeiro e autêntico. Para Anzenbacher (2009), a autodesagregação da cultura do ressentimento no niilismo destrutivo conduz à “morte de Deus” e ao desmoronamento do mundo transcendente. Marton (1999) ressalta que a afirmação "Deus está morto" é usada por Nietzsche para definir o destino de 20 séculos da história ocidental. A ruína do cristianismo, que valorizou a vida após a morte e negou a vida terrena, traz como consequência uma perda de valores ocidentais. No entanto, permite que o homem se estabeleça como criador de valores, reinterpretando a existência demasiadamente humana. Nietzsche critica o pensamento socrático-platônico e a tradição da religião judaico- cristã por terem desenvolvido uma razão e uma moral que subjugaram as forças pulsionais e vitais do ser humano, a ponto de domesticar a vontade de potência do homem e de transformá-lo em um ser fraco e doentio. Em sua obra Genealogia da Moral, Nietzsche (1998) afirma que os valores da tradição judaico-cristã são niilistas. Do início ao fim, Nietzsche não deixará de criticar a civilização moldada pela moral judaico-cristã. Ele permanecerá marcado por essa herança e tentará resgatar a força da cultura helênica para a Europa decadente. Como afirma Blondel (2009), antes de ser filósofo, Nietzsche é um filólogo clássico, especialista em linguagem, literatura e civilização antiga. A religião judaico-cristã escrava da moral começa quando o próprio ressentimento se torna criador e gerador de valores. Essa moral – escrava e ascética – requer um mundo 109 Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p.104-126, jul./set. 2010 - ISSN: 2175-5841 Dossiê - Neoateísmo: Questões e Desafios – Artigo: Pragmatismo americano: o direito de crer diante da morte de Deus oposto e exterior para poder agir. Não se trata de dizer sim à vida, mas de negar a vida. O cristianismo é perigoso e solapa a vida. Tampouco é apolíneo ou dionisíaco, mas nega todos os valores estéticos, segundo Nietzsche. A moral cristã se mostra como decadência (NIETZSCHE, 2000, 2003). A ideia de Nietzsche da “morte de Deus” refere-se a uma efetiva perda de importância dos valores sagrados, uma vez que os sentidos pelos quais os fiéis justificavam e regulavam suas vidas se viram desvalorizados, desacreditados, ao que Nietzsche se refere como sendo a falência dos “valores superiores”. O óbito de Deus tem como alvo o Deus cristão, o Deus ocidental, todo-poderoso, suprassensível, imutável, onisciente, onipresente e onipotente. A crença nesse Deus foi, durante milênios, o fundamento das máximas de uma vida e uma consciência moral, fonte superior da justiça, da bondade e da verdade (NOBRE, 2006). A morte de Deus, para Nietzsche, é o maior dos acontecimentos de sua época, o prenúncio de uma sequência de ruptura, declínio, destruição da transcendência. Com o óbito de Deus, os valores que sustentaram a civilização ocidental por séculos são abalados. Max Weber chega a utilizar a expressão “desencantamento do mundo”, que diz respeito ao declínio, em parte, da religiosidade e do pensamento mágico das sociedades, com a Modernidade e a racionalização/burocratização das atividades humanas. A Modernidade, segundo Weber, assinala o declínio irreversível da religião, com a ciência substituindo as crenças, a medicina substituindo as preces, o tecnicismo substituindo a magia, e a política substituindo a religião. As divindades e os valores superiores que justificavam a ordem social se apagam para dar lugar a um mundo sem Deus. É claro que o desencantamento do mundo não diz respeito somente ao desencantar o mundo por meio da religião, mas também ao fato de que a ciência não consegue dar sentido completo ao mundo, retirando o sentido mágico e propondo explicações parciais e limitadas dos fenômenos que ocorrem (WEBER, 2006; SOUZA, 2006; PIERUCCI, 2003; NOBRE, 2006). Diante disso, destaca-se a ascensão do niilismo, fenômeno decorrente da morte de Deus. O que significa niilismo, pergunta Nietzsche? Significa que os valores se desvalorizam. Os valores se perderam. A transcendência ruiu. Deus sempre foi fonte dos nossos valores, de nossa moral. Quando Deus se retira de cena, tais valores morais tornam- se desacreditados. Com isso, desaparecem todas as velhas certezas que serviriam para Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p.104-126, jul./set. 2010 - ISSN: 2175-5841 1 1 0 Rafael da Silva Mattos tranquilizar a existência, particularmente os fins e objetivos, os porquês. O homem encontra-se entregue à própria sorte. Uma espécie de escolha existencialista. Só ele é responsável pelo seu futuro, independentemente dos deuses (SARTRE, 1996). A superação do cristianismo caberia aos espíritos livres. Estes deveriam superar o ressentimento, afirmando a vida, a força, o poder, a potência. Os espíritos livres teriam uma postura vital diante da cultura e poderiam fundar novos valores. Assim, Nietzsche prioriza a arte trágica, o espírito livre, o além-do-homem. É responsabilidade do filósofo trágico criar novos valores para a cultura. O filósofo é o médico da civilização. Nietzsche faz a pergunta: Vamos cair na decadência (no niilismo) ou vamos encontrar uma saída? Qual a saída de Nietzsche? Os valores humanos (NIETZSCHE, 2005). Nietzsche propõe uma ética (e uma estética) da existência, tal qual descreve Foucault (2006). A filosofia de Nietzsche é a da suspeita, da dor, da angústia. A filosofia de Nietzsche não é da felicidade, mas da força. A vida é uma escola bélica. É preciso filosofar com o martelo. O cristianismo, segundo Nietzsche, tem uma visão pessimista sobre o mundo terreno e uma visão esperançosa sobre o paraíso, o céu, o transcendente. A afirmação de que há outro mundo que temos que almejar, como querem os cristãos, é uma ilusão, um anestésico. Ao fazer um diagnóstico da situação do homem moderno ocidental, Nietzsche (2007) considera o cristianismo como uma versão vulgarizada do platonismo adaptado às massas. A “morte de Deus” seria uma expressão simbólica do desaparecimento desse horizonte metafísico baseado na oposição entre realidade (verdade) e aparência (falsidade). A morte de Deus implica, portanto, a possibilidade de colocar em questão a crença na origem divina e no valor absoluto da verdade. Se o cristianismo e o platonismo são as matrizes dos valores da civilização europeia que nos levaram ao niilismo, a redenção/saída/solução se daria com a inversão dos valores cristãos/platônicos. Mas seria a religião judaico-cristã algo tão nefasto como aponta Nietzsche? Mais especificamente, seria a religião algo tão pútrido como o filósofo argumenta? Seria a religião um dos pilares da decadência do ser humano? Seríamos menores por vivenciar práticas religiosas cristãs? Seríamos fracos? Vejamos o que William James (1842-1910), pragmatista americano, argumenta em torno da religião. 111 Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p.104-126, jul./set. 2010 - ISSN: 2175-5841 Dossiê - Neoateísmo: Questões e Desafios – Artigo: Pragmatismo americano: o direito de crer diante da morte de Deus 2 O pragmatismo de William James e o direito à religião O pragmatismo é a grande corrente da filosofia americana. Seus representantes se autointitulam “espírito de laboratório”, ou seja, valorizam a experiência. O pragmatismo, segundo o uso corrente, é a filosofia da prática, do que é útil. Não é sem razão que ele foi considerado filosofia de comerciantes, reduzida a um americanismo, uma doutrina de businessman confundindo verdade e interesse (JOBARD, 2009). Rosenthal (2002) afirma que aqueles mais imersos no espírito do pragmatismo americano tendem muitas vezes a considerá-lo limitado, por sua ligação com a natureza da investigação científica, com uma teoria do significado e da verdade. Todavia, é preciso um olhar mais atento para compreendermos essa corrente filosófica do século XX criada por Charles Peirce e William James. O primeiro pensador que utilizou a palavra “pragmatismo” foi o americano Peirce. Num artigo publicado em 1878, em uma revista americana, sob o título “Como tornar nossas idéias claras” (How to make our ideas clear), ele expõe pela primeira vez as ideias pragmáticas. Peirce se pergunta por que nós pensamos. Ele mesmo responde que pensamos porque duvidamos. Se estivéssemos em um estado perpétuo de certeza, não teríamos necessidade de pensar e de fazer esforço para eliminar nossas dúvidas. A irritação produzida pela dúvida nos leva ao esforço para atingir um estado de crença. O estado de crença é um estado de equilíbrio epistêmico e cognitivo. A marca essencial da crença será o estabelecimento de um hábito. Não há ainda no artigo de Peirce uma teoria da verdade. O problema da verdade não se coloca. O que interessa ao autor é interrogar-se como podemos tornar claras as nossas idéias (DURKHEIM, 1955; HOOKWAY, 2000). Já William James publica, em 1896, The will to believe and other essays in popular philosophy, que será reeditado em 1911. Ele distingue as questões puramente teóricas, que dizem respeito à ciência, e as questões práticas, das quais podemos tirar proveito, mesmo que não sejam conhecimentos considerados seguros do ponto de vista científico. Entre estas últimas, incluem-se as crenças religiosas. A primeira grande contribuição de James para o conhecimento acadêmico foi a constituição de uma nova corrente da psicologia. Os estudos dos fenômenos psíquicos constituíam uma disciplina de caráter metafísico, ocupada com a essência do homem, como Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p.104-126, jul./set. 2010 - ISSN: 2175-5841 1 1 2 Rafael da Silva Mattos a alma. William James foi o primeiro norte-americano a organizar um laboratório de psicologia experimental. Ele defendia o estudo dos mecanismos psíquicos como intimamente relacionados à fisiologia neural. James contribui para deslocar a psicologia do campo da metafísica para o campo biomédico – empírico, experimental, dedutivo, hipotético (JAMES, 1981). Ele foi um dos principais autores contemporâneos a defender que as emoções são produto de certas modificações fisiológicas neurais. No entanto, pouco depois de ter sido responsável pela cadeira de psicologia da Universidade Harvard, James direcionou sua combinação de evolução e psicologia experimental para a filosofia. Esse direcionamento estava relacionado com os problemas filosóficos levantados pelos membros da Sociedade Metafísica de Cambridge, entre os quais o próprio William James e Charles Sanders Peirce, criadores do pragmatismo (PEIRCE, 1877, 1878). Durkheim (1995) afirma que podemos caracterizar o pragmatismo de três formas: a) como um método, uma atitude geral do espírito; b) como uma teoria da verdade; c) como uma teoria do universo. Em James, o pragmatismo é considerado não apenas como um método de determinação de significados, mas também como uma nova teoria da verdade (flexível, mutável, dinâmica). A filosofia deveria imitar os procedimentos das ciências naturais e ser indutiva e empírica. Para isso, o filósofo deveria adotar hipóteses de trabalho e substituí-las quando necessário. James defendia hipóteses filosóficas na medida em que estas pudessem funcionar, e não na medida em que fossem verdadeiras. A verdade deixaria de ser concebida como adequação entre o pensamento e a realidade para tornar-se funcional. Ela não seria representacional, mas estabelecidade por sua funcionalidade e aplicabilidade. Para James, a verdade não é algo rígido e permanente, mas algo que se modifica e se expande sempre. Em suas conferências, James (1979) procurava chamar a atenção do público para o fato de que a filosofia diz respeito a todos e desperta nosso senso de sutileza e de inventiva. 113 Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 18, p.104-126, jul./set. 2010 - ISSN: 2175-5841
Description: