Perspectivas Fernando Henrique Cardoso: idéias e atuação política Fernando Henrique Cardoso Eduardo P. Graeff (org.) SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros CARDOSO, FH. GRAEFF, EP., org. Perspectivas: Fernando Henrique Cardoso: idéias e atuação política [online]. Rio de Janeiro: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, 2008, 113p. ISBN: 978-85- 99662-67-0. Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>. All the contents of this chapter, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non Commercial-ShareAlike 3.0 Unported. Todo o conteúdo deste capítulo, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição - Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada. Todo el contenido de este capítulo, excepto donde se indique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported. PERSPECTIVAS: FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Idéias e atuação política Organização: Eduardo P. Graeff Fernando Henrique Cardoso Organização: Eduardo P. Graeff Perspectivas: Fernando Henrique Cardoso Idéias e atuação política Rio de Janeiro 2008 Esta publicação é parte da Biblioteca Virtual de Ciências Humanas do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais — www.bvce.org Copyright © 2008, Fernando Henrique Cardoso Copyright © 2008 desta edição on-line: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais Ano da última edição: 1983 Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer meio de comunicação para uso comercial sem a permissão escrita dos proprietários dos direitos autorais. A publicação ou partes dela podem ser reproduzidas para propósito não-comercial na medida em que a origem da publicação, assim como seus autores, seja reconhecida. ISBN 978-85-99662-67-0 Centro Edelstein de Pesquisas Sociais www.centroedelstein.org.br Rua Visconde de Pirajá, 330/1205 Ipanema — Rio de Janeiro/RJ CEP: 22410-000. Brasil Contato: [email protected] ÍNDICE Introdução 1 I — 1978 A candidatura 3 Perspectivas da oposição 4 A saída civil 5 Medindo forças 6 Esquerda, “Beautiful People” 15 II — O intelectual e a política Um tipo de ofício 17 Coisas que os livros não ensinam 20 Duas vocações 22 III — O Brasil não é uma ilha A ciranda do desenvolvimento importado 25 Ventos do norte 29 Diálogo de surdos 31 A crueldade da história 33 São Bernardo e Gdansk 34 IV — O ABC da participação Os trabalhadores e a democracia 39 Ainda a Greve 40 Arbitragem ao Arbítrio 42 São Bernardo “Rides Again” 45 O Pior Cego 46 Crescimento e Pobreza 47 V — A Sociedade de Massas Cem Anos Depois 49 Maio de 1968: Não Passou do Começo? 50 Universidade e Sociedade 52 Por Uma Nova Utopia 59 A Política do Cotidiano 62 Elis Regina 64 O Sentimento do Novo 65 VI — Lenta, Gradual e Insegura O Passo Político 66 Democracia Lenta e Insegura 67 Partido dos Trabalhadores 69 Os Rumos da Oposição (1) 71 I Os Rumos da Oposição (2) 72 A Lei e a Vida 74 Sem Ilusões 76 Nem Tudo saiu como manda o Figurino 78 O Embrulho de Junho 80 Ética e Política 80 Temos Rei? 81 VII — São Paulo e a Política São Paulo e a Política 83 VIII – 1982 Fraude Patriótica 87 Perigo à Vista 87 Frente Eleitoral de Oposição 88 Populismo Eletrônico 89 O Sol e a Peneira 90 A Volta por Cima 91 Lula Governador? 92 Voto de Oposição 92 Balanço Eleitoral 93 A Responsabilidade da Vitória 98 IX — Crise e Democracia Crise e Democracia 100 A Dívida e as Verdades 101 O Presidente e a Crítica 101 Fase Constituinte 102 Repensar o Estado 104 No Limite da Ruptura 106 A Hora da Negociação 109 II INTRODUÇÃO1 Existem circunstâncias nas quais as margens de escolha diminuem drasticamente, tanto na vida pessoal como na vida pública. Não pude escolher entre as vocações de político e de cientista. As contingências arrancaram-me das salas de aula e do País, colhido pelo torvelinho das grandes transformações políticas de 1964. Quando houve escolha, voltei — em 1968 — não só à terra como à Universidade. Tampouco naquela ocasião pude seguir o caminho escolhido: as artimanhas do arbítrio desfizeram uma vez mais minhas ilusões de rotina acadêmica, impondo-me aposentadoria compulsória em 1969. Recusei, desde então, o exílio voluntário. Fiz, por certo, compromissos. Dividi-me entre o Brasil e outras terras que acolheram com generosidade meu trabalho. Em 1978 escolhi. Não tivera, até então, partido político. Limitara minha vida pública à ação política e cultural sem compromissos partidários, embora me sentisse claramente ligado a um dos campos da luta. E mesmo quando me juntei ao MDB, vim no bojo de um movimento que transcendia à militância estrita num partido. Incorporei-me à vida partidária sob a pressão e a emoção de um momento da História brasileira no qual se insinuava a presença de forças sociais ainda incipientes, mas que falavam forte o nome da Democracia e que a qualificavam como condição desejável para alcançar a necessária reforma social. Nasciam, então, os grandes movimentos herdeiros da resistência democrática dos anos mais duros — os da tortura, os da censura, os do exílio — que traziam o sopro generoso da vontade de incorporar na vida pública parte dos setores silenciados da sociedade. Remexia-se a liderança sindical (setores significativos da qual me apoiaram em São Paulo); os artistas sacudiam o torpor, ávidos de participação; os intelectuais voltavam à política; a igreja reafirmava sua opção preferencial pelos pobres; articulavam-se os empresários mais dinâmicos. Havia um reencontro entre movimento social e vida partidária. A um número expressivo de eleitores e de militantes novatos — vindos deste despertar — devo não apenas a eleição, mas o encorajamento e o aprendizado. Aprendizado e estímulo que devo também aos líderes provados do antigo MDB, como Ulisses Guimarães, e eleição cuja parte maior coube, em 1978, àquele a quem sucedo e com quem o PMDB venceu novamente agora, e nele deposita enormes esperanças: André Franco Montoro. Sei que muitos companheiros se distribuem hoje por outros partidos. Mas num certo sentido, estamos no mesmo lado: o dos que querem, de fato, mudar o Brasil. E com a única motivação e vontade de melhorá- lo para que nós mesmos sejamos melhores. Sei, e o digo sem reservas, que esta vontade não é monopólio de ninguém. Digo-o com sinceridade: assim como não aceito a tese de que a abertura política foi outorgada, não desejo negar a motivação generosa dos que, do outro lado da brincadeira, estendem pontes. Ocorre, entretanto, Srs. Senadores, que tampouco nesta matéria há muita escolha. Não farei hoje o discurso que gostaria de fazer, de congraçamento. Não estréio nesta Casa com a galhardia que só a certeza do amanhã melhor permite. Não me é dado pretender abrir horizontes nos quais se vislumbre, além da crítica, a proposta e a conciliação. Tentarei, por certo, tatear caminhos alternativos. Mas não poderei fazê-lo sine ira et studio. Ao contrário, o momento exige posição. Exige, para além da objetividade, paixão. Ira et studium, requisitos da política, na visão weberiana. E exige também responsabilidade pessoal. Falarei, portanto, como homem de partido; como Senador por São Paulo; mas sem abdicar de ideais pessoais. O momento exige ainda o senso das proporções. A recusa apaixonada de uma política que creio equivocada, no plano social e no econômico, não prescinde da análise racional de alternativas e do senso de responsabilidade de quem sabe que as soluções não são fáceis, que a proposta política de quebra do 1 Do discurso proferido no Senado na sessão do dia 27 de abril de 1983. 1 imobilismo requer, na circunstância brasileira, convição, mas também capacidade de convencimento, e que qualquer pretensão do exclusivismo na travessia rumo ao amanhã democrático e próspero é vã e temerária. Abusando da mesma fonte, desculpável tentação para quem se situa entre duas vocações — a da ciência e a da política — permito-me citar: “A política é como a perfuração lenta de tábuas duras. Exige tanto paixão como perspectiva. Certamente, toda experiência histórica confirma a verdade: que o homem não teria alcançado o possível se repetidas vezes não tivesse tentado o impossível” (Max Weber, “A Política como vocação”). Com esta perspectiva, recuso a disjuntiva entre a afirmação absoluta de valores últimos (e os meus, como os de tantos brasileiros, são simples e diretos: igualdade social, participação democrática e liberdade efetiva), recuso a disjuntiva entre os valores últimos e a noção de que o político opera no campo concreto da violência, do cálculo racional na utilização dos meios e, portanto, do risco e do erro responsáveis. Creio que há espaço para a convergência entre a crença e a ação eficaz (...). 2 I 1978 A CANDIDATURA2 Como você vê a atual situação política no Brasil? - Eu acho que o regime autoritário está chegando ao fim; ele se exauriu social e economicamente a partir da crise do petróleo e da crise de uma economia de mercado que cresceu desordenadamente e hoje se encontra “sobregirada”. Tudo isso se agrava pela dependência estrutural da economia, que obriga a importar equipamentos e insumos básicos, sobrecarregando a balança de pagamentos; quando se contraem as exportações ou o seu valor, a dívida externa cresce em progressão geométrica para financiar os instrumentos internos. - Tudo isso rompeu a unidade do bloco governante. As classes médias, a Igreja e os intelectuais e estudantes, principalmente, reorganizaram-se e começaram a pressionar. Mais recentemente os líderes sindicais e o movimento operário ampliaram esta pressão. Diante disso — e considerando a inflação e a dívida externa — os antigos pilares do regime se abalaram. Inclusive militares. Qual é o sentido de sua candidatura ao Senado? - Politicamente o MDB é uma frente oposicionista que, a partir das eleições de 1974, nas quais derrotou o governo, passou a ter apoio popular e a significar um canal político de protesto. Na conjuntura atual eu creio que esta frente deve manter-se unida e, ao mesmo tempo, deve abrigar as oposições extraparlamentares (os movimentos de base da Igreja, a luta pela anistia, as lutas dos profissionais liberais, dos advogados sobretudo, pela volta do Estado de Direito, etc.) e ganhar maior nitidez interna. Eu estou lutando para conseguir uma sub-legenda no MDB, ou seja, haverá dois ou três candidatos ao Senado por cada partido, cujos votos seriam para a legenda; o candidato mais votado do partido que somar o maior número de votos será o eleito. Se conseguirmos isso, dentro do MDB, será possível agrupar nessa sub- legenda os candidatos à Câmara Federal e à Assembléia Estadual que forem mais conseqüentes. Não haverá, portanto, divisão alguma da frente oposicionista; ao contrário, ela se ampliará, dando uma saída eleitoral para as oposições extrapartidárias. Há rumores na imprensa sobre sua participação na criação de um futuro PS. Qual é o fundamento disso? - Hoje se especula muito no Brasil sobre a reorganização do quadro partidário. Eu acho que isso é salutar, desde que não haja precipitação nem ruptura da frente oposicionista unida em torno do MDB. Primeiro as eleições, a volta ao Estado de Direito; depois os novos partidos. - Quanto ao PS estritamente, eu acho que é cedo para avaliar a forma que os agrupamentos políticos populares irão adotar. Fala-se também no PTB. Eu diria que o importante será dispormos de organizações políticas que sejam populares, democráticas e nacionais (mas no sentido de povo e não de Estado-forte). Não vejo sentido na criação de partidos ideológicos desligados da massa e apoiados pela universidade. Se é a esse tipo de partido que o noticiário se refere denominando-o PS, ele não tem meu apoio. Tampouco creio que um partido puramente eleitoral, ainda que de massas e que busque identificação com o populismo, corresponda às necessidades presentes, pelo menos de São Paulo, onde existe a maior concentração de trabalhadores do país. Sou favorável a partidos que expressem as preferências dos trabalhadores e dos assalariados, sem personalismos, e que encorajem um horizonte de opções socialistas, mas na prática e não abstratamente. - Ora, um partido deste tipo vai depender muito mais da força social dos trabalhadores e assalariados, de suas lideranças legítimas, da pressão das comunidades de base da periferia das grandes cidades, do que de 2 Da entrevista à Revista de Política. México, maio de 1978. 3 um punhado de intelectuais ou de políticos profissionais. Estes são necessários, mas deverão unir-se à dinâmica popular. Por isso, só no futuro poderei ver com mais clareza que tipo de partidos surgirão e poderão ter meu apoio. PERSPECTIVAS DA OPOSIÇÃO3 (...) É óbvio que a ampliação da frente emedebista se fará para alcançar o objetivo número um das oposições: estado de direito, anistia, Constituinte, liberdades fundamentais. Entretanto, pelo menos para uma parte significativa das oposições, isto já não é suficiente. Será preciso não só desmistificar o jogo político atual e restabelecer a decência e a semântica (basta dizer que a escolha monárquica do presidente teria recaído, a crer em certos comentaristas, num general-candidato que seria “de centroesquerda”...) mas também propor algo novo. Eu acho que a maioria da população está cansada de farsa. O palavreado sobre as convenções da Arena, sobre a seleção dos candidatos a candidato aos governos estaduais, sobre os biônicos, etc. produz enjôo de estômago nas pessoas de boa fé. E acho também que é preciso dar o nome aos bois: eu sou favorável, sem subterfúgios, a um programa político para o Brasil que favoreça políticas mais igualitárias (na distribuição da renda, na divisão do bolo entre as regiões do país, no estilo de produção industrial que será implantado, etc.) e' que assegure maior participação popular nas decisões e no controle das políticas. Isso de modo amplo: não só — embora a partir daí — através de eleições diretas e da democratização interna dos partidos, mas também na discussão pública das questões nacionais. Tanto, por exemplo, na questão da localização de um aeroporto como o de Caucaia, quanto na questão atômica (pois sem que se esclareça melhor a política oficial será difícil mais tarde, quando for necessário, contar com o povo para sustentar essa política), na questão dos níveis salariais, nas questões educacionais, nas questões urbanas, etc., etc. E sou favorável também a uma política de defesa dos interesses nacionais que não confunda a nação com o Estado e que dê preeminência às aspirações populares na valorização da política nacional. Só a partir deste ângulo se completa a discussão sobre a independência econômica e o fortalecimento do Estado-nação. Acho que já é mais do que hora de as tendências populares e substantivamente democráticas do MDB darem o passo necessário para — sem quebrar a grande frente de oposição política ao estado de exceção — ganharem o apoio estável das camadas de assalariados em sentido amplo. Ou bem as oposições políticas se reencontram com os movimentos da base da sociedade (do nascente impulso sindical, das comunidades de base, das associações educacionais, dos movimentos das mulheres e dos negros, das lutas da periferia), ou seu empenho parlamentar pela reconstitucionalização corre o risco de ficar isolado e será flanqueado pelos “diálogos”, “salvaguardas” e outros expedientes que os fabricadores da política de “centro-esquerda” do regime estão preparando. Já não basta, para setores importantes das oposições, a denúncia das injustiças sociais e o clamor por melhores salários. Será preciso que a oposição se junte, na prática, à articulação das campanhas que a base da sociedade, especialmente os jovens e os homens da periferia, começam a encetar contra essas injustiças e por melhores condições de vida. E não me refiro apenas aos movimentos populares. Também os da classe média devem ser incluídos. Para mim o “partido dos assalariados” deve englobar as lutas do professorado, do funcionalismo público, dos médicos-empregados, dos jornalistas, enfim, de todos quantos sentem em seus bolsos e em suas almas o peso de uma sociedade injusta, desigual e cujos centros de decisão estão sempre afastados daqueles que vão sofrer as conseqüências das políticas adotadas pelas elites de poder, onde quer que se situem (nas fábricas, nas escolas, nos hospitais, na burocracia, etc.). Tenho insistido há muito e volto a fazê-lo: não se trata apenas de propor a democratização do regime; é preciso lutar pela democratização da sociedade. E este processo é abrangente: ele vai desde a relação na família e na escola até à relação no trabalho. Democratizar substantivamente não quer dizer declinar do princípio da direção. Quer dizer que a ordem há de ser explicitada em seus fundamentos e assegurada pelo conhecimento das necessidades e pela força que só a deliberação assegura. Deliberar não quer dizer impor a partir da vontade cega (como na escolha do sucessor do presidente), mas quer dizer analisar, escolher o 3 Escrito em fevereiro de 1975. 4