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Por que ainda ler Saussure? PDF

14 Pages·2013·0.3 MB·Portuguese
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Por que ainda ler Saussure? José Luiz Fiorin Valdir do Nascimento Flores Leci Borges Barbisan Saussure nasceu no dia 26 de novembro de 1857, em Genebra, e morreu, na mesma cidade, no dia 27 de fevereiro de 1913, há, portanto, cem anos. Este Saussure: a invenção da linguística destina-se a lembrar essa efeméride. Temos o fascínio das datas redondas. Elas ensejam um sem-número de comemorações. No entanto, para além da superfície festiva das efemérides, elas servem também para revisitar autores, obras, acontecimentos históricos, para vê-los sob nova luz, para ressaltar sua importância para o presente, para desfazer equívocos a respeito deles, para dizer aos mais jovens que papel tiveram, para fazer ver sua atualidade. O Curso de linguística geral,1 de Saussure, talvez seja o grande clássico da Linguística moderna. Segundo o grande escritor italiano Ítalo Calvino, “os clássi- cos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo e individual” (Calvino, 1998: 10-11). É o que acontece com essa obra de Saussure, desde sua publicação: criou um novo objeto para a Linguística, a langue, e suas teses sobre a língua como instituição social, sobre a arbitrariedade do signo, sobre as análises sincrônica e diacrônica, etc. transformaram o fazer dos linguistas e alteraram a Linguística; atualmente, repetimos certas teses do mestre genebrino, como, por exemplo, de que na língua só há diferenças, sem sequer saber que ele foi seu primeiro formulador. A Linguística iniciada, a partir do Curso, leva em conta os princípios saussurianos de que a língua “é um sistema que conhece apenas sua própria ordem” (CLg: 31); “é um sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica” (CLg: 102); “é uma forma e não uma substância” (CLg: 141) e de que a Linguística “tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma” (CLg: 271). Greimas diz no texto seguinte: 8 Saussure A originalidade da contribuição de F. de Saussure reside, cremos nós, na transformação de uma visão de mundo que lhe foi própria – e que consiste em apreender o mundo como uma vasta rede de relações, como uma arquitetura de formas carregadas de sentido, portando em si mesmas sua própria signifi- cação – em uma teoria do conhecimento e em uma metodologia linguística. (Greimas, 1956: 192) O Curso é, para a Linguística, um discurso fundador. No entanto, mesmo os discursos fundadores constituem-se, como todo e qualquer discurso, em opo- sição a outros. Se seu princípio central é o da prioridade das relações sobre os elementos e, por conseguinte, o de que as relações que definem o sistema formam uma hierarquia, cujas partes estão relacionadas entre si e mantêm relações com o todo que engendram, está, numa relação de heterogeneidade constitutiva com o discurso transcendentalista, com o analogista e com o anomalista. O ponto de vista transcendentalista é aquele que faz da linguagem meio para compreender a sociedade humana, o psiquismo do homem, seu sistema conceitual, a marcha do homem sobre a Terra, as propriedades físicas dos sons, etc. Sem negar que a linguagem possa servir de meio para um conhecimento cujo principal objeto reside fora dela, Saussure opõe ao ponto de vista transcendental o princípio da imanência: “a Linguística tem por único e verdadeiro objeto a língua considerada em si mesma e por si mesma” (CLg: 271). Nesse sentido, a linguagem deixa de ser meio e passa a ser um fim em si mesmo. Isso significa que a explicação para os fatos linguísticos estará no interior da linguagem, a língua, e não numa realidade extralinguística. O discurso saussuriano contrapõe-se também ao dos analogistas e dos anomalistas. Aqueles assentam suas explicações na associação por semelhança. Como nota Mattoso Câmara no seu artigo “O estruturalismo linguístico”, isso “leva sem dúvida à formulação de um conjunto, mas não estabelece um campo de relações em que o todo se explique pelas partes e cada uma das partes pelas outras e pelo todo” (Câmara, 1968: 7). Os anomalistas, por sua vez, prescindem até mesmo de uma soma, “negando a possibilidade de um conjunto por associação de elementos. A rigor não chegam à gramática, que se reduz para eles em seguir o uso (cosuetudinem sequens), como dizia o anomalista Aulo Gelio” (Câmara, 1968: 8). Para eles, a realidade é única, não podendo os fatos ser generalizados. Aos anomalistas, Saussure opôs a noção de sistema: “A língua é um sistema do qual todas as partes devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica” (CLg: 102). Aos analogistas, Saussure opôs o princípio de que a língua é forma e não substância, o que leva a considerar não somente semelhanças, na análise dos fatos Por que ainda ler Saussure? 9 linguísticos, mas principalmente diferenças. A diferença supõe a semelhança, mas, como diz Saussure, o que importa na língua são as diferenças (CLg: 139). Em relação aos discursos científicos precedentes, Saussure opõe o princípio da imanência, o do sistema e o da forma. Por causa disso, foi acusado de esvaziar a linguagem de sua dimensão histórica, de não levar em conta o sujeito na linguagem. No entanto, é preciso esclarecer que o Curso se opõe ao organicismo da Linguística histórica de sua época, que considerava que a linguagem tinha fundamentos bioló- gicos e inseria a Linguística entre as ciências naturais. Com base em Whitney, um dos poucos autores citados no Curso, Saussure mostra que a língua é uma instituição social (CLg: 24). Ao estabelecer o princípio da arbitrariedade do signo, o que o mestre genebrino faz é desvelar que os signos são produtos dos seres humanos e, portanto, não são naturais, mas culturais. A ordem da língua não é um reflexo da ordem do mundo, mas uma construção das comunidades humanas. A língua está entre os fatos humanos (CLg: 23) e, por isso, a Linguística está classificada entre as ciências sociais. Sua definição de língua passa pelo falante, colocado no quadro das estruturas sociais: “ela é a parte social da linguagem” (CLg: 22); “A língua existe na coleti- vidade sob a forma duma soma de sinais depositados em cada cérebro, mais ou menos como um dicionário cujos exemplares, todos idênticos, fossem repartidos entre os indivíduos” (CLg: 27). Pelo funcionamento das faculdades receptiva e coordenativa, nos indiví- duos falantes, é que se formam as marcas que chegam a ser sensivelmente as mesmas em todos. [...] Se pudéssemos abarcar a totalidade das imagens verbais armazenadas em todos os indivíduos, atingiríamos o liame social que constitui a língua. (CLg: 21) Qual é a importância de Saussure hoje? É ainda o grande Calvino quem nos socorre: “um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer” (Calvino, 1998: 11). Num momento em que reaparecem, com força total, as teses biológicas para explicar os fatos humanos, num esvaziamento de sua dimensão social e cultural, Saussure é mais atual do que nunca. É necessário na resistência à desumanização das chamadas “ciências do homem”. O linguista genebrino é daqueles autores que “quanto mais pensamos conhecer, por ouvir dizer, mais se revelam novos, inesperados e inéditos” (Calvino, 1998: 12). Além disso, Saussure, como todo clássico, serve para entender quem somos e aonde chegamos (Calvino, 1998: 16). Ele é fundamental para compreender a Linguísti- ca moderna. Descobrimos nos clássicos aquilo que sempre ouvimos dizer, “mas desconhecíamos que ele(s) o dissera(m) primeiro” (Calvino, 1998: 12). 10 Saussure Este livro foi escrito por autores brasileiros e, portanto, testemunha a recep- ção de Saussure no Brasil e proclama sua atualidade para a Linguística de nosso país. Patenteia que Saussure não é um autor embolorado, mas que ele ainda tem coisas a nos ensinar. Não queremos fazer o papel dos escolastas medievais, que apenas comentavam os textos considerados definitivos, mas desejamos mostrar que o texto saussuriano ainda aponta caminhos, abre sendas e veredas, permite descortinar horizontes. Essa é nossa homenagem ao mestre em seu centenário. Com esse intuito, a seguir, fazemos algumas considerações sobre a atualidade dos estudos saussurianos com destaque para o estudo das fontes que integram o conjunto dos trabalhos de Saussure. Uma nota sobre o tratamento das fontes saussurianas na atualidade A primeira grande fonte de pesquisa quando se tem interesse no pensamento do dito “pai da Linguística” é o Curso de linguística geral, cuja autoria é atribuída a Saussure. Mas por trás dessa informação aparentemente neutra de uma crono- logia se impõe uma história que é, sem dúvida, um capítulo à parte da biografia da Linguística. Os editores do CLg, no “Prefácio” que escrevem, lembram que Saussure atendera a um convite para ministrar um curso de Linguística geral entre os anos 1907, 1908/1909 e 1910/1911 na Universidade de Genebra. A assistência não era formada por mais que alguns poucos ouvintes. Essa diminuta plateia foi, no entanto, suficiente para dar a conhecer que ali se testemunhava uma verdadeira revolução no campo da Linguística. Por isso, dois grandes linguistas – Albert Sechehaye (1870-1946) e Charles Bally (1965-1947) – recolheram as anotações tomadas pelos alunos dos cursos, para, a partir delas, reunir um material que fosse a síntese dos três anos de curso. Narrada assim essa história, não fazemos reconhecimento justo aos editores, uma vez que não evidenciamos as inúmeras dificuldades do empreendimento que é reunir em texto escrito um conjunto complexo de ideias, tendo por base apenas anotações de terceiros, já que não se sabia da existência de muitas outras fontes. Sobre isso, assim se manifestam os editores no “Prefácio à primeira edição” do CLg, Por que ainda ler Saussure? 11 Após a morte do mestre, esperávamos encontrar-lhe nos manuscritos, cortes- mente postos à nossa disposição por Mme de Saussure, a imagem fiel ou pelo menos suficientemente fiel de suas geniais lições; entrevíamos a possibilidade de uma publicação fundada num simples arranjo de anotações pessoais de Ferdinand de Saussure, combinadas com as notas dos estudantes. Grande foi a nossa decepção; não encontramos nada ou quase nada que correspondesse aos cadernos dos discípulos. (CLg: I) A situação se torna mais complexa na medida em que sabemos que Charles Bally e Albert Sechehaye praticamente não frequentaram os cursos ministrados por Saussure. Dizem eles: [...] obrigações profissionais nos haviam impedido quase completamente de nos aproveitarmos de seus derradeiros ensinamentos, que assinalam, na carreira de Ferdinand de Saussure, uma etapa tão brilhante quanto aquela, já longínqua, em que tinha aparecido a Mémoire sur les voyalles. (CLg: II) Bally e Sechehaye informam que utilizaram em seu empreendimento os cadernos de Louis Caille, Léopold Gautier, Paul Regard e Albert Riedlinger, para reconstituir o conteúdo dos dois primeiros cursos, e os cadernos de Mme Sechehaye, George Dégallier e Francis Joseph, para o terceiro curso, além de algumas notas de Louis Brütsch. Ora, a decisão de escrever algo a partir das anotações, embora tenha sido uma alternativa que se impunha, não forneceu o método a ser seguido para a organização editorial. “Que iríamos fazer desse material?” (CLg: II), perguntam os editores. Eis a resposta: Foi-nos sugerido que reproduzíssemos fielmente certos trechos particular- mente originais; tal ideia nos agradou, a princípio, mas logo se evidenciou que prejudicaria o pensamento de nosso mestre se apresentássemos apenas fragmentos de uma construção cujo valor só aparece no conjunto. (CLg: III) E a decisão – de impacto decisivo nas ciências humanas e sociais, como sabemos hoje em dia – é assim apresentada: Decidimo-nos por uma solução mais audaciosa, mas também, acreditamos, mais racional: tentar uma reconstituição, uma síntese, com base no terceiro curso, utilizando todos os materiais de que dispúnhamos, inclusive as notas pessoais de F. de Saussure. (CLg: III) 12 Saussure Os editores sempre tiveram consciência da envergadura do feito: “Saberá a crítica distinguir entre o mestre e seus intérpretes? Ficar-lhe-íamos gratos se dirigisse contra nós os golpes com que seria injusto oprimir uma memória que nos é querida” (CLg: Iv). Esse dispositivo da gênese do CLg não é apenas uma curiosidade a mais. O fato de o livro reconstituir três cursos ministrados oralmente, tomando-se por base anotações de alunos, e o fato de o texto do livro ter sido estabelecido por editores que não foram espectadores desses cursos são indicativos da complexidade que constitui o texto final. Reconhecer essa gênese é determinante para o tipo de leitura que se pode imprimir ao livro e para o entendimento das relações do CLg com as demais fontes saussurianas. Como é fácil supor, então, a organização do livro obedece ao entendimento que se teve do material considerado e está diretamente ligado aos parâmetros da época do que, no fim do século xIx e início do xx, era considerado o discurso científico. É assim que, hoje em dia, há muitas e não coincidentes interpretações do livro. E foi com essa versão dos fatos dada por Bally e Sechehaye, ou melhor, com a versão dada ao que se entendeu como sendo o raciocínio de Saussure, que a Linguística se instituiu solidamente já na metade do século xx. Tudo começa a mudar quando, em 1957, Robert Godel publica sua tese, Les sources manuscrites du Cours de linguistique générale de F. de Saussure, que faz um levantamento profundo das fontes utilizadas para a organização do CLg. Tem início, então, um período (conturbado) de descobertas que inclui desde outros ma- nuscritos de alunos até manuscritos do próprio Saussure. Em 1958, reaparecem os cadernos de notas de Émile Constantin, os mais completos já encontrados até hoje; em 1967/1968, é publicada a edição crítica de Rudolf Engler, em dois tomos, do Cours de linguistique générale, associada às notas dos estudantes; em 1971, é publi- cado, por Jean Starobinski, Les mots sous les mots: les anagrammes de Ferdinand de Saussure, que reúne os manuscritos sobre os anagramas; em 1996, é descoberto um manuscrito na residência da família de Saussure editado por Simon Bouquet e Rudolf Engler e presente na publicação de 2002 dos Écrits de linguistique générale. A partir de tudo o que dissemos até aqui, é fácil deduzir que falar sobre Ferdinand de Saussure, hoje em dia, é tarefa complexa. E tal complexidade decorre, em grande medida, do vasto número de fontes disponíveis para pesquisa que incluem desde o próprio Curso de linguística geral até obras escritas e publicadas por Ferdinand de Saussure; fontes manuscritas de Saussure (publicadas ou não); cartas de Saussure (pessoais e profissionais); anotações de alunos de Saussure; cartas de alunos; edições críticas do CLg; Anagramas (publicados ou não), entre outras. Por que ainda ler Saussure? 13 Diante desse panorama, uma conclusão se impõe: é necessário instaurar um ponto de vista a partir do qual se torna possível selecionar um corpus de pesquisa. Não há como falar em Saussure, na atualidade, sem fazer recortes na infinidade de textos que integram o que poderíamos chamar de corpus saussuriano. Do corpus saussuriano – entendido como um conjunto de documentos formado por fontes de natureza heterogênea – recorta-se, com base em objetivos próprios, um corpus de pesquisa em função dos objetivos que se tem. Falemos um pouco a respeito das fontes que integrariam o que estamos chamando de corpus saussuriano. Há, inicialmente, os difíceis trabalhos publicados, em vida, por Ferdinand de Saussure sobre gramática comparada e indo-europeu que estão presentes no Recueil des publications scientifiques de Ferdinand de Saussure organizado por Charles Bally e Léopold Gautier.2 Nessa organização, encontramos, além de cerca de ses- senta textos sobre temas de grande erudição linguística, os famosos Mémoire sur le système primitif des voyelles dans les langues indo-européennes, de 1878, e De l’emploi du génitif absolu en sanscrit, tese defendida em 1880 e publicada em 1881. Também há os dois volumes da complexa edição crítica de Rudolf Engler. No primeiro volume, estão dispostas em seis colunas as fontes encontradas por Engler. Na primeira coluna, encontra-se o texto do CLg tal como publicado em 1916, com as modificações introduzidas na segunda (de 1922) e na terceira (de 1931) edições. As colunas 2, 3, 4 e 5 são compostas das notas dos alunos de Saussure no primeiro curso (1907), no segundo curso (1908-1909) e no terceiro curso (1910-1911).3 A sexta coluna traz notas pessoais de Saussure. No segundo tomo, como bem diz Engler no “Avant-propos”, à página Ix, encontramos “um apêndice à edição sinótica do CLg [a do tomo 1] e de suas fontes”. Nele, há as notas de próprio punho de Saussure, boa parte delas reeditadas, recentemente, por Simon Bouquet e Rudolf Engler nos Escritos de linguística geral, sob a denominação de “Antigos documentos”. Não menos importante é o trabalho de Robert Godel, Les sources manus- crites du Cours de linguistique générale de F. de Saussure, que apresenta um sem-número de informações oriundas de fontes distintas: notas de Ferdinand de Saussure, cadernos dos estudantes que frequentaram os Cursos de linguística geral, cadernos de estudantes que frequentaram outros cursos, outros documentos manuscritos (cartas e entrevistas de Saussure). Há, ainda, uma infinidade de cartas, notas e manuscritos4 publicados nos Cahiers Ferdinand de Saussure.5 Há os trabalhos publicados no Bulletin de la societé linguistique de Paris e no Annuaire de l’Ecole Pratique des Hautes Etudes. 14 Saussure Há, também, os “Documents” publicados por Claudia Mejía Quijano, em Le cours d’une vie: portrait diacronique de Ferdinand de Saussure (2008). Não podemos esquecer que os exegetas saussurianos muito se dedicaram para estabelecer novos textos a partir das descobertas de fontes. São exemplos: o Premier cours de linguistique générale / First Course in general Linguistics (1907): d’après les cahiers d’Albert Riedlinger (ed. e trad. E. Komatsu e G. Wolf); o Deuxième cours de linguistique générale / Second Course in general Linguistics (1908-1909): d’après les cahiers d’Albert Riedlinger & Charles Patois (ed. e trad. E. Komatsu e G. Wolf); o Troisième cours de linguistique générale / Third Course in general Linguistics (1910-1911): d’après les Cahiers d’Emile Constantin (ed. e trad. E. Komatsu e R. Harris). Há, também, o Cours de linguistique générale, deuxième cours (1908-1909): d’aprés les notes de Bouchardy, gautier et Riedlinger. Mais recentemente temos os trabalhos de Pia Marchese: Phonétique: il ma- nuscritto di Havard e Théorie des sonantes,6 os “novos documentos” reunidos por Bouquet e Engler nos Escritos de linguística geral (ELg) e os trabalhos reunidos por Simon Bouquet na revista L’Herne Saussure.7 E se o nosso pesquisador inte- ressado em Saussure continuasse a sua busca encontraria, ainda, os inquietantes anagramas, publicados ou não,8 entre muitos outros trabalhos. A magnitude do corpus saussuriano é argumento inconteste de nossa tese relativa a trabalhos com fontes documentárias complexas, qual seja: eleger um corpus de pesquisa do conjunto que é o corpus saussuriano com vistas a objetivos específicos é condição sine qua non para o estudo de Saussure hoje. E qual critério adotar para a escolha do corpus de pesquisa? A questão não é facilmente respondida. vejamos o porquê. A seleção do corpus de pesquisa Sabe-se que há, atualmente, larga discussão a respeito do que poderia, ou não, ser considerado “o verdadeiro”9 Saussure. Questiona-se se o inacabado de manuscritos estabelecidos em texto para fins editorias teria mais autoridade para representar o pensamento de Saussure do que a “reconstituição” levada a cabo por Bally e Sechehaye. Questiona-se se manuscritos descobertos a posteriori a uma edição com autoria atribuída – cujo efeito fundador do campo da Linguística é evidente – teriam o poder de refundar a história de uma ciência. Simon Bouquet, em um artigo polêmico,10 publicado em 1999, questiona a expressão “retorno a Saussure”. Bouquet quer saber se se trata de um retorno Por que ainda ler Saussure? 15 às ideias que estão contidas no CLg ou se trata de um retorno aos textos iné- ditos de Saussure. Ele considera que, atualmente, no domínio da Linguística geral, o conjunto dos textos saussurianos – o que Bouquet chama de o corpus disponível – pode ser dividido em três categorias: a) a dos textos efetivamente autografados por Saussure; b) as notas dos estudantes (em especial as referentes aos três Cursos de linguística geral); c) o Curso de linguística geral redigido por Bally e Sechehaye. Parece-nos que o critério adotado por Bouquet para fazer essa divisão é o de uma suposta autenticidade dos textos. A essa divisão Bouquet acrescenta “dois paradigmas editoriais”: a) o pa- radigma do Curso de linguística geral como obra (que constrói e legitima o pensamento de Saussure na dimensão de uma epistemologia programática da Linguística); b) o paradigma das lições orais e autógrafas de Saussure como obra (que associa à epistemologia programática da Linguística uma filosofia da ciência e uma filosofia da linguagem). Rossitza Kyheng, em um texto publicado em 2007,11 textualmente influen- ciado pela perspectiva de Simon Bouquet, recorre a uma distinção entre corpus e arquivo ao considerar que é um imperativo hoje em dia distinguir os diversos graus de autenticidade no conjunto do corpus saussuriano e em relação ao arqui- vo disponível. Para Kyheng, o arquivo saussuriano é composto por um conjunto de documentos historicamente ligados à personalidade de Saussure. Segundo a autora, esse arquivo é aberto e constituído por textos de Saussure, pelo CLg, por cartas endereçadas a Saussure, por documentos de outros autores. O corpus, por sua vez, é entendido como o conjunto de textos de Ferdinand de Saussure (obras, artigos, notas, rascunhos, lições, etc.), e nada mais que os textos cujo autor le- gítimo seja Saussure mesmo. Kyheng retoma a divisão tripartida feita por Simon Bouquet para, de um lado, examinar a possibilidade de uma estruturação interna do corpus saussuriano segundo uma gradação de autenticidade dos textos e, de outro lado, para provar que o CLg não pertence ao corpus, mas ao arquivo. Isso a leva a criar uma classifi- cação: a) “escritos autênticos” constituídos por textos autógrafos de Ferdinand de Saussure e divididos em categoria 1 (textos cuja versão definitiva foi estabelecida por Saussure e publicados em vida) e categoria 2 (textos não publicados em vida pelo autor); b) “escritos quase autênticos” constituídos por textos, de natureza oral ou escrita, reportados pelos interlocutores de Saussure divididos em categoria 3 (textos que receberam muitas versões de transcrições pelos leitores/ouvintes de Saussure) e em categoria 4 (textos que receberam apenas uma versão de transcrição de um leitor/ouvinte efetivo); c) “escritos pseudoautênticos” constituídos pelo CLg. 16 Saussure O texto de Rossitza Kyheng é mais complexo do que nossa apresentação dei- xa supor. A autora lista ainda as fontes que, segundo ela, pertenceriam a cada uma das categorias além de propor uma série de “princípios interpretativos” do corpus saussuriano. Porém, a lembrança desse texto e do texto de Bouquet cumpre, aqui, o papel de ilustrar o que dizem alguns autores que se preocupam em interpretar Saussure a partir de uma seleção de fontes que considera o critério de autenticidade. Outra possibilidade de entendimento encontramos, por exemplo, em Trabant (2005). Conforme o autor, em um texto cuja primeira parte do título já indica o viés assumido – “Faut-il défendre Saussure contre ses amateurs? Notes item sur l’épistemologie saussurienne” (“É preciso defender Saussure de seus admiradores? Notas item sobre a epistemologia saussuriana”) –,12 é verdade que encontramos, nas antigas notas de Saussure e nos atuais escritos descobertos, um pensamento rico e atormentado sobre a linguagem e a Linguística. Porém, a discussão em torno de um pensamento “autêntico” de Saussure, que possa estar ligado a essas fontes, implica uma tomada ética de posição. Trabant diz que há diferentes possibilidades de compor- tamento do pesquisador frente a essas fontes consideradas por alguns como sendo “a verdade” de Saussure: a) pode-se ignorar o “verdadeiro” Saussure e restringir-se ao estudo apenas do Curso; b) pode-se levar em conta o “verdadeiro” e fazer dele ou um uso eufórico – como informação etimológica que enriquece a leitura do Curso – ou um uso disfórico – como informação etimológica que vai contra o Curso –; c) pode- se apenas ler o “verdadeiro” Saussure, sem levar em consideração o Curso. Nesse último caso, o Curso é realmente tratado como “um erro, uma catástrofe intelectual e se leem apenas os Escritos de linguística geral” (Trabant, 2005: 121). Como podemos notar, o tema é controvertido e encerra muitas questões, em sua maioria, divergentes. E nós, como vemos essa questão? Como o leitor pode ver anteriormente, fazemos uma diferença entre corpus saussuriano e corpus de pesquisa. Tal divisão não obedece a critério de autenticidade das fontes. O corpus saussuriano é o conjunto de documentos constituído por fontes de natureza heterogênea cuja existência não parece ser negada por nenhuma das partes que integram a arena da polêmica. Kyheng chama-o de arquivo. A denominação para nós é ponto de somenos importância. Interessa-nos apenas resguardar a existência de um conjunto heterogêneo de fontes. O corpus de pesquisa é o recorte que se faz do conjunto, tendo em vista os objetivos da pesquisa. Foi assim que procederam todos os autores que compõem este livro. Cada um escolheu do conjunto das fontes aquelas que melhor informam sobre o tema que está em exame.

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Tudo começa a mudar quando, em 1957, Robert Godel publica sua tese, textos que integram o que poderíamos chamar de corpus saussuriano.
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