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Pã e o pesadelo PDF

120 Pages·2015·7.161 MB·Portuguese
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- PAEO PESADELO James HilIman ~ PAUlUS "O grande deus Pã está morto!" Esse grito supostamen te ressoou por todo o mundo antigo, anunciando o fim do paganismo, com seus mitos e deuses, e a morte da natureza. Este excelente livro traz Pã de volta à vida, a partir do famoso dito de C. G. Jung de que os deuses se tornaram nossas enfermidades. Capítulos sobre o pânico nOlumo, masturbação, estupro e ninfolepsia, instinto e sincl"O nicidade, e as amantes de Pã - Eco, Sírinx, Selene e as Musas - mostram o deus bode atuando e brincando nos ímpelos obscuros e paixões criativas de nossas vidas. Os illsiglas de 1-:1 illman mostram a figura arquetípica nas prof·undezas da natureza e a psicologia arquetípica como método de revelação. Pii e o pesadelo (que inclui uma tradução completa de Efialtes, o magistral tratado mítico -patológico que Wilhelm Heinrich Roscher escreveu no século XlX sobre Pã e os demônios da noite) é o estudo mais radical já feito sobre esse deus. JAMES HILLMAN (1926-2011) foi um psicólogo analista norte-amedcano que se definia como analista junguiano. Radicaliz.:"l.ndo a psicologia junguiana ou analftica, sua psicologia ficou conhecida como arquelípica. Didgiu pOl" vários anos O Instituto Cad Custav Jung, em Zul"ique. Foi pl"Of-essor convidado nas Universidades de Yale, Halvard, Princeton, Syracuse e Dallas, além de editor (Spring Publications, lnc., Putnam, Connecticul). Dentre suas obras, PAULUS já publicou O livro do pller - EIl$aios sobre o arquétipo do Pue,· Aetcn1us (1999) e Uma busca illIerior em psicologia e religitio (1998). Coleção AMOR E PSIQUE Opuer JAMES HILLMAN • O livra do Puer, ensaios sobre o arquétipo do O feminino Puer Aeternus, J. Hilman • As deusas e a mulher, J. S. Bolen • Puer aeternus, M.-L. von Franz • A prostituta sagrada, N. Q. Corbett Relacionamentos e parcerias • O medo do feminino, E. Neumann • Os mistérios da mulher, Esther Harding • Eros e pathos, A. Carotenuto • Liderança feminina: Gestão, psicologia Jun • Os parceiros invisíveis: O masculino e o femi guiana, espiritualidade e a jornada global nino, J. A. Sanford através do purgatório, Karin Jironet Sombra o masculino • Mal, o lado sombrio da realidade, J. A. • No meio da vida: Uma perspectiva Junguia- Sanford na, • Os pantanais da alma, J. Hollis M.Stein O autoconhecimento e a dimensão social • Os deuses e o homem, J. S. Bolen PÃ E O PESADELO • Sob a sombra de Saturno, J. Hollis • Meditações sobre os 22 arcanos maiores do tarõ, anõnimo Psicologia e religião Encontros de psicologia analítica, Maria Elci • Uma busca interior em psicologia e religião, Spaccaquerche (org.) J.Hillman Psicoterapia, imagens Letras imaginativas: breves ensaios de psico e técnicas psicoterápicas logia arquetípica, Marcus Quintaes Psiquiatria junguiana, H. K. Fierz Sonhos O mundo secreto dos desenhos: uma abor dagem junguiana da cura pela arte, G. M. • Aprendendo com os sonhos, M. R. Gallbach Furth • Breve curso sobre os sonhos, R. Bosnak O abuso do poder na psicoterapia e na me • Os sonhos e a cura da alma, J. A. Sanford dicina, serviço social, sacerdócio e magisté • Comoentenderossonhos, Mary Ann Mattoon rio, A. G.-Craig • Sonhos na psicologia junguiana - novas • Saudades do Paraíso: perspectivas psicoló perspectivas no contexto brasileiro, Marion gicas de um arquétipo, M. Jacobi Rauscher Gallbach / Durval Luiz de Faria / • O mistério da Coniunctio: imagem alquími Laura Villares de Freitas (org.) ca da individualização, E. F. Edinger Pã e o pesadelo, J. Hillman • Psicoterapia junguiana e a pesquisa con Maturidade e Envelhecimento temporânea com crianças: Padrões básicos de intercâmbio emocional, ,Mario Jacoby • A passagem do meio, James Hollis • Medicina arquetípica, Alfred J. Ziegler • No meio da vida, M. Stein Corpo e a dimensão fisiopsíquica Contos de fada e histórias mitológicas • Dionísio no exílio: Sobre a repressão da • A individuação nos contos de fada, Marie emoção -Louise von Franz e do corpo, R. L.-Pedraza • Ainterpretaçãodos contosdefada, Marie-Loui • Presença no corpo - Eutonia e psicologia se von Franz analítica, Marcel Gaumond • Mitologemas:encarnaçõesdomundoinvisível, J. Hollis Outros • O Gato, M.-L. von Franz • O mundo interior do trauma: defesas arque O que conta o conto?, Jette Bonaventure típicas do espírito pessoal, Donald Kalsched O que conta o conto? (II) - Variações sobre o • A família em foco -sob as lentes do cinema, tema mulher, Jette Bonaventure M.R. Reis / M. E. Spaccaquerche PAULUS Título original: Pan and the Nightmare INTRODUÇÃO À COLEÇÃO "An Essay on Pan": copyright © James Hillman 1972 AMOR E PSIQUE "Ephialtes": copyright © Spring Publications 1972 Tradução: Carla C. Pilon Daniel F. Yago Direção editorial: Claudiano Avelino dos Santos Coordenação editorial: Ora. Maria Elci Spaccaquerche Assistente editorial: Jacqueline Mendes Fontes Coordenador de revisão: Tiago José Risi Leme Revisão: Tarsila Doná Caio Pereira Diagramação: Ana Lúcia Perfoncio Capa: Marcelo Campanhã Impressão e acabamento: PAULUS N a busca de sua alma e do sentido de sua vida, o homem descobriu novos caminhos que o levam para a Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) um lugar novo de experiência. Os viajantes desses cami Hillman, James, 1926-. nhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar Pã e o pesadelo / James Hillman; [tradução Carla C. Pilon, Daniel F. Yagol. --São Paulo: a alma, mas também o amor precisa de alma. Assim, em Paulus, 2015. - (Coleção Amor e psique) Título original: Pan and the Nightmare. lugar de buscar causas, explicações psicopatológicas para as nossas feridas e os nossos sofrimentos, precisamos, ISBN 978-85-349-4241-6 em primeiro lugar, amar a nossa alma assim como ela é. 1. Autoconhecimento 2. Hillman, James. Ensaios sobre Pan 3. Pesadelos 4. Psicologia - Aspectos religiosos 5. Sonhos -Interpretação I. Título. II. Série. Desse modo é que poderemos reconhecer que essas feridas e esses sofrimentos nasceram de uma falta de amor. Por 15-06990 CDD-154.632 outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para um fndices para catálogo sistemático: centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e a 1. Pesadelos: Psicologia 154.632 realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa unidade primeira. Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro, la edição, 2015 mas o psíquico e depois o espiritual. É a partir do olhar jJ do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido, o que significa que a psicologia pode de novo estender a © PAULUS - 2015 FSC mão para a teologia. Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil) www.fsc.org MISTO Essa perspectiva psicológica nova é fruto do esforço Fax (11) 5579-3627· Tel. (11) 5087-3700 Papel produzido www.paulus.com.br·[email protected] a partir de para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do fonles responsáveis ISBN 978-85-349-4241-6 FSC" C108975 espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si 5 mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle AGRADECIMENTOS xões durante a prática psicoterápica, e está começ~ndo a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. E uma nova visão do homem na sua existência cotidiana, do seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimensões diferentes de nossa existência para podermos reencontrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos aqueles que são sensíveis à necessidade de inserir mais alma em todas as atividades humanas. A finalidade da presente coleção é precisamente res tituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração de A tradução de "Efialtes" foi feita por A. V. O'Brien em sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem Viena entre 1963-64 e lá editada por A. K. Donoghue, que, da alma", como C. G. Jung o desejava. embora prevendo dificuldades à frente, também previu o valor desta empreitada. Ele, juntamente com Renate Léon Bonaventure Welsh, duelou com a maioria das referências. A versão final foi preparada para publicação por Murray Stein, com a as sistência de James Fenwick para a tradução das palavras em grego. Patricia Berry editou meu ensaio; Valerie Donle avy projetou e supervisionou a edição do livro. Sou grato a Rafael López-Pedraza pelas nossas conversas sobre o tema de Pã e a James Redfield, que, na Universidade de Chicago em 1968, leu toda a tradução e o esboço anterior do ensaio sugerindo melhorias para esta edição revisada. Eu também gostaria de reconhecer meu débito para com os livros (mencionados em toda parte deste volume, nos locais apropriados) de Ernest Jones, Reinhard Herbig e Patricia Merivale, em cujos essenciais trabalhos para este tema as necessárias referências acadêmicas puderam ser achadas, e, por fim, meu débito a Wilhelm Heinrich Roscher. JH Zurique, 1971 o trabalho acadêmico de Philippe Borgeaud e Roberto Malini (referidos no texto) precisa ser mencionado. JH Thompson, 2000 6 7 Parte I UM ENSAIO SOBRE PÃ NOVA EDIÇÃO REVISADA Por James Hillman A PSIQUE RETORNA À GRÉCIA ... Padrões internos brotam de uma profunda fonte que não foi produzida pela consciência e não está sob seu con trole. Na mitologia dos tempos antigos, estas forças eram chamadas de mana, ou de espíritos, demônios e deuses. Eles continuam tão ativos na atualidade quanto estavam no passado. Se eles estão de acordo com nossos desejos, os chamamos de bons pressentimentos ou impulsos ... Se eles vão contra os nossos desejos, dizemos que é má sorte, ou que as pessoas estão contra nós, ou ainda que a causa de nossos infortúnios deva ser patológica. Recusamo-nos a admitir que dependemos de "poderes" que não estão sob nosso controle.1 Se a tendência à dissociação não fosse inerente à psique humana, os sistemas psíquicos fragmentários jamais teriam se cindido; em outras palavras, nem os espíritos nem os deuses poderiam ter surgido. Esta é também a razão pela qual nossa época tornou-se tão completamente ateia e profana: carecemos de todo o conhecimento sobre a psique inconsciente e nos dedicamos de tal modo ao culto da consciência que excluímos tudo mais. Nossa verdadeira religião é o monoteísmo da consciência, estamos possuídos por ela, ao passo que também negamos fanaticamente a existência de sistemas fragmentários autônomos.2 1 Man and his Symbols (1961), 82 [cf. CW 18, § 554]. Para definir o cenário de nossa investigação sobre uma das figuras divinas mais estranhas de nossa história, Pã, e uma das experiências mais terríveis de nossa psique, o pesadelo, começaremos com duas passagens de C. G. Jung e uma passagem longa minha. 2 CW 13, § 51 (os itálicos são meus). 13 Quando o monoteísmo da consciência não pode mais Mas olhar para trás permite que avancemos, pois olhar negar a existência de sistemas autônomos fragmentários para trás reanima a fantasia do arquétipo da criança,fons e não pode mais cuidar de nosso estado psíquico atual, et origo, que é um momento tanto de fraqueza impotente surge a fantasia de retorno ao politeísmo grego. Pois esse quanto de um futuro que se desvela. A "renascença" (re "retorno à Grécia" se oferece como uma forma de mediação -nascer) seria uma palavra sem sentido sem a conside quando nossos centros não mais se sustentam e tudo des ração da dissolução que ela implica, a verdadeira morte morona. A alternativa politeísta não resolve as oposições da qual vem esse renascimento. Os críticos perdem de conflituosas entre a besta e Belém, entre caos e unidade; vista a validade e a necessidade da regressão. Também ela permite a coexistência de todos os fragmentos psíqui lhes escapa a necessidade de uma regressão que seja cos e concede-lhes padrões na imaginação da mitologia especificamente "grega". grega. Um "retorno à Grécia" foi experimentado na pró Nossa cultura oferece duas vias alternativas de pria Roma antiga, no Renascimento italiano e na psique regressão. Essas vias têm sido chamadas helenismo e romântica dos tempos de revolução. Em anos recentes, foi hebraísmo, e elas representam as alternativas psicológi parte intrínseca da vida de artistas e pensadores como cas de multiplicidade e unidade. Podemos ver ambas as Stravinsky, Picasso, Heidegger, Joyce e Freud. O "retorno alternativas em momentos críticos da história ocidental, à Grécia" é uma resposta psicológica ao desafio do colapso; por exemplo, quando do declínio de Roma, que acompa ele oferece um modelo de integração desintegrada. nhou Constantino rumo ao cristianismo (como se havia Já se escreveu o bastante para justificar o "retorno começado a chamar o hebraísmo). Voltamos a vê-las à Grécia" desde os pontos de vista estéticos, filosóficos e novamente em momentos como na Renascença e na Re culturais. Nossa cultura tem se voltado para a Grécia em forma, quando o sul da Europa retornou ao helenismo e busca de glória passada, de perfeição, de graça e clareza o norte, ao hebraísmo. de mente, e também quando ela busca por suas "origens", O hebraísmo reconfirma o monoteísmo da consciência pois na Grécia foi onde nossa cultura começou. Mas nosso egoica. Esse caminho convém quando a consciência de objetivo aqui é olhar para a Grécia em busca de compre uma época ou de um indivíduo sente que sua sobrevivên ensão psicológica. Estamos tentando compreender o que é cia é mais bem assegurada por um padrão arquetípico de essa "Grécia" que tanto convoca a psique e o que a psique heroísmo e unidade. A imagem primitiva de Cristo era lá encontra. composta pelo militar Mitra e pelo musculoso Hércules; Quando a visão dominante de mundo que dá coesão a conversão de Constantino, que definitivamente virou o a um período da cultura se fissura, a consciência retorna jogo contra o politeísmo clássico, foi anunciada por uma aos seus reservatórios mais antigos, procurando por fontes visão marcial que veio a ele justo antes que começasse de sobrevivência que também ofereçam fontes para o seu sua batalha. De modo semelhante, o judaísmo da Reforma, renascimento. Os críticos estão certos quando veem esse a despeito de sua tolerância para com a contestação, a "retorno à Grécia" como um desejo regressivo de morte, diversidade e os cismas, era arquetipicamente inspirado como um escape dos conflitos contemporâneos em direção pela fantasia de uma força heroica unificada; o indivíduo a mitologias e a especulações de um mundo de fantasia. era concebido como uma unidade indivisível de respon- 14 15 sabilidade armada que se coloca ante a Deus, face a desejaria manter a coesão de seu universo através de face, o encontro primordial. Nos nossos dias, o caminho sermões culpabilizantes e de autossuperação. monocêntrico é percorrido sempre que tentamos resolver O helenismo, contudo, traz a tradição da imaginação uma crise da alma através dos meios da psicologia do ego, inconsciente; a complexidade politeísta grega que nos sempre que tentamos "reformar". antecipa as nossas situações psíquicas complicadas e des A psique em crise tem, naturalmente, outras fanta conhecidas. O helenismo favorece a renovação ao oferecer sias. O múltiplo do helenismo e o uno do hebraísmo não maior espaço e outro tipo de bênção para todos os tipos são as únicas saídas de que dispõe a psique para sair de de imagens, de sentimentos e moralidades peculiares que seu dilema patológico. Há a fuga para o futurismo e para constituem nossa real natureza psíquica. Ela não mais suas tecnologias, o voltar-se para o Oriente e para o mundo necessitaria ser livrada do mal se, anteriormente, ela não interior, o retorno ao primitivo e ao natural, o movimento é imaginada como má. de ascensão e saída definitiva por meio da transcendência. Se em nossa desintegração não somos capazes de Mas essas alternativas são menos autênticas. Elas são reintegrar todos os nossos fragmentos a partir de uma simplistas; negligenciam nossa história e os direitos que psicologia monoteísta do ego, ou não mais conseguimos as imagens têm sobre nós; urgem-nos a fugir do apuro ao nos iludir com um futurismo progressivo, ou com um pri invés de nos aprofundarmos nele, fornecendo-lhe um pano mitivismo natural, que antes funcionavam tão bem, e se de fundo cultural e uma estrutura diferenciada. precisamos de uma complexidade que esteja à altura de As ficções científicas e as ficções da ciência, as ins nossa sofisticação, então devemos retornar para a Grécia. truções de índios americanos e de conselheiros orien "Nenhuma outra mitologia conhecida por nós - seja ela tais - por mais sábios e brilhantes que todos eles possam evoluída ou primitiva, antiga ou moderna - apresenta ser - falham em nos lembrar de nossa história imaginária a mesma complexidade e qualidade sistemática que a no Ocidente, as imagens que efetivamente trabalham em grega."3 A Grécia nos oferece o padrão policêntrico de po nossas almas. Ao circundarmos nossa tradição imaginaI, liteísmo mais ricamente elaborado de todas as culturas4 estas acabariam por nos asilar ainda mais. Então, os ca e, por isso, é capaz de conter o caos das personalidades minhos alternativos do helenismo e do hebraísmo agem secundárias e dos impulsos autônomos de um domínio, como repressões, endossando uma ausência de alma que de uma época ou de um indivíduo. Essa extraordinária suas imagens poderiam contribuir para reparar. diversidade oferece à psique fantasias multifacetadas O hebraísmo falha em ir de encontro ao dilema atual para que possa refletir sobre suas muitas possibilidades. simplesmente porque ele está muito bem estabelecido, Por detrás e por dentro de toda cultura grega - na demasiadamente idêntico à nossa visão moralista de arte, no pensamento e na ação -, há seu pano de fundo mundo: há uma Bíblia no quarto de todo andarilho, onde mítico policêntrico. Esse era o mundo psíquico imaginaI seria melhor que encontrássemos a Odisseia. Não somos capazes de encontrar renovação alguma na tradição de nosso eu consciente, mas tão somente uma reiteração dos 3 KIRK, G. S., Myth, its meaning and Function (Stanford: University of California Press, 1970), 205. hábitos empedernidos de uma mente monocêntrica que 4 LEEUW, G. van der, Religion in Essence and Manifestation (I: 19,4). 16 17 do qual a "glória que é a Grécia" veio. Esse pano de fun métrica eram copiadas, mas poucos de fato foram até a do mítico talvez estivesse menos circunscrito ao ritual Grécia empírica, e raramente se consultavam os textos e aos cultos religiosos em vigência do que às mitologias gregos originais. Era uma "imagem de Grécia carregada de outras grandes culturas. Em outras palavras, o mito de emoção" que imperava.6 E essa imagem conservou sua grego serviria de modo menos específico como religião e carga de emoções por meio de um conjunto contínuo de de modo mais geral como psicologia, agindo na alma tanto mitos (os "mitos gregos" e a metáfora de "Grécia") que se como estímulo quanto como continente diferenciado para mantiveram na consciência dos tempos pós-helênicos aos a extraordinária riqueza psíquica da Grécia antiga. nossos dias atuais. Mas a "Grécia" para a qual nos voltamos não é literal; A "Grécia" persiste mais como uma paisagem interior ela inclui todos os períodos, do minoico ao helenístico, to do que uma paisagem externa, uma metáfora para o reino das as localidades, da Ásia Menor à Sicília. Esta "Grécia" imaginaI, em que os arquétipos enquanto deuses foram se refere a uma região psíquica histórica e geográfica, a colocados. Portanto, podemos ler todos os documentos e uma Grécia fantástica e mítica, uma Grécia interior da fragmentos de mito deixados pela Antiguidade também mente que só indiretamente está ligada à geografia e à como relatos ou testemunhos do imaginaI. A arqueologia história reais - de modo que estas, então, perderiam seu se torna arquetipologia, apontando menos para a história valor. "[. .. ] Até a época do Romantismo, a Grécia não era literal do que para as realidades eternas da imaginação, mais que um museu habitado por pessoas pelas quais se falando-nos sobre o que se passa agora na realidade tinha o maior desprezo."5 psíquica. Petrarca, que no século XIV se empenhou mais que O retorno à Grécia não é nem um retorno a uma qualquer um para dar novamente vida à literatura da época histórica passada, nem a uma época imaginária, Antiguidade, não sabia ler em grego. Winckelmann, no "era dourada" utópica que desapareceu ou que poderia século XVIII, que se empenhou mais do que qualquer reaparecer novamente. Pelo contrário, a "Grécia" nos ofe outro em fazer reviver o classicismo e que inventou o rece uma chance de rever nossas almas e nossa psicologia culto moderno à Grécia, jamais colocou os pés lá e talvez através de locais imaginais e de pessoas, ao invés do tem nunca tenha visto uma única escultura grega importante po. Mudamo-nos em definitivo do pensamento temporal em sua versão original. Nem Racine, tampouco Goethe, e da historicidade para irmos em direção a uma região Hõlderlin, Hegel, Heine, Keats e nem mesmo Nietzsche imaginaI, um arquipélago diferenciado de localizações, estiveram na Grécia. Ainda assim, todos eles reconsti onde os deuses estão, e não para o tempo quando eles lá tuíram a "Grécia" em suas obras. Byron é a absurda - e estavam ou quando ainda estarão. fatal- exceção. Obviamente, a língua grega, a literatura, É provável que surjam polêmicas opondo a Grécia a política e a ciência eram conhecidas naqueles séculos. enquanto fato e enquanto fantasia, uma vez que a filolo Sócrates era cultuado, a estatuária, a arquitetura e a gia histórica e literária tradicionalmente vê a sua Grécia 5 WEISS, Roberto, Renaissance Discovery of Classical Antiquity (Oxford: 6 OSBORN, J. M., Travel Literature and the Rise ofneo·Hellenism in Eng· Blackwell, 1969), 140. land (Bull. New York Public Library, 67, 1963), 300. 18 19

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