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Os Crimes ABC PDF

197 Pages·1936·0.47 MB·portuguese
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Agatha Christie Os Crimes ABC The ABC murders (1936) Tradução de Rocha Filho INTRODUÇÃO DO CAPITÃO HASTINGS, O. B. E. (OFICIAL DA ORDEM DO IMPÉRIO BRITÂNICO) Para esta narrativa usei meu método habitual de relatar somente incidentes e cenas por mim presenciadas. Certos capítulos, portanto, foram escritos na terceira pessoa. Devo assegurar a meus leitores que atesto a veracidade das ocorrências relatadas nesses capítulos. O fato de ter usado uma certa licença poética ao descrever pensamentos e sentimentos de diversas pessoas corre por conta de meu desejo de dar-lhes uma dose razoável de exatidão. Devo acrescentar que tais descrições haviam sido “podadas” pelo próprio Hercule Poirot, meu bom amigo. Concluindo, devo dizer que se me estendi bastante na descrição do relacionamento de personagens secundários, surgidos em decorrência daquela estranha série de crimes ABC, é porque o elemento humano nunca pode ser ignorado. Certa vez, Hercule Poirot me ensinou, de maneira bem expressiva, que o romance pode ser um subproduto do crime. Quanto ao elucidamento do mistério ABC, posso dizer que, na minha opinião, Poirot demonstrou enorme talento no modo como abordou um problema diferente de todos com que já lidara. CAPÍTULO I - A CARTA Foi em junho de 1935 que retornei à Inglaterra de volta da minha fazenda na América do Sul para uma estada de uns seis meses. Fora uma fase difícil para nós ali. Como todos então, tínhamos sofrido as conseqüências da depressão mundial. Eu tinha vários assuntos para resolver no meu país que dependiam de uma intervenção pessoal. Assim, deixei minha esposa cuidando da fazenda e embarquei. Não é necessário dizer que uma das primeiras coisas que fiz, ao chegar a Londres, foi visitar meu velho amigo Hercule Poirot. Fui encontra-lo instalado num dos mais novos apartamentos com serviço de hotel londrinos. Eu o critiquei (e ele reconheceu) por ter escolhido 2 aquele tipo de edifício simplesmente por causa de sua aparência e proporções estritamente geométricas. - Assim é, meu amigo, ele tem uma simetria mais agradável, não concorda? Respondi que a coisa toda ali, me parecia muito na base do quadrado e, apelando para uma velha blague, indaguei se naquela supermoderna hospedaria já tinham conseguido induzir as galinhas a porem ovos quadrados. Poirot riu com muita disposição. - Ah, você ainda se lembra dessa história? Infelizmente a ciência não conseguiu ainda fazer as galinhas se adaptarem aos gostos modernos, elas continuam a botar ovos de diferentes tamanhos e cores! Observei a figura de meu velho amigo com um olhar cordial. Ele estava com uma excelente aparência, eu diria que nem um dia mais velho do que quando o vira pela última vez. - Está com ótimo aspecto, Poirot. Dificilmente aparenta a idade que tem. E, se isto fosse possível, diria que você está com menos fios de cabelo branco do que da última vez em que nos vimos. Sorrindo com certa sutileza, Poirot retrucou: - E por que não seria possível? É, inteiramente exeqüível. - Mas como? Quer dizer que seu cabelo em vez de tornar-se normalmente grisalho ficou preto de novo? - Exatamente. Eis o que considero uma impossibilidade científica! - Mas não é, acredite. - O que não deixa de ser extraordinário, meu amigo. E contraria uma lei natural. - Como sempre, Hastings, você demonstra seu admirável espírito confiante. Os anos não lhe roubaram essa maneira de ser! Você percebe um fato e menciona a solução para o mesmo a um só tempo, sem notar que está fazendo tal coisa! Fiquei olhando-o, com ar embaraçado, curioso. Sem dizer mais nada, Poirot foi ao seu quarto e de lá voltou com um frasco que me entregou sem comentários. E eu pude ler o rótulo: REVIVIT: Para devolver a cor natural aos seus cabelos. 3 REVIVIT NÃO é tintura. Em cinco tonalidades: Cinza, Castanho- natural, Castanho-avermelhado, Castanho-escuro e Preto. - Poirot – exclamei – Você pintou o cabelo! - Ah, por fim a compreensão voltou à sua mente! - Eis aí então, por que seu cabelo dá a impressão de estar muito mais negro do que da última vez em que aqui estive. - Exatamente. - Meu caro – disse, recuperando-me da surpresa inicial. – Suponho que da próxima vez eu venha encontrá-lo usando um falso bigode... ou já está acontecendo isso agora? Poirot estremeceu como se lhe tivesse dito uma ofensa. Afinal, o bigode que cultivava há anos sempre fora seu ponto sensível. Orgulhava-se dele, na verdade. Assim, minhas palavras o melindraram. - Não, meu amigo, isso não. E rogo ao bom Deus que tal dia esteja bem distante. Um falso bigode! Quel horreur! – E o repuxou com força, como se pretendesse assegurar-me de sua autenticidade. - Bem, ele ainda está bem exuberante – comentei por fim. - N’est pas? Nunca, em toda Londres, cheguei a ver um bigode igual ao meu. Um bom disfarce também, pensei. Mas por nada deste mundo iria magoar Poirot dizendo isso. Daí que mudei de assunto, perguntando se ele ainda estava exercendo sua profissão no momento. - Sei que se aposentou há alguns anos... - C’est vrai. Para cultivar abóboras! E aí logo ocorre um crime.. e eu mando as abóboras para o diabo. E desde então, sei muito bem o que está pensando, eu me acho na situação de uma grande estrela que anuncia sua retirada do palco! Um espetáculo de despedida, que ela repete um sem- número de vezes... Não pude deixar de rir da comparação. - Na verdade, tem sido assim. Cada caso que acontece eu me digo: este é o último. Mas não, algo sempre acaba acontecendo. É preciso admitir, meu amigo, a aposentadoria que eu planejei de nada valeu. E afinal se as células cinzentas não são exercitadas por nós, criam ferrugem, meu caro. - Entendo. Você as utiliza com moderação. 4 Precisamente. Agora escolho os casos. Para o Hercule Poirot de hoje somente a nata do crime. - E tem havido muito crime deste tipo? - Pas mal. Não faz muito tempo eu escapei por um triz. Refere-se a um fracasso? - Não, não. – Poirot pareceu chocado – Mas eu, eu, Hercule Poirot, quase fui eliminado. Dei um leve assovio e arrisquei: - Um assassino arrojado. - Não tanto audacioso quanto despreocupado – retrucou Poirot – O termo é exatamente este. Mas não falemos mais nisso. Você sabe, Hastings, em muitos aspectos, encaro você como minha mascote. - É mesmo? E de que maneira? Poirot não respondeu diretamente a minha pergunta. Fez um rodeio: - Logo que soube de seu regresso, disse comigo mesmo: algo vai acontecer. Como nos velhos tempos iremos à caça juntos, nós dois. Mas esse caso não será comum. Deverá ser algo – ele moveu as mãos com animação, como se caçasse as palavras no ar – algo recherché... delicado, fine... – Poirot conferiu à derradeira palavra intraduzível seu inteiro sabor. - Na minha opinião, Poirot – observei – qualquer um que o ouvisse agora pensaria que você está encomendando um jantar no Ritz. - E como ninguém pode encomendar um crime especial, não é mesmo? – Poirot suspirou fundo. – Mas eu acredito na sorte, no destino, se você preferir. Pois seu destino é ficar a meu lado e me impedir de cometer o erro imperdoável. - E o que chama de erro imperdoável? - Não perceber o óbvio. Fiquei pensando e repensando sem apreender o sentido da observação. Por fim, disse, sorrindo de leve: - Bem, já terá acontecido então esse supercrime? - Pas encore. Pelo menos, é o que parece... Poirot fez uma pausa. Em sua testa acentuou-se uma ruga de perplexidade. Num gesto automático, suas mãos repuseram em seus lugares costumeiros dois objetos que, inadvertidamente, eu movera. 5 Não tenho certeza – disse então, em tom pausado. Havia algo tão inusitado em sua entonação de voz que o contemplei, surpreso. Aquele rictus de preocupação ainda era visível nele. De repente, com um rápido e incisivo gesto de cabeça, Poirot deu alguns passos, acercando-se da escrivaninha perto da janela. Tudo ali estava tão bem arrumado e distribuído pelo pequeno compartimento, coisa comum a Poirot, que lhe era fácil encontrar de imediato o que desejava. Então aproximou-se de mim, com uma carta na mão. Releu-a de passagem e depois, entregando-a para mim, disse: - Leia, mon ami. Depois me diga o que pensa a respeito. Com certa curiosidade, fiz o que me era pedido. A carta fora escrita em papel de boa qualidade, espesso, com letras de imprensa: Sr. HERCULE POIROT. Não é fato que supõe solucionar mistérios que desafiam a capacidade intelectiva reduzida de nossa pobre polícia britânica? Pois vejamos, Sr. Sagaz Poirot, até que ponto é inteligente. Talvez não considere o assunto difícil de desvendar. Fique de olho em Andover, no dia 21 deste mês. Seu, etc, ABC. Olhei o envelope. O endereço também fora escrito com letra de imprensa. - Veio de W.C.I. – disse Poirot, quando voltei minha atenção para o carimbo postal. – Bem, qual a sua opinião? Dei de ombros ao lhe devolver a carta e retruquei: - É coisa de algum louco ou algo parecido, suponho. - É tudo que tem a dizer? - Bem... não acha que se trata de um demente? - Sim, meu amigo, deve ser. Ele falara em tom grave e o olhei meio intrigado, comentando: - Está levando esse assunto muito a sério, Poirot. - Um louco, mon ami, é para ser tomado a sério. Um tipo assim é realmente perigoso. 6 - Sim, é verdade... Eu não considerei devidamente esse aspecto... Mas quis dizer que a coisa toda parece mais uma espécie de burla idiota. Talvez produto da imaginação de algum brincalhão que foi além da conta... - Comment? De que conta está falando? - Foi apenas uma expressão comum. Quis dizer que o sujeito estava alto quando escreveu essa carta. Errou na dose do uísque. - Merci, Hastings. Com a expressão “alto” eu já estou familiarizado. Então, segundo você, a coisa não passa disso... - E há mais alguma coisa? – indaguei, impressionado com a insatisfação que seu tom de voz denotava. Poirot moveu a cabeça com ar duvidoso, mas não retrucou. - O que você já fez a respeito dessa carta? – perguntei então. - O que poderia fazer de saída? Mostrei-a ao Japp. Ele disse o mesmo que você: “uma brincadeira tola”- foi a expressão que usou. Eles topam com coisas desse tipo, diariamente, lá na Scotland Yard. E eu, também, tenho tido minha cota... - Mas você continua a encarar seriamente mais essa, não? Poirot replicou pausadamente: - Há algo nessa carta que eu não gosto, Hastings. A despeito do que eu pensava sobre o caso, a expressão de Poirot voltou a me impressionar. E indaguei: - Você pensa o que afinal? Ele balançou a cabeça, guardou a carta no envelope e voltou a coloca- la na escrivaninha. - Se realmente leva a sério isso, por que não faz alguma coisa a respeito? – insisti. - Como sempre, falou o homem de ação! Mas o que há para fazer? A polícia do condado também viu essa carta, mas igualmente não a levou a sério. Não há impressões digitais nela. Não há indício algum sobre seu possível autor. - Resumindo: há somente seu instinto pessoal. - Instinto, não, Hastings. É uma palavra mal escolhida. É meu conhecimento, minha experiência, que me dizem haver alguma coisa que não soa bem nessa carta... 7 Ele gesticulava quando as palavras exatas lhe escapavam. Então balançou de novo a cabeça, observando: - Posso estar fazendo uma tempestade num simples copo d’água. De qualquer maneira não há a fazer senão esperar. - Bem, 21 deste mês cai numa sexta-feira. Se um roubo desses de chamar atenção ocorrer perto de Andover, aí então... - Ah, que alívio seria!... - Alívio? – exclamei. O termo me pareceu fora de propósito. – Um roubo dificilmente pode ser tido como um alívio. Poirot moveu a cabeça com veemência, replicando: - Está enganado, meu amigo. Você não entendeu o que eu quis significar. Um roubo poderá ser motivo de alívio se afasta da minha mente o receio de algo mais. - Refere-se a que em especial? - Um assassinato – respondeu Poirot. CAPÍTULO 2 - (NÃO FAZ PARTE DA NARRATIVA PESSOAL DO CAP. HASTINGS) O Sr. ALEXANDER BONAPARTE CUST levantou-se da cadeira e olhou o que o rodeava em seu quarto acanhado. Tinha as costas doloridas após estar sentado em posição incômoda e agora, de pé, qualquer um veria que se tratava de um homem realmente alto. Sua figura meio encurvada e o fato de ser míope causavam uma impressão enganosa. Acercando-se de um cabide preso atrás da porta, ele remexeu no bolso de um sobretudo bastante usado, retirando um maço de cigarros baratos e uma caixa de fósforos. Acendeu o cigarro e então voltou a sentar-se à mesa. Pegou um guia de trens e o consultou, passando a seguir ao exame meticuloso de uma lista de nomes de pessoas batidas a máquina. Com a caneta, assinalou então um dos primeiros nomes da lista. Era sexta-feira, 20 de junho. 8 CAPÍTULO 3 - ANDOVER Na ocasião fiquei impressionado com os pressentimentos de Poirot a propósito da tal carta anônima, mas devo confessar que o assunto já deixara de me preocupar quando chegou o dia 21 e aí a situação mudou com a visita feita a meu amigo Poirot pelo Inspetor-Chefe Japp da Scotland Yard. Esse membro do Departamento de Investigação Criminal era nosso conhecido há muitos anos e me dirigiu um cumprimento muito cordial. - Ora, vejam! – exclamou Japp. – Mas se não é o Capitão Hastings de volta das selvas ou do que queiram chamar! Faz lembrar os velhos tempos, vê- lo aqui com Monsieur Poirot. Está com bom aspecto, também. Apenas com o alto da cabeça um pouco deserto, hem? Bem, isso é o que acaba acontecendo a todos nós. Comigo dá-se o mesmo. Eu protestei ligeiramente. Tinha a impressão de que, devido à maneira cuidadosa com que alisara o cabelo no alto da cabeça, a leve calvície insinuada por Japp era praticamente imperceptível. Contudo, Japp nunca se fizera notar por um razoável tato pelo que já pudera observar, assim passei por alto o comentário e admiti que nenhum de nós parecia mais remoçado. - Com exceção de Monsieur Poirot – observou Japp. – Ele serve como um bom anúncio de propaganda para um tônico capilar, não há dúvida. Os fios de cabelo brotando mais finos do que antes. E continua em forma e evidência, mesmo com a sua idade. Está associado a todos os casos importantes do dia. Mistérios ocorridos em trens, em aviões, mortes de pessoas da alta sociedade... sim, ele está sempre presente, aqui e ali. Nunca foi tão falado desde que se aposentou... - Eu já disse ao Hastings que sou como uma grande estrela que faz sempre uma apresentação a mais de despedida – disse Poirot sorrindo. - Não seria de admirar que terminasse investigando sua própria morte – comentou Japp, rindo gostosamente. – Eis uma boa idéia, sim senhores. Devia ser tema de um livro. - Hastings é que poderá fazer isso – observou Poirot, piscando o olho para mim. - Seria realmente divertido – e Japp riu de novo. 9 Não cheguei a entender por que tal idéia parecia diverti-lo tanto; para mim soava como uma piada de mau gosto. Poirot, bom e velho companheiro, já se foi. Brincadeiras sobre a sua morte próxima dificilmente lhe agradariam. Talvez minha atitude traísse meus sentimentos, porque Japp resolveu mudar de assunto: - Já soube da carta anônima endereçada a Monsieur Poirot? - Eu a dei para Hastings ler outro dia – respondeu meu amigo. - Naturalmente – exclamei – Já tinha até me esquecido. Espere um pouco, qual foi mesmo a data mencionada na carta? - Dia 21 – disse Japp. – Por isso mesmo que toquei no assunto. Ontem foi dia 21 e, apenas por curiosidade, me comuniquei com Andover à noite. Nada feito. Pura brincadeira, como pensei. Uma vidraça de loja quebrada por uma pedra atirada por algum moleque e dois casos de embriaguez e desordem. Assim nosso amigo belga embarcou em canoa furada. - Devo admitir que estou aliviado com essa notícia – observou Poirot. - Você se preocupou um bocado com essa carta, hem? – disse Japp, em tom amável. – Você ainda está com sorte, imagine que nós recebemos dúzias de cartas desse tipo, diariamente, na Yard! Gente que não tem nada melhor para fazer e escritores fracassados sentam a uma mesa e escrevem coisas desse gênero. Eles não pretendem causar nenhuma perturbação. Apenas uma certa excitação. - Na verdade fui muito tolo em levar a questão tão a sério – disse Poirot. – Fui meter meu nariz onde não era chamado. - Bem, estou de saída – disse Japp. – Tenho um pequeno assunto a resolver na próxima rua, um receptor roubado de uma joalheria. Como tinha que passar por aqui resolvi deixa-lo com o espírito mais despreocupado. Pena que tenha gasto sua massa cinzenta sem necessidade, Poirot. E com essas palavras e uma risada jovial, Japp retirou-se. - O bom Japp não mudou muito, hem? – observou Poirot. - Ele parece bem mais velho – retruquei. E acrescentei em tom meio vingativo: - E está ficando tão encanecido como um texugo. Poirot pigarreou antes de comentar: - Não sei se você sabe, Hastings, mas há uma pequena peça – meu cabeleireiro é um homem engenhoso – que uma pessoa apõe ao couro 10

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