PORTUGAL UND DAS HEILIGE RÖMISCHE REICH PORTUGAL E O SACRO IMPÉRIO Saudade. A importação de faiança portuguesa no século XVII Esta apresentação pretende ser uma reflexão acerca da disseminação da faiança portuguesa no século XVII através do comércio internacional. Trata- se de um assunto complexo1, mas para o qual se pretende ter o apoio não só de um inventário de objectos em colecções públicas (e se possível privadas) estrangeiras e, simultaneamente, um levantamento de materiais obtidos em escavações, quer em Portugal, quer no estrangeiro. Alguns destes materiais têm vindo a ser objecto de investigações laboratoriais que poderão clarificar alguns dos aspectos em estudo. * A faiança portuguesa do século XVII é normalmente associada a objectos decorados a azul e branco, com forte influência oriental2. Ainda que correcta, a ideia não traduz a diversidade existente, pois a cerâmica de vidrado estanífero nacional é mais complexa, sendo tributária de outras inspirações. Uma questão polémica na Historiografia cerâmica portuguesa é a data inicial de produção das primeiras cerâmicas decoradas de vidrado estanífero nacional. A manufactura de azulejos surge inequivocamente assinalada com obras excepcionais, como o revestimento parietal da capela de São Roque, em Lisboa, assinado por Francisco de Matos e datado de 15843. Se nesta data era manufacturada em território nacional cerâmica polícroma de revestimento de grande qualidade, parece evidente considerarmos que a produção terá sido extensiva ao fabrico de louça. No entanto, não conhecemos peças datadas, nem foram assinalados objectos em escavações 1 Estas reflexões, e outras, estão a ser sistematizadas e, esperamos, clarificadas na tese de doutoramento “A produção de faiança em Portugal anterior às manufacturas pombalinas (do final do século XVI a 1763) – com enfoque nas oficinas de Lisboa” que decorre na Universidade Católica Portuguesa. 2 Sem elencar exaustivamente os autores que se debruçaram sobre o tema, são de referir os textos de José Queirós, Cerâmica portuguesa e outros estudos, Lisboa, Editorial Presença, 2002, Reynaldo dos Santos, Faiança Portuguesa, séculos XVI-XVII, Lisboa, 1960, Rafael Salinas Calado, Faiança portuguesa, Lisboa, 1992. João Pedro Monteiro, A influência oriental na cerâmica portuguesa do século XVII, Milão: Electa, 1994 (cat. exp.) e João Pedro Monteiro, A faiança portuguesa do século XVII e a influência da porcelana da China, Lisboa, 1998, (texto policopiado realizado para a Fundação Oriente). 3 Ainda que investigações recentes apontem uma cronologia mais recuada para a manufactura nacional de azulejaria, cf TRINDADE, Rui Alves, Revestimentos Cerâmicos Portugueses. Meados do século XIV à primeira metade do século XVI, Dissertação de Mestrado, defendida na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 1997/98. em cotas que apontam seguramente para uma cronologia do século XVI. O que está registado são objectos de barro, por vezes com vidrados verdes de cobre ou amarelos de ferro, e faianças brancas com cronogramas ou elementos decorativos simples. Deste modo, os revestimentos azulejares de Francisco de Matos - ou de Marçal de Matos, que muitos autores consideram um seu familiar – possuem um carácter de excepção, talvez por se tratarem de artistas estrangeiros que terão permanecido em território nacional por um período de tempo específico4. A partir de escavações arqueológicas na Europa e na América do Norte têm sido encontrados fragmentos de cerâmica portuguesa - em cotas seguramente seiscentistas - que apontam para uma manufactura relativamente vasta e variada, por vezes, sem paralelo com os exemplares existentes em instituições públicas e privadas nacionais. O que também parece cada vez mais evidente é a especificidade de alguns dos tipos de produtos encontrados, consoante observamos as diferentes proveniências destes espólios. Assim, parece poder estabelecer-se variações nas exportações portuguesas, consoante os produtos se destinavam ao Brasil ou à América do Norte, aos Países Baixos ou à Liga Hanseática. Nos objectos para este último destino, e que parecem ter sido dos mais requintados produzidos para fora do território nacional, os referentes associam uma influência italiana e francesa a elementos exóticos, sendo estes, normalmente, subsidiários de formas ocidentais que assumem maior protagonismo. Nas escavações dirigidas por Jan Baart em Amsterdão no bairro outrora conhecido como Vlooyenburg, e que decorreram entre 1981 e 1982, surgiram no tardoz de numerosas peças (quer recipientes intactos, quer fragmentos de objectos de exportação portuguesa), nomes portugueses ou luso-judaicos ou 4 Acerca desta hipótese cf. PAIS, Alexandre, Património Arquitectónico: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa / coord. geral Maria Helena Oliveira ; coord. editorial Teresa Freitas Morna, Helena Alexandra Mantas - Lisboa: Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, Museu de São Roque, 2006. - Vol. 1, p. ainda abreviaturas dos mesmos5. Nesta escavação em nenhuma faiança de proveniência portuguesa foi encontrado um nome holandês (tanto quanto sabemos), sendo ainda necessário averiguar se estas pertenciam a judeus portugueses emigrados na Holanda, que as terão levado na sua bagagem, ou se as mesmas foram importadas a Lisboa. Aceitando a segunda hipótese, importa considerar se o estado de guerra então existente entre os Países Baixos e o Império espanhol - que Portugal integrou entre 1580 e 1640 - terá condicionado a exportação directa de bens com origem peninsular para esse território6. Mesmo com estes aspectos ainda em aberto, é evidente que a superioridade quantitativa e qualitativa da produção holandesa e a capacidade de escoamento da sua produção, especialmente a partir de meados do século XVII, deverá ter conduzido a um decréscimo significativo da importação portuguesa, situação que terá ocorrido, de igual modo, no comércio hanseático a partir de 1650. Este decréscimo de importância da produção nacional deverá estar relacionado com a Restauração da Independência portuguesa e, eventualmente, com o afastamento dos protagonistas deste comércio dos centros de decisão. O que prevalece e parece razoável acreditar é que a exportação para o mercado europeu foi um factor determinante na manufactura cerâmica portuguesa, com um alcance até agora insuspeitado no que se refere à criação de formas e decorações destinadas especificamente a esse consumo. A presença de um número razoável de peças datadas em colecções alemãs, permite percepcionar que o apogeu da exportação cerâmica lisboeta ocorreu entre 1623 e 16567. Estes objectos, muitos deles destinados a individuos específicos de origem germânica, no que contrasta com o quadro definido 5 Os exemplos foram publicados no livro Portugueses em Amesterdão 1600-1680, Amsterdam, Bataafsche Leeuw, 1988. 6 O que parece certo é a existência de características específicas na peças aparentemente destinadas a estes territórios, nomeadamente uma paleta que empregava um azul mais claro que o utilizado nas peças destinadas ao mercado interno e ao da Liga Hanseática, e o protagonismo da superfície branca. 7 Cronologia estabelecida a partir das peças mencionadas na bibliografia germânica, nomeadamente HUSELER, Konrad, «Die Hamburger Fayencen des 17. Jahrhunderts», Nordelbingen IV, 1925, p. 479- 532. para a Holanda, preencheram a apetência que o centro da Europa tinha pelo exotismo da louça de influência oriental, oferecendo a um leque mais alargado de clientes maiores possibilidade de representação e definindo novas influências de gosto. A “FAIANÇA DE HAMBURGO” Hamburgo foi, no final do século XVI, um destino preferencial para numerosas famílias judaicas que emigravam da Península Ibérica, as quais passaram a designar-se sefardins, para se distinguirem dos grupos da Europa central e oriental que falavam um dialecto judaico-alemão e se denominavam jiddisch8. O estabelecimento de portugueses em Hamburgo, documentado a partir de 1590, foi tolerado até 1603, quando foi exigida a sua expulsão devido à sua crescente tendência de se declarar partidária da fé judaica, associando nomes hebraicos aos de origem portuguesa. Esta população, composta não só por ricos comerciantes, mas também por investigadores e intelectuais, acabou por constituir uma natio lusitana, expressão que o Senado hamburguês empregou aquando da assinatura de um tratado em 16129. Este documento, renovável por períodos de cinco anos, garantia aos portugueses residência e liberdade plena no exercício das suas profissões, impondo, no entanto, sérias restrições no domínio religioso, ao mesmo tempo que possibilitava a cobrança de impostos elevados e considerável intromissão na vida privada destas famílias. Apesar destas condições, o estabelecimento de grupos luso-judaicos em Hamburgo aumentou, tendo sido recenseadas 120 famílias, em 1650, integrando cerca de 600 indivíduos, para 30.000 habitantes nesta cidade10. 8 BENBASSA, Esther, RODRIGUE, Aron, História dos sefarditas, Historia e biografias, Lisboa: Instituto Piaget, 2000, p.44-61. Para a questão da separação dos Judeus ibéricos cf. CARVALHO, António Carlos, Os judeus do Desterro de Portugal, Lisboa: Quetzal Editores, 1999. 9 KOJ, Peter, «Portugiesisch im Deutschen Wortschatz», in Portuguiesisch-Hanseatische Post, 8, 1993, p. 32-33. 10 Entre eles contavam-se os quatro portugueses fundadores do primeiro banco de Hamburgo, sendo a importância desta população extensível não só ao domínio da gestão financeira, mas à sua cultura e domínio de vários idiomas, que lhes davam uma grande vantagem nos negócios e diplomacia. A experiência comercial a que se associava o conhecimento dos produtos provenientes das colónias, para além das relações de parentesco que permaneceram nas metrópoles espanhola e portuguesa, as quais muitas vezes se estendiam às próprias colónias, foram factores importantes dos quais souberam tirar partido. Cf. KOJ, Peter, «Portugiesisch im Deutschen Wortschatz», in Portuguiesisch-Hanseatische Lisboa era, a par de Sevilha, um centro de comércio mundial constituindo um ponto de encontro de riquezas coloniais11, mas o início do século XVII constituiu um ponto de viragem: uma profunda crise económica abateu-se sobre os impérios peninsulares12. Um devastador decréscimo demográfico provocado por epidemias de peste, pela expulsão das populações mouriscas (1609) e pela progressiva mudança de cristãos novos para outras regiões onde a intolerância religiosa era menor conduziram, entre outros factores, a um aumento elevado dos salários e, consequentemente, a um maior custo dos produtos artesanais, o que se traduziu num abrupto decréscimo da sua procura interna. Para fazer face a esta situação o mercado nacional procurou novos espaços para escoamento de produção, investindo na exportação de produtos de qualidade e procurando ir ao encontro dos gostos e preferências de novas clientelas13. O contexto político da época era igualmente complexo, com a Inglaterra e os Países Baixos em guerra com a Península Ibérica unificada, e a fomentar a prática do bloqueio comercial e do corso, com vista a infligir danos assinaláveis à já muito desequilibrada balança comercial ibérica14. Assim, foi necessário definir rotas seguras que permitissem o comércio, Hamburgo passou a assumir o papel de eixo difusor dos produtos provenientes da Península, nomeadamente de Lisboa15. Mesmo com o início da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648) que precipitou a Europa Central numa crise, a partir Post, 8, 1993, p. 32-33. Para conhecer os números das populações portuguesas em vários países e cidades da época cf. COELHO, António Borges, Clérigos, mercadores, “judeus” e fidalgos, , 1994, p. 152-153. 11 Cf. HERMANN, Christian, MARCADÉ, Jacques, A Península Ibérica no século XVII, Lisboa, Publicações Europa-América, 2002. 12 SERRÃO, Joaquim Veríssimo, O tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668), Lisboa: Colibri, 2004, p.23-25. BOXER, C.R., O Império marítimo português, 1415-1825, Lisboa, Edições 70, 2001, 7ª ed. 13 Um factor decisivo no estabelecimento dessas ligações comerciais deverá ter sido proporcionado pelo estabelecimento de negociantes descendentes de judeus portugueses que se fixaram na costa mediterrânica, nas zonas costeiras da Europa Ocidental e nas áreas germânicas do Mar do Norte e do Mar Báltico. A experiência comercial, a apetência por produtos coloniais e, em muitos casos, as ligações de parentesco, foram factores decisivos no estabelecimento destas rotas comerciais. 14 Cf. GODINHO, Vitorino Magalhães, Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar, séculos XIII- XVIII, Lisboa, Difel, 1990; SCHAUB, Jean-Frédéric, Portugal na Monarquia Hispânica (1580-1640), Lisboa, Livros Horizonte, 2001. 15 Cf. MARTINS, Jorge, Portugal e os judeus, Lisboa, Nova Veja, 2006, vol. I, p. 146-148. de 1618 a cidade soube manter-se neutral o que, de forma arguta lhe permitiu prosseguir as suas actividades comerciais orientadas para o aprovisionamento das potências em guerra. De acordo com Ulrich Bauche, duas peças podem ser associadas a essa actividade comercial. Destas destaca-se um jarro pertencente ao Museu Nacional de Copenhaga16 cuja decoração de escamas no gargalo, parece evocar a influência oriental da produção da Dinastia Ming, embora esta possa também ser observada de forma mais “realista” noutras peças portuguesas17. O que torna interessante esta peça é que ela sintetiza precisamente a fusão de influências, tão característica da manufactura nacional. Para além dos elementos mencionados surge ainda, na sua base, a legenda LAVRIDTZ ANDERSEN HOLSTLVTNANT, ANOS 1624 – Feito para Andersen Tenente de Holstein, anos 1624. Esta informação permite identificar que a peça foi feita para um tenente do exército do rei dinamarquês, em Holstein, sendo o braço armado no interior do coração o seu brasão ou divisa pessoal. Para Ulrich Bauche, a encomenda desta peça teria sido dirigida às olarias de Lisboa por Moise Benedicktus, o principal comerciante local de origem portuguesa em Glückstadt cidade rival de Hamburgo e aquele que melhor conhecia a manufactura de faiança. O autor refere ainda que o facto da palavra portuguesa ANOS18 surgir integrada na legenda pode estar relacionado com algum erro, ou omissão, na transmissão do que se pretendia aí mencionar. Em escavações levadas a cabo em Lubeck encontraram-se objectos de proveniência portuguesa, um dos quais é um prato que representa um soldado a disparar, enquanto corre, sobre um grande felino, inscrevendo-se, 16 Publicado por HUSELER, Konrad, «Die Hamburger Fayencen des 17.Jahrhunderts», in Nordelbingen IV, 1925, il. 11. 17 Nomeadamente um aquamanil em forma de peixe, no Museu Nacional de Arte Antiga, uma sereia, na Fundação Carmona e Costa, e diversas garrafas em forma de monstro em colecções públicas e privadas, nacionais ou estrangeiras, os quais possuem caudas de peixe, que servem de pegas. 18 O desconhecimento da língua terá levado o pintor a substituir o que deveria ser a palavra germânica Jahr pela portuguesa ANOS. Cf. BAUCHE, Ulrich, «Hamburger Fayencen oder Porcellanas de Lisboa», Lissabon-Hamburg Fayenceimport fur den Norden, Hamburg, Museum fur Kunst und Gewerbe, 1996, p.27. entre eles, a legenda ESTE OME MATOV ESTE LEÃO19. Estas evidências demonstram que as encomendas de faianças a Lisboa deverão ter tido outros intermediários, para além de Benedicktus, pois prosseguiram após a sua morte, sendo algumas destinadas a clientela de Hamburgo. É possível que o mercador tenha participado neste comércio aquando da sua residência na cidade, antes de se mudar para Glückstadt, podendo, eventualmente, constituir uma das figuras principais na divulgação deste tipo de objectos na Alemanha20. Aproveitando a neutralidade de Hamburgo no cenário da Guerra dos Trinta Anos, os comerciantes luso-judaicos mantiveram uma intensa correspondência com os seus parceiros de negócios, nomeadamente portugueses. Curiosamente, apesar de documentada muita correspondência nos arquivos alemães tanto quanto sabemos não se encontrou nenhuma carta referindo o comércio de cerâmicas entre Portugal e Hamburgo. Assim, os investigadores alemães que têm estudado o tema, nomeadamente Ulrich Bauche, consideram a hipótese do comércio de faiança proveniente de Lisboa não ser um monopólio sefardita. Não se sabe se a presença de policromia (amarelo, laranja e verde) valorizava monetariamente estas peças ou se, pelo contrário, o azul e branco associado à paleta oriental era mais apreciado. De qualquer modo, o prestígio destes produtos não deveria estar necessariamente associado a ao 19 FALK, Alfred, «Portugiesische Fayencen in Lubeck», in Mitteilungen des Deutschen Gesellschaft für Archäologie des Mittelalters und der Neuzeit, 18, 2007, p. 93-100. 20 Eventualmente, alguns desses intermediários poderiam mesmo ser naturais da Alemanha. Dos 195 alemães moradores em Lisboa, que se converteram perante a Inquisição, entre 1642 e 1700, a maior parte, cerca de 68%, era natural de Hamburgo, a cidade com a qual Portugal mantinha relações comerciais mais estreitas. Outras origens alemãs eram Lubeck (14 pessoas) e Frankfurt-am-Main (2 pessoas). Os restantes alemães eram provenientes de diversas zonas do Império germânico, como a Saxónia, a Pomerânia, o Palatinado, a Vestefália, a Baviera, a Boémia e as actuais Áustria e Polónia. Muitas destas cidades tinham apenas um natural em Lisboa – Amberg, Augsburg, Berlim, Brandenburg, Braubach, Braunschweig, Bremen, Brieg, Celle, Darmstadt, Haumbach, Hanau, Hanweiler, Heiligenstadt, Hesel, Kassel, Koln, Konigsberg, Lichtental, Lockstedt, Mauthausen, Nimburg, Nuremberg, Oberanden, Oldenburg, Ossen, Rheda, Saarbrucken e Stade, entre outras menos claramente identificáveis. Profissionalmente, estes homens estariam ligados à actividade comercial como mercadores, tratantes ou homens de negócios. Cf. BRAGA, Paulo Drumond, Portugueses no estrangeiro, estrangeiros em Portugal, Cascais, Hugin Editores, 2005, p.284-285. Para o tema dos alemães residentes em Portugal consultar também MARQUES, A. H. de Oliveira, Hansa e Portugal na Idade Média, Lisboa, Editorial Presença, 1993, 2ª ed. exotismo chinês, visto serem conhecidas uma série de peças destinadas ao mercado hanseático com presença de outras cores, para além do azul. O que parece evidente é a existência de um substrato italianizante na estética dos objectos destinados ao comércio hanseático, o qual convive de modo original com a matriz oriental que caracterizava a manufactura lisboeta da época21. A partir dos inventários e das listas de vendas em leilões22 realizados em Hamburgo para o período de 1628 a 1640 foi possível confirmar que as faianças portuguesas ou os ditos “produtos espanhóis” tinham utilização corrente entre os estratos mais elevados da sociedade, assim como numa vasta camada de burgueses menos abastados, divergindo ambas unicamente por nesta última ser raramente registada a presença de porcelanas chinesas. As peças mais antigas, inventariadas por ocasião da exposição Lissabon- Hamburg Fayenceimport für den Norden, remetem para as primeiras encomendas datadas de 1623 e 1624. Estes objectos, para além de cronografados, possuem, normalmente, os nomes dos encomendantes. É conhecida, no entanto, uma peça com cronografia anterior (1620) destinada a territórios exteriores a Portugal, o que poderá evidenciar contactos anteriores23. 21 Na decoração dos objectos destinados ao consumo interno ou para os paises que constituíam, então, colónias portuguesas predominavam os motivos orientais – inspirados na porcelana e objectos de manufactura chinesa - ou os elementos islamizantes – apontamentos que se podem observar maioritariamente na chamada “louça de lustre” ou “de brilho metálico”, que constituía uma das principais produções dos oleiros islâmicos em território espanhol. Relativamente aos aspectos italianizantes presentes nas faianças portuguesas de então estes não se limitavam à paleta empregue, também os temas decorativos podiam ter como base gravuras europeias. Exemplo disso é o recorrente motivo da “Fortuna marina” em objectos portugueses e que foi igualmente empregue em peças italianas, conhecendo-se exemplares com este tema pintados, no final do século XVI, em Pesaro. 22 Através de um leilão judicial realizado em Hamburgo em 1639 é também possível provar a existência de faiança portuguesa numa residência sefardita. O documento “Em relação a Schimam Moyses, que cometeu stuprum violentum (violação) sobre a filha de Lopo Nunes.... No ano de 1639, a quatro de Outubro, por Ordem do Senhor Barthold Mollers J.U.L. (Jurs Ut Lex) altíssimo presidente do tribunal, e a pedido de Lopo Nunes, (foram) inventariados os bens de Schimahm Moyses, …. devido ao Stupri Violent, e deliberado como se segue: Na sala... 4 grandes pratos espanhóis de cerâmica, 7 pratos de médio porte em cerâmica, 15 copos de vinho de cristal da Boémia e de vidro, 3 potes de cerâmica, 3 potes vermelhos de cerâmica... Samuel Ferdinand, como Auditor e fiador .... paga por todo o recheio da casa, excepto..... 74 marcos e 8 xelins.” Cf. BAUCHE, Ulrich, Hamburger Fayencen oder Porcellanas de Lisboa, Lissabon-Hamburg Fayenceimport fur den Norden, Hamburg, Museum fur Kunst und Gewerbe, 1996, p. 37. 23 Trata-se de uma peça a que não tivemos acesso, mas que surge referida num leilão na sede da Christie’s em Londres, em 1992: “A PORTUGUESE DATED AQUAMANILE modelled as an open- mouthed blue-scaled dolphin resting on its back with yellow-edged open mouth and eyes and umber Por vezes, estes objectos tal como os que eram produzidos para consumo interno integram uma curiosa mistura de temas pagãos e bíblicos, o que torna esta produção mais surpreendente no quadro das criações cerâmicas da época, provavelmente com poucos paralelos anteriores e posteriores noutras manufacturas europeias. O que também se torna evidente é a presença de peças cuja morfologia está ausente dos objectos usualmente encontrados em colecções portuguesas. De entre estas contam-se um tipo específico de potes destinados a aquecer bebidas alcoólicas com plantas aromatizadas24. Uma constatação feita pelos investigadores da exposição Lissabon-Hamburg Fayenceimport für den Norden, foi a grande presença de peças brasonadas com as armas desta cidade na faiança de origem portuguesa. A partir da inventariação então efectuada, foi possível determinar que cerca de 10% dos objectos apresentavam este motivo, o que permite concluir que Hamburgo seria um destino privilegiado de exportação. A decoração de objectos para exportação com elementos heráldicos da cidade a que se destinavam – ainda que muitas vezes com incorrecções - constituiu uma importante manobra comercial, que não deixa de surpreender os que se interessam sobre este tema. A colocação de peças num mercado estrangeiro precisa, para se consolidar, de uma forte implementação e da criação de estímulos em que a qualidade, por si só, nem sempre é um valor seguro. Assim, a presença do brasão da cidade em peças de exportação funcionava duplamente, quer como apelo ao patriotismo dos seus habitantes (decorria a Guerra dos Trina Anos), que assim viam o símbolo da sua identidade em objectos cuja manufactura não tinha expressão na região, fins and tail, the tail forming a mouth-piece, resting on a striped scallop-shell, the underside with the date 1620 (pierced, tip of mouthpiece lacking, flaking), 1620, the mounts later”. Parece evidente tartar- se de uma peça semelhante à que integra as colecções do Museu Nacional de Arte Antiga, de Lisboa. 24 Estas peças com tampas com pegas elevadas e corpo de bojo ovóide, assente em base circular e par de asas em orelha coladas ao corpo da peça, têm no seu interior um corpo ovalado, fixo a uma das paredes internas da peça, que por apresentar diversos orifícios funcionava como passador. Nelas preparava-se uma bebida alcoólica à base de cerveja, vinho ou aguardente e bolo de mel, a que eram adicionados limão, passas e frutos cristalizados a partir do século XVII (após a introdução de alguns hábitos alimentares portugueses), e ervas aromáticas que se deixavam de infusão nesse passador.
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