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Os Ensaios PDF

991 Pages·2010·0.78 MB·portuguese
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OS ENSAIOS MICHEL EYQUEM, SEIGNEUR DE MONTAIGNE, nasceu em 1533, filho e herdeiro de Pierre, Seigneur de Montaigne (dois filhos anteriores morreram após o nascimento). Foi educado falando latim como primeira língua, e sempre conservou uma disposição de espírito latina; embora conhecesse o grego, preferia usar traduções. Depois de estudar direito, finalmente tornou-se conselheiro do Parlamento de Bordeaux. Casou-se em 1565. Em 1569, publicou a sua versão francesa de Theologia naturalis, de Raymond Sebond; o seu Apologie é apenas em parte uma defesa de Sebond, em que estabelece limites céticos para o raciocínio humano sobre Deus, o homem e a natureza. Em 1571, mudou-se para sua terras em Montaigne, dedicando-se à leitura, à reflexão e à composição de seus Ensaios (primeira versão, 1580). Montaigne tinha aversão ao fanatismo e às crueldades do período das guerras religiosas, mas apoiava a ortodoxia católica e a instituição monárquica. Duas vezes foi eleito prefeito de Bordeaux (1581 e 1583), cargo que ocupou por quatro anos. Morreu em Montaigne, em 1592, enquanto preparava a edição final, e a mais rica, de seus Ensaios. ROSA FREIRE D’AGUIAR nasceu no Rio de Janeiro. Nos anos 1970 e 1980 foi correspondente em Paris das revistas Manchete e IstoÉ. Retornou ao Brasil em 1986 e no ano seguinte traduziu seu primeiro livro, para a editora Paz e Terra: O conde de Gobineau no Brasil, de Georges Raeders. Em mais de vinte anos de atividade, verteu mais de sessenta títulos nas áreas de literatura e ciências humanas. Além do francês, idioma do qual transpôs para o português, entre outros, Céline, Orsenna, Lévi-Strauss, Debret e Balzac, traduz do espanhol e do italiano, línguas que também aperfeiçoou durante os anos de jornalista na Europa. Sua língua de preferência, no entanto, é mesmo o idioma de Montaigne, autor que ela pretendia traduzir desde os anos 1990, não só pelo conteúdo humanista dos Ensaios mas pelo desafio de traduzir um texto de quatro séculos de modo a conquistar o leitor de hoje. Acredita que o tradutor é um ser “obcecado” e “duvidante” e que uma boa tradução depende, também, da empatia entre tradutor e autor. Entre os prêmios que recebeu estão o da União Latina de Tradução Científica e Técnica (2001) por O universo, os deuses, os homens (Companhia das Letras), de Jean-Pierre Vernant, e o Jabuti (2009) pela tradução de A elegância do ouriço (Companhia das Letras), de Muriel Barbery. MICHAEL ANDREW SCREECH nasceu em 1926. É membro honorário do Wolfson College e professor emérito do All Souls College, de Oxford (fellow e capelão em 2001-3), membro da British Academy, da Royal Society of Literature, da University College, Londres, e membro correspondente do Institut de France. Trabalhou muito tempo no comitê do Warburg Institute como professor de língua e literatura francesa na University College, Londres, até sua eleição para o All Souls, em 1984. É especialista em Renascimento, de renome internacional. Editou e traduziu os Ensaios completos de Montaigne para a Penguin Classics e, num volume separado, o ensaio Apologie de Raymond Sebond. Seus outros livros incluem Erasmus: ecstasy and the praise of folly (Penguin, 1988), Rabelais, e Montaigne and melancholy (Penguin, 1991) e, mais recentemente, Laughter at the foot of the cross (Allen Lane, 1998); todos são reconhecidamente estudos clássicos. Trabalhou com Anne Screech em Erasmus’ annotations on the new testament. Michael Screech é Cavaleiro da Ordre du Mérite (1982) e Cavaleiro da Légion d’Honneur (1992). Em Oxford, ordenou-se diácono em 1993 e padre em 1994. ERICH SAMUEL AUERBACH nasceu em 1892 na Alemanha, em uma família burguesa de origem judia. Estudou direito em Heidelberg e, em 1914, ingressou no curso de filologia românica em Berlim. Em 1921, defendeu sua tese de doutorado sobre a técnica da novela no Renascimento francês e italiano. Em 1923, começou a trabalhar na Biblioteca Estatal Prussiana, em Berlim, e seis anos depois tornou-se professor de filologia românica na Universidade de Marburg. É desse período um de seus estudos mais importantes, Dante, poeta do mundo secular. Em 1935, durante o regime nazista na Alemanha, foi demitido do cargo em Marburg. Exilado, passou a lecionar na Universidade de Istambul. Foi na Turquia, durante a Segunda Guerra Mundial, que escreveu a coletânea de ensaios Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental (1946), considerada uma das mais importantes obras de crítica literária do século XX. Ao final da Segunda Guerra, emigrou para a América. Nos Estados Unidos, foi professor da Universidade da Pensilvânia, pesquisador em Princeton e professor de teoria literária e literatura comparada na Universidade Yale. Faleceu, em New Haven, Connecticut, em outubro de 1957. MICHEL DE MONTAIGNE Os ensaios Uma seleção Organização de M. A. SCREECH Tradução e notas de ROSA FREIRE D’AGUIAR Sumário Introdução — Erich Auerbach Nota da tradutora OS ENSAIOS Ao Leitor LIVRO PRIMEIRO I Por meios diversos se chega ao mesmo fim VIII Sobre a ociosidade XV Sobre a punição da covardia XVII Sobre o medo XIX Que filosofar é aprender a morrer XXV Sobre a educação das crianças XXVI É loucura atribuir o verdadeiro e o falso à nossa competência XXX Sobre os canibais XXXI Que é preciso prudência para se meter a julgar os decretos divinos XXXVIII Sobre a solidão LVI Sobre as orações LVII Sobre a idade LIVRO SEGUNDO I Sobre a inconstância de nossas ações II Sobre a embriaguez V Sobre a consciência VIII Sobre a afeição dos pais pelos filhos XI Sobre a crueldade XXXII Defesa de Sêneca e de Plutarco XXXV Sobre três boas esposas XXXVII Sobre a semelhança dos filhos com os pais LIVRO TERCEIRO II Sobre o arrependimento III Sobre três relações V Sobre versos de Virgílio VI Sobre os coches XI Sobre os coxos XIII Sobre a experiência Cronologia Outras leituras Índice remissivo O escritor Montaigne1 ERICH AUERBACH Montaigne era filho de pai gascão e mãe judia espanhola. A família era rica e estimada: o avô Eyquem, comerciante de peixes em Bordeaux, comprara o feudo nobiliário de Montaigne, na Guyenne; o pai, soldado e nobre, alcançou o cargo de prefeito de Bordeaux. Michel é seu sucessor em todos os aspectos exteriores: herdeiro do patrimônio, soldado, administrador, viajante, bom pai de família e finalmente maire de Bordeaux. Também quanto ao físico é filho de seu pai, de quem herdou a constituição robusta, o temperamento sanguíneo e a predisposição à litíase. Mas os tempos haviam se tornado mais difíceis. O pai viveu na época dourada das campanhas militares na Itália; o filho, em meio à terrível turbulência causada pela crise huguenote, a última a ameaçar a estabilidade nacional da França. A questão religiosa teve início na década de 1550, época em que Montaigne mal atingira a idade adulta, e terminou por volta de 1600, com a vitória de Henrique IV, poucos anos após a morte do escritor. Na segunda metade do século XVI, a era de Filipe da Espanha e Elizabeth da Inglaterra, a França é palco de um sangrento turbilhão de acontecimentos e de uma inquietante anarquia dos ânimos. Sobre uma base tão instável como essa, Montaigne levou uma vida cujo equilíbrio jamais foi abalado. Em sua juventude, talvez tenha conhecido a ambição e a ansiedade, talvez a paixão e certamente a amizade em sua expressão mais autêntica. Mas na época em que o conhecemos, isso há muito já é passado. Com 38 anos, ele se recolhe à vida privada, e daí em diante sua atividade externa restringe-se à defesa de seu patrimônio. Administra- o com prudência, sem medo nem rigidez, por vezes cedendo um pouco, com espírito e sem uso da força, mas de modo firme e resoluto. Qual era o patrimônio que devia resguardar? Primeiro, suas posses, sua família e sua segurança. Mas isso é o de menos: defendia-os de modo sereno e cordial, com alguns gestos hábeis. É divertido ler como consegue desarmar os bandos de saqueadores com sua postura digna e segura, com seu simples modo de agir. Mas se o fardo se fizesse pesado demais, se tais obrigações viessem a lhe exigir muito, estaria disposto a abandoná-las. O verdadeiro objeto de sua defesa é seu cerne interior, o esconderijo de seu espírito, a arrière-boutique que soube conservar para si. Il faut faire comme les animaux, qui effacent la trace à la porte de leur tanière.2 É preciso fazer como os animais, que apagam seu rastro na porta da toca. E isso não vale apenas para sua vida exterior. Montaigne era um homem de coração aberto, expansivo e hospitaleiro; não recusava a aventura; não se abandonava, mas prestava-se de bom grado. Estava atento às novidades e chegava mesmo a ser um pouco esnobe; passava-se por mais nobre do que era de fato e sabia fazer notar da maneira mais discreta possível sua elevada posição social. Sua autocrítica e autoironia estão cheias de um orgulho simpático. Não é de forma alguma um eremita; é apenas um homem reservado, que por vezes gosta de estar em boa companhia. Mas a arrière-boutique de seu ser interior é inacessível: aí está sua verdadeira morada, ali se sente em casa; em prol da segurança e do conforto desse refúgio concentra-se toda a atividade do homem mais sagaz de seu tempo. Montaigne possuía um sentido pronunciado de decoro e lealdade. Tivera um pai bom e inteligente, uma infância feliz e uma juventude livre; não era próprio de seu temperamento ter pensamentos malevolentes ou agir de modo baixo, não esperava que os outros o fizessem e acabava por se enganar, como vira acontecer a seu pai. Fazia parte dessa lealdade servir ao rei, ser agradável aos amigos e proteger a própria família; era preciso ser humano e espontâneo com os inferiores e franco e respeitoso com os superiores. Fazia parte da lealdade respeitar as regras e os costumes, e seria insensatez acreditar que com uma conduta oposta se pudesse causar algo além de desordem. Não era conveniente, e seria mesmo inútil, incômodo e inoportuno, diferenciar-se de modo notável dos outros homens da mesma classe, faltar com os deveres ou mesmo assumir voluntariamente encargos descabidos. Talvez também lhe fosse agradável comprovar como se pode exercer um cargo ou administrar um negócio a que não se pode fugir de forma tão boa ou melhor do que os outros — sem para isso ter que se esforçar ou dedicar-se em excesso. A condição era essa. Si quelquefois on m’a poussé au maniement d’affaires estrangères, j’ay promis de les prendre en main, non pas au poulmon et au foye.3 Se por vezes me compeliram à administração de negócios alheios, prometi manejá-los com cuidado, mas sem levá-los a peito.] Montaigne agiu desse modo mesmo quando, numa época difícil, foi quase coagido a se tornar maire de Bordeaux. Foi um bom pai para sua família, um francês leal e um homem versado nas grandes questões de seu tempo; se não veio a ser um personagem de destaque na corte, isso deveu-se tão somente a ele. Não o foi porque não quis. Defendia-se contra tudo que lhe impunha deveres além do necessário: frente ao rei, aos amigos, aos burgueses de Bordeaux, à sua família. Defendia-se contra vínculos coercivos com a mesma obstinação e gentileza com que se defendia contra os inimigos externos. Montaigne defende sua solidão interior. Mas o que significa isso para ele? O que a torna tão valiosa? A solidão interior é sua própria vida, seu existir em si e consigo mesmo, sua casa, seu jardim e sua câmara de tesouros. Para lá carrega tudo o que conquistou de precioso em suas andanças pelo mundo; lá elabora e impregna tudo com o tempero de seu ser. O que é e a que serve essa solidão? Não se trata de uma fuga do mundo no sentido cristão, e tampouco de ciência ou filosofia. É algo que ainda não tem nome. Montaigne abandona-se a si mesmo. Dá livre curso a suas forças interiores — mas não somente ao espírito: o corpo também deve ter voz, pode interferir em seus pensamentos e até nas palavras que ele se põe a escrever. Comparados a ele, os grandes espíritos do século XVI — os promotores do Renascimento, do Humanismo, da Reforma e da ciência que criaram a Europa moderna — são todos, sem exceção, especialistas. Teólogos ou filólogos, astrônomos ou matemáticos, artistas ou poetas, diplomatas ou generais, historiadores ou médicos: em sentido lato, são todos especialistas. Alguns se especializaram em várias áreas; Montaigne, em nenhuma. Não é absolutamente um poeta. Estudou ciências jurídicas, mas era um jurista indiferente, e suas declarações sobre os fundamentos do direito, embora significativas de outro ponto de vista, não possuem nenhum valor específico para a matéria. Toda a sua atividade prática não tem nenhuma relação profissional com sua produção intelectual. Muitas vezes aquela fornece o material para seus pensamentos. Mas tais pensamentos não são de grande importância para nenhuma disciplina específica; não têm caráter jurídico, nem militar, nem diplomático, nem filológico, embora retirem de todos esses campos e outros mais sua encantadora concretude. E também não são propriamente filosóficos: falta-lhes todo sistema ou método. Montaigne permanece leigo mesmo onde parece compreender algo do assunto — em pedagogia, por exemplo. É difícil acreditar que ele quisesse aprofundar-se seriamente numa das matérias de que trata casualmente. E, seja como for, suas realizações não dizem respeito a nenhuma delas. Ainda hoje é difícil definir em que consistem, e é quase incompreensível que tenham alcançado repercussão em sua época. Pois toda realização necessita de um destinatário que lhe dê algum valor, todo sucesso necessita de um público. O público dos Ensaios de Montaigne não existia, e ele não podia supor que existisse. Não escrevia nem para a corte nem para o povo, nem para os católicos nem para os protestantes, nem para os humanistas nem para alguma outra coletividade já existente. Escrevia para uma coletividade que parecia não existir, para os homens vivos em geral que, como leigos, possuíam uma certa cultura e queriam compreender sua própria existência, isto é, para o grupo que mais tarde veio a se chamar de público culto. Até esse momento, a única coletividade existente — sem considerar as guildas, os estamentos e o Estado — era a comunidade cristã. Montaigne dirige-se a uma nova coletividade e, ao fazê-lo, ele também a cria: é a partir de seu livro que ela cobra existência. Mas Montaigne não tinha consciência disso; dizia escrever para si mesmo, com a intenção de investigar e conhecer a si mesmo, e para seus amigos, a fim de que dele conservassem uma imagem clara após sua morte. Por vezes foi mais além, e afirmou que num único indivíduo pode-se encontrar a constituição de todo o gênero humano. Seja como for, ele mesmo é seu único objeto, e seu único fito é aprender a viver e a morrer — isso é o mais importante, pois para ele quem aprendeu a morrer sabe também como viver. A ideia soa algo filosófica, e em alguma instância de fato o é. Mas falar de uma filosofia de Montaigne é um equívoco. Não há sistema algum; ele mesmo afirma, por exemplo, que é inútil aprender a morrer, pois a natureza encarrega-se disso à nossa revelia; e falta-lhe também uma verdadeira vontade de ensinar como a de Sócrates (que de resto bem se pode comparar a ele) e, portanto, uma vontade de alcançar uma validade objetiva. Aquilo que escreve dirige-se a ele e vale apenas para ele; se outros descobrirem aí alguma utilidade e prazer, tanto melhor. A utilidade e o prazer que se podem auferir dos Ensaios têm um aspecto peculiar, antes desconhecido. Não são de um gênero propriamente artístico, pois não se trata de poesia, e o objeto é muito próximo e concreto para que o efeito possa permanecer puramente estético. Mas seu caráter também não é apenas didático, uma vez que conservam sua validade ainda que se tenha uma opinião diversa — melhor dizendo, é difícil encontrar uma doutrina da qual se possa discordar. Na maioria das vezes, seu efeito é semelhante ao de algumas obras da Antiguidade tardia, de caráter histórico-moral, à maneira de Plutarco — um dos autores prediletos de Montaigne. Mas falta-lhe uma orientação racional unitária, até mesmo dentro de cada um dos capítulos. Trata-se de exemplos que são constantemente ponderados, verificados e apreciados. Poucos são os resultados, e estes de qualquer modo não exigem a concordância do leitor. Mas a própria forma como o assunto

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