Habitar a metrópole: os apartamentos quitinetes de Adolf Franz Heep Joana Mello de Carvalho e Silva1 1. Arquiteta, doutora pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, docente da Escola da Cidade. E-mail: RESUMO: A reestruturação do mercado imobiliário e o surgimento de uma nova tipologia habita- <joanamello72@gmail. cional em São Paulo a partir de meados dos anos 1940, o apartamento quitinete, coincidiram com>. com as transformações nos parâmetros disciplinares que orientavam o discurso e a prática arquitetônica no Brasil. Analisar o momento em que a nova tipologia foi formulada, as suas motivações iniciais e os desenvolvimentos posteriores, permite não só recuperar a trajetória do arquiteto germânico Adolf Franz Heep (1902-1978) como investigar diálogos entre as vanguar- das arquitetônicas européias, as experiências norte-americanas, a produção arquitetônica e as demandas locais. PALAVRAS-CHAVE: Quitinete. Metropolização. Arquitetura Moderna. Adolf Franz Heep. São Paulo. ABSTRACT: The restructuring of the housing market and the emergence of a new housing typol- ogy in Sao Paulo from the mid-1940s, the kitchenette apartment, coincided with changes in the parameters that guided disciplinary discourse and architectural practice in Brazil. Analyze the moment the new typology was formulated, their initial motivations and subsequent developments, allows not only to recover the trajectory of the German architect Adolf Franz Heep (1902-1978) as investigate the dialogue between European architectural avant-garde, the North-American experiences, the local architectural production and the local demands. KEYWORDS: Kitchenette. Metropolization. Modern Architecture. Adolf Franz Heep. São Paulo. Há na história da arquitetura certos exemplos que condensam processos estruturais e culturais mais amplos que o campo disciplinar. Pode-se dizer que este é o caso dos apartamentos quitinetes construídos por Adolf Franz Heep (1902- 1978) entre os anos de 1940 e 1950 em São Paulo. Analisados em detalhe do ponto de vista arquitetônico, inicialmente por Catherine Gati, seguida de Marcelo Barbosa que lhes dedicou as pesquisas de mestrado e doutorado, recuperando Anais do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.21. n.1. p. 141-157. jan.- jun. 2013. 141 2. Ver Catherine Gati (1994, pontos importantes da trajetória do arquiteto alemão desde a Europa2, esses p. 79-91) e Marcelo C. Bar- edifícios são investigados neste artigo a partir das relações que a arquitetura bosa (2002; 2012). estabeleceu com as transformações culturais, sociais e econômicas da cidade no 3. Essa aproximação foi ins- período enfocado. Por isso os projetos analisados não são considerados apenas pirada pelos trabalhos de Adrián Gorelik (2009) e pe- peças gráficas por meio das quais é possível antever a obra construída, mas sim las pesquisas que deram como documentos, fontes capazes de informar e problematizar questões origem à livre-docência de José Lira (2011) e desenvol- disciplinares específicas e outras, relativas à cidade como concretude e ideação; vida em minha tese de dou- à sociedade e aos seus costumes; à economia e aos tipos de investimento urbano; torado, publicada recente- mente. Joana Mello de C. e à cultura e às formas de expressão artística. Pretende-se com isso desenvolver uma Silva (2012). análise ao mesmo tempo interna e externa dos projetos realizados por Heep para 4. Cf. José Lira (2011, p. a nova tipologia, aproximando a história da arquitetura das histórias social e 456), Marcus André Barreto Campelo de Melo (1992) e cultural3. Maria Ruth Amaral de Sam- Fruto da reestruturação do mercado imobiliário empreendida por diversos paio (2002). agentes no momento em que novos circuitos financeiros passaram a atuar na 5. Complementar a esse ve- produção do espaço urbano, tornando a atividade imobiliária um campo de tor, havia o movimento de expansão da área urbana investimento dos lucros advindos dos setores industrial, terciário e agrícola, o pela ocupação da periferia. apartamento quitinete participava de um dos vetores de crescimento da cidade4, Ver Sarah Feldman (2004). justamente aquele que consolidou a sua face moderna mais visível e festejada: a 6. Cf. Rossella Rossetto (2002, p. 103). verticalização das áreas centrais5. Além de contribuir para a construção dessa imagem, a nova tipologia era resultado de uma operação aritmética cujo objetivo 7. Segundo dados do IBGE de 1940 e 1950 a população principal era estabelecer a melhor equação entre preço da terra, tecnologia, da cidade passa de pouco legislação urbanística e desenho arquitetônico com vistas no maior aproveitamento mais de 1 milhão e 300 mil para quase 2 milhões e 200 do solo urbano por meio da multiplicação de unidades habitacionais6. Mas os mil habitantes. apartamentos quitinetes não respondiam apenas aos interesses econômicos do mercado de compra e venda de imóveis residenciais que então se estruturava. Havia uma demanda crescente de habitação impulsionada pelo intenso processo de urbanização7 e por mudanças profundas nos modos de estar, morar e trabalhar em São Paulo, que coincidiram com transformações nos parâmetros disciplinares que orientavam o discurso e a prática arquitetônica no Brasil desde pelo menos o século XIX. A partir dos anos de 1940, a concepção acadêmica corrente que tomava a arquitetura como obra de arte, definindo-a a partir dos princípios de composição e de distribuição, vai aos poucos cedendo lugar à arquitetura moderna, à lógica construtiva e industrial e à abstração em detrimento da figuração. A nova concepção de arquitetura se afirma não apenas entre os profissionais do ramo, mas também entre os investidores e a clientela, como bem revela a trajetória e a produção do arquiteto francês Jacques Émile Paul Pilon (1905-1962), que abrigou Franz Heep em seu escritório, assim que ele desembarcou em São Paulo em 1947. Contribuíram para a sua aceitação, a divulgação de novos modos de vida e ideais de domesticidade por meio do cinema e de revistas de costumes, variedades, cinema, fotonovelas e de decoração, a maioria delas destinadas ao público feminino, como O Cruzeiro, Manchete, A Cigarra, Cinelândia, Cena 142 Anais do Museu Paulista. v. 21. n.1. jan.- jun. 2013. Muda, Filmelândia, Cine Revista, Cine-fan, Grande Hotel, Capricho, Momento 8. Ver Cristina Meneguello Feminino, A Casa, Vida Doméstica, Jornal das Moças, Querida, Casa e Jardim (1996), Antonio Pedro Tota (2000), Adriana Marta Iri- entre outras publicações que circularam entre os anos de 1940 e 1960, muitas goyen de Touceda (2005); Paula Merlino Machado delas comprometidas com o American Way of Life8. No âmbito erudito, a ação (2007), Marinês Ribeiro dos cultural norte-americana foi fundamental na divulgação e celebração da arquitetura Santos (2010). moderna brasileira9, especialmente a partir da exposição Brazil Builds realizada 9. Essa arquitetura começa no MoMA de Nova York, em 194210. a ser gestada no anos 1930, tendo características e um Mas além dessas iniciativas, e do fato das primeiras faculdades de discurso específico que não arquitetura independentes das escolas de engenharia e de belas artes serem incluía toda a produção de- senvolvida no país no pe- fundadas a partir de meados da década de 1940 (muitas delas por arquitetos ríodo. Ver Carlos Alberto modernos)11, a nova arquitetura foi assimilada pelo mercado imobiliário por meio Ferreira Martins (2010). da ação de diversos arquitetos brasileiros e estrangeiros, que atuavam na produção 10. Ver Nelci Tinem (2002); Marcos Carrilho (2011). da cidade como profissionais especializados, construtores e investidores, associados a outros agentes incorporadores locais ou estrangeiros. A contribuição 11. H Cf. Hugo Segawa (1999). dos estrangeiros no período enfocado se deu pela diversificação das referências arquitetônicas na cidade, não só do ponto de vista estético, mas também técnico 12. O primeiro projeto apresentado para o Edifício e funcional, no sentido do desenho e do arranjo dos ambientes internos. Nesse Atlanta é de 1945 e consta cenário, que se distingue do período anterior, os anos de 1930 e 1940, quando do processo n. 077.001/1945. Um novo outra leva de arquitetos estrangeiros chegou à cidade trazendo na bagagem um projeto foi apresentado no conhecimento muito semelhante ao dominado pelos arquitetos e engenheiros dia 8 de fevereiro de 1950 no processo n. brasileiros, a atuação de Franz Heep se destaca 024.036/1950. Esta última versão foi efetivamente Dono de uma sensibilidade aguda para perceber novas demandas e construída. A autoria de He- atender às mudanças de gosto da clientela, Pilon contratou Heep, em 1947, assim ep foi confirmada pelos estudos de Catharine Gati e que ele desembarcou em São Paulo, confiando-lhe a revisão de vários projetos Marcelo Consiglio Barbosa em andamento em seu escritório. Entre eles, estava um de seus empreendimentos já citados. particulares, o edifício de apartamentos quitinetes Atlanta (1945-1949, Praça da República, 550)12. O prédio é a primeira oportunidade de Heep de trabalhar a nova tipologia na cidade. Seu projeto é bastante significativo, tanto em função de seu agenciamento quanto de sua linguagem, pois como se verá ao longo deste artigo, ele é resultado do cruzamento de várias referências, das experiências pregressas vividas pelo arquiteto nos anos de formação em Frankfurt e no início da carreira em Paris, do impacto que a produção arquitetônica brasileira lhe causou e das adaptações que foi obrigado a proceder em função das demandas locais. O problema da habitação mínima e a definição da tipologia quitinete entre os Estados Unidos e a Europa O apartamento quitinete começou a ser elaborado nos Estados Unidos a partir da adaptação dos hotéis à função residencial em um momento em que algumas cidades, como Nova York e Chicago, passavam por um intenso processo de metropolização e verticalização, também concentrado nas áreas centrais. Aos arquitetos modernos europeus do início do século XX, a transposição também Annals of Museu Paulista. v. 21. n.1. Jan.- Jun. 2013. 143 13. Cf. Jean Louis Cohen parecia adequada aos problemas criados pelo crescimento urbano acelerado, e (1995, p. 56). lhes interessava por dois motivos principais. De um lado, pela oferta de serviços 14. Cf. Jean Louis Cohen complementares à habitação como lavanderias, restaurantes, áreas de convívio e (1995, p. 58). lazer, de outro, pela miniaturização dos espaços domésticos, em especial da 15. Cf. Jean Louis Cohen cozinha que, quando não simplesmente desapareceu, foi reduzida a um (1995, p. 58). equipamento que concentrava fogão, geladeira, pia e armário chamado 16. Cf. Le Corbusier e Pier- “kitchenette”, origem da denominação da tipologia13. rer Jeanneret (1943, p. 41). Segundo Jean Louis Cohen, esses apartamentos inspiraram um dos 17. Cf. Jean Louis Cohen primeiros projetos manifestos de Le Corbusier (1887-1965), o Immeuble-Villa (1995, p. 59). (1922), que “longe de ser (como mais tarde reivindicaria o arquiteto franco-suíço) 18. Cf. Le Corbusier (2004, uma idéia ‘espontânea’ rabiscada na mesa de um restaurante, [...] foi concebido p. 93-110). em resposta à encomenda do Grupo de Habitação Franco-Americano”14. Patrocinador de seu estande no Salão de Outono de 1922, onde o projeto foi exposto pela primeira vez, o grupo estava interessado em “construir edifícios cooperativa que pudessem oferecer aos habitantes todas as vantagens de um hotel de primeira classe com as relativas ao apartamento privado onde eles se sentissem perfeitamente em casa”15. Para Le Corbusier, o programa e a estrutura de funcionamento dos hotéis norte-americanos solucionavam a crise dos serviços domésticos, considerada por ele um fato inexorável que demandava novas soluções habitacionais16. A inspiração do Immeuble-Villa seria reforçada, segundo Cohen “quando [Le Corbusier] descobriu as ‘casas comuna’ durante viagem à Rússia, entre 1928 e 1929”17. Nesse ano, nas palestras proferidas em Buenos Aires o arquiteto insistiu na importância dos serviços comuns em seus projetos diante da referida crise, indicando outras fontes de inspiração para solução alcançada em 1922: os serviços de bordo dos navios e a organização do convento Cartuxa d´Ema, nos arredores de Florença, que ele conhecera em 190718. Se ao longo do tempo o arquiteto franco-suíço foi dissociando seu discurso da idéia dos “serviços de hotel”, em favor da defesa de unidades de habitação comunitárias, mais afeitas ao ideário político do movimento moderno, a preocupação em dotar os seus edifícios de serviços coletivos essenciais à vida urbana remonta ao impacto que os hotéis norte- americanos tiveram em sua obra no início da década de 1920, revelando que suas propostas se fizeram no diálogo entre essas experiências e as vividas na Europa. A oferta de serviços coletivos nos edifícios e na cidade deu suporte à miniaturização dos equipamentos e espaços domésticos, como cozinha e lavanderia, ou à eliminação de espaços como salas de visitas, recepção, salas de jogos e afins, diminuindo a área dos apartamentos e, com isso, possibilitando a construção de um número maior de unidades habitacionais, objetivo compartilhado, ainda que com finalidades muito diversas, tanto pelo mercado imobiliário quanto pelos promotores de políticas habitacionais públicas face ao intenso processo de urbanização. Se a oferta de serviços comuns foi prontamente assimilada por Le Corbusier em seus projetos, a discussão sobre o espaço mínimo, testada inicialmente 144 Anais do Museu Paulista. v. 21. n.1. jan.- jun. 2013. nas Casas Geminadas (1926-1927), da exposição Weissenhofsiedlung (1927) 19. Cf. Jean Louis Cohen (1995, p. 59). de Stuttgart, só seria enfrentada anos mais tarde nos projetos que o arquiteto fez para o industrial Edmond Wanner, dos quais se destaca o Edifício Clarté (1930- 20. Cf Ana Claudia Castilho Barone (2002, p. 32). 1932)19. Construído em Genebra, na Suíça, em colaboração com Pierre Jeanneret (1896-1967), o edifício destinado ao mercado imobiliário local tinha, ao lado de 21. Cf. Barbara Miller Lane (1985). apartamentos duplex de dois e três dormitórios, um pequeno estúdio, com as mesmas dimensões e as formas de organização do que se denomina aqui de 22. Cf. William J. R. Curtis (2008, p. 249) e Luís Octá- quitinete. vio da Silva (2012). É possível que além das referências já mencionadas, o projeto em 23. Os dados sobre a forma- Genebra repercutisse também os debates sobre habitação social travados nos ção e a atuação de Heep em Frankfurt constam do pro- primeiros Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAM), entre 1928 cesso de aquisição do regis- e 1933, em especial os dedicados aos padrões mínimos de existência20. Contudo, tro definitivo do Conselho Regional de Engenharia, se em Le Corbusier esses debates ocuparam uma posição lateral em seu discurso Arquitetura e Agronomia de e em sua prática, dado o enfoque urbanístico adotado para o problema São Paulo (Crea SP), n. 9878. habitacional, para o grupo alemão que pautou em grande medida os primeiros encontros do CIAM, eles foram essenciais. Mesmo antes da criação dessa 24. Informação retirada da declaração do arquiteto importante organização mundial de arquitetos modernos, os alemães já se Adolf Gronau em favor de dedicavam à construção de conjuntos habitacionais públicos, as experiências em Heep proferida em 18 de setembro de 1952, constan- Stuttgart, repercutindo nos debates travados no segundo congresso realizado nesta te de seu processo para aquisição do registro defini- cidade em 1929. tivo do Crea SP. Na realidade, o problema da célula habitacional já tinha sido bastante 25. Tradução do ofício do discutido e investigado na Alemanha. O enfoque dado naquele país, contudo, a Arquiteto Erich Brendel, partir da constituição da República de Weimar (1919-1933) era bastante diverso, Conselheiro de Construções Estadual, de 4 de setembro pois participava de um programa de habitação público, coletivo destinado às de 1952, constante do pro- camadas populares que reunia industriais da construção civil, intelectuais, arquitetos cesso de aquisição do regis- tro definitivo do Crea SP de e classes trabalhadoras21. Adolf Franz Heep. Em Frankfurt, os sindicatos e as cooperativas habitacionais conseguiram 26. Cf. Marcelo C. Barbosa o apoio do prefeito Ludwig Landmann, responsável pelo investimento em um (2012, p. 313-314). programa habitacional de larga escala dirigido por Ernst May (1886-1970) de 1925 a 193022. O programa estava vinculado à Escola Municipal de Artes Aplicadas de Frankfurt (Städelschule), onde Heep estudou de 1923 a 192623. Além dos cursos ministrados por membros do Departamento de Construções de Frankfurt, como o Curso Especial de Construções de Moradias e Cidades proferido por Ernest May nesse período24, o programa previa a contratação dos melhores alunos como estagiários e, depois de formados, como arquitetos25. Este foi o caso de Heep, que trabalhou no conselho a convite de Adolf Meyer (1881-1928), seu professor na classe de arquitetura, até 1928, participando de um programa que foi responsável pela construção de cerca de quatro mil unidades, no qual Ernest May procurou... padronizar um grande número de componentes para a construção, elaborando desenhos que definiam detalhes padrões para a produção e montagem de janelas (de madeira ou de ferro), batentes metálicos para as portas, ferragens para portas e janelas, ferragens para o mobiliário, cozinhas, elementos externos, etc, obtendo economia e estabilizando os preços destes elementos padronizados numa época de crise26. Annals of Museu Paulista. v. 21. n.1. Jan.- Jun. 2013. 145 27. Cf. William J. R. Curtis Parte dessas pesquisas se traduziram na criação de espaços engenhosos (2008, p. 249) e Kenneth para armazenagem de camas e outros móveis concebidos segundo a lógica de Frampton (1997, p. 166-67). uso de cada ambiente. Um dos exemplos mais acabados dessas pesquisas foi 28. Cf. Fernando Atique projetado por Margarete Schütte-Lihotzky (1897-2000)27, cuja gênese remonta, (2010, p. 85). mais uma vez, à experiência norte-americana28. Nos Estados Unidos, como bem 29. Cf. Fernando Atique aponta Fernando Atique, as áreas de serviços começaram a ser repensadas na (2010, p. 85), William J. R. Curtis (2008, p. 249); Ken- primeira metade do século XIX por meio de obras como A Treatise on Domestic neth Frampton (1997, p. 166-67). Economy, for the Use of Young Ladies at Home and at School (1841), na qual a educadora Catherine Esther Beecher (1800-1878) “postulava regras para a 30. Ver Philippe Dehan (1987). simplificação do trabalho doméstico e dava instruções para a valorização do trabalho feminino”. Beecher teve uma influência grande em seu tempo, conquistando 31. Cf. Elgson Ribeiro Go- mes (2008, p. 37). muitas seguidoras, entre elas a economista e grande expoente do taylorismo aplicado na esfera doméstica, Christine Frederick (1883 - 1970), autora no livro 32. Marie Heep escreve a Le Corbusier em 27 de junho Household Engineering: Scientific Management in the Home (1915), e Mary de 1952. O arquiteto lhe responde em 8 de julho de Pattison (1869-1951), autora do livro Principles of Domestic Engineering (1915). 1952, recebendo em 22 de Nessa obras, ainda segundo Atique, a “ideia de cozinhas compactas, com julho de 1952 uma carta de agradecimento de Marie encaixes para eletrodomésticos e muitas prateleiras para os diversos utensílios Heep por ter atendido o seu domésticos eram recomendadas” pelas autoras, despertando o interesse de Ernest pedido de ajuda. As referi- das cartas pertencem ao May. Foi a partir do contato com a discussão norte-americana que May orientou acervo da Fondation Le Schütte-Lihotzky a aplicar as proposições de Frederick e Pattison na formulação de Corbusier. um novo desenho de cozinha, que afinal resultou na conhecida “Cozinha de Frankfurt”29. Heep participa dessas discussões e vivencia os espaços e as proposições delas resultantes, aproveitando a experiência, como se verá mais adiante, em São Paulo. Antes de chegar ao Brasil, contudo, Heep se transfere para Paris, afastando-se do Departamento com a morte de Adolf Meyer, em 1928. Na capital francesa, Heep trabalha inicialmente no escritório de André Lurçat, onde conhece Jean Ginsberg (1905-1983)30, de quem se tornaria sócio alguns anos mais tarde. Por intermédio de Lurçat, Heep é apresentado a Le Corbusier, com quem começa a trabalhar no período noturno, sem remuneração, mantendo a atividade profissional no escritório de Lurçat durante o dia31. No período em que trabalhou para Le Corbusier, de 1928 a 1932, foram desenvolvidos os projetos da Villa Savoye (1929) em Poissy; de uma Vila em Cartago na Tunísia; do Edifício Carité (1930) em Genebra; da Cité de Refuge (1929) e do Pavilhão Suíço (1930) em Paris; do Palácio dos Sovietes (1931) e do Palácio Centrosoyus (1929) em Moscou e da Vila Stein em Garches, cuja participação de Heep é mencionada por sua esposa em carta endereçada ao arquiteto franco-suíço, na qual solicitava o reconhecimento do trabalho de seu marido em seu escritório, com vistas na aprovação do registro definitivo do Crea SP32. O aprendizado na Städelschule e o treinamento no Conselho de Construções que incluíam, como se viu, além das pesquisas sobre o espaço mínimo esforços de racionalização da construção foram, sem dúvida, assimilados por Heep como revelam os projetos que concebeu em Paris de 1932 a 1945-7, com o sócio, o arquiteto polonês Jean Ginsberg. Contudo, ao contrário do que ocorria em 146 Anais do Museu Paulista. v. 21. n.1. jan.- jun. 2013. Frankfurt, em Paris esse treinamento foi empregado em edifícios privados promovidos pelo mercado imobiliário local para uma clientela de classe média. Tal como ocorria em Nova York, na capital francesa essa tipologia atendia a um público típico das grandes cidades e a um mercado imobiliário em expansão. Desses projetos, merecem destaque os edifícios de apartamentos destinados ao mercado de locação, construídos nas avenidas Versalhes (1933-1934) e Vion-Whitcomb (1934-1935) pelas possibilidades de comparação com os construídos pelo arquiteto germânico em São Paulo a partir de 1947. Nesses edifícios, percebe-se o esforço de Heep em sintetizar as questões funcionais, técnicas e estéticas tanto no arranjo da planta quanto na fachada. Esse empenho se expressa de diversas maneiras, seja na tentativa de racionalizar a construção através da concentração em um mesmo espaço das áreas molhadas (banheiro, cozinha e lavanderia), de circulação e de infraestrutura (tubulações de esgoto, água, elétrica e calefação), seja na diminuição dos ambientes como a cozinha, espaço reduzido que se desenvolvia linearmente para atender às necessidades específicas da produção de alimentos, conforme os ensinamentos aprendidos em Frankfurt. O melhor exemplo do compromisso do arquiteto com a racionalização construtiva e a funcionalidade programática nessa época é o estúdio do Edifício da rua des Pâtures (1935-1936), em Paris (Figura 1). Nesse apartamento, Heep lança mão de móveis que delimitam os espaços de estar e de repouso, como o armário junto à porta de entrada, e de formas flexíveis e justapostas, como a parede curva que cria o nicho para a entrada da cozinha e abre espaço para a bancada, além da que divide a cozinha do banheiro, delimitando o espaço da bacia e da banheira. Nele, o arquiteto germânico resolvia com elegância e eficiência os problemas relativos à distribuição funcional do programa residencial em áreas de dimensões muito mais reduzidas do que aquelas experimentadas por Le Corbusier no Edifício Clarté, porém mais próximas das experiências frankfurtianas, das quais participara durante a sua formação. Ao desembarcar no Brasil, Heep trazia na bagagem a experiência em Frankfurt ao lado de Ernst May e Adolf Meyer, e a vivida em Paris com Le Corbusier e Jean Ginsberg. E elas puderam ser aproveitadas pelo arquiteto em São Paulo, porque no momento de sua chegada, o mercado imobiliário paulistano não só passava por uma profunda reestruturação como se mostrava sensível à arquitetura moderna. A assimilação dessa arquitetura pelo mercado imobiliário, tanto do ponto de vista da linguagem quanto da lógica espacial e construtiva, pode ser explicada em função da preocupação com a racionalização da construção com vistas a uma economia comprometida com a maximização dos lucros imobiliários, mas também porque as propostas de despojamento, integração e redução dos espaços iam ao encontro das mudanças da sociabilidade urbana então identificadas pelos investidores durante o processo de metropolização e modernização. É o que atesta a contratação de Heep por Jacques Pilon, dono de uma das maiores empresas Annals of Museu Paulista. v. 21. n.1. Jan.- Jun. 2013. 147 Os apartamentos quitinetes de Heep em São Paulo Figura 1 - Adolf Franz Heep e Jean Ginsberg. Edifício rua des Pâtures (construído entre 1935 e 1936). Da esquerda para a direita, de cima para baixo: vista da fachada principal, planta do pavimento térreo, planta do pavimento tipo e vista do estúdio. Em destaque em vermelho o estúdio. Fotografia da autora, planta do acervo do Institut Français d’Architecture (IFA) e fotografia do acervo do DEHAN, 1987. 33. Cf. Maria Adélia Apare- paulistanas de projeto e obra naquele momento, e a confiança nele depositada cida Souza (1994), Nabil G. pelo arquiteto francês ao encarregá-lo de acompanhar e revisar uma série de Bonduki (1998); Maria Ruth Amaral de Sampaio (2002), projetos em andamento, segundo os parâmetros modernos em detrimento dos Rossella Rossetto (2002), Sarah Feldman (2005). acadêmicos até então adotados em seu escritório. O mercado imobiliário era, desde o início do século XX, um dos principais vetores de investimento econômico de São Paulo, mas foi só a partir da década de 1940 que ele se ampliou e diversificou. A sua reestruturação com a institucionalização da incorporação imobiliária é explicada por um conjunto de fatores33: da conjuntura da guerra à reordenação das atividades produtivas no país, incluindo a emergência de novos circuitos financeiros que repercutiram nos tipos e nas formas de provisão dos empreendimentos imobiliários e a promulgação da Lei do Inquilinato, em 1942. 148 Anais do Museu Paulista. v. 21. n.1. jan.- jun. 2013. Do ponto de vista do setor residencial, a referida lei e a criação de um 34. Cf. Nabil G. Bonduki sistema de crédito possibilitaram o surgimento de um mercado de compra e venda (1998, p. 218-245). de imóveis que suplantou o mercado rentista, até então preponderante, com 35. Cf. Sarah Feldman conseqüências diversas para cada uma das camadas da sociedade. Para a elite (2005, p. 158). seus efeitos foram mínimos. Mas para as classes de menor poder aquisitivo, cujas 36. Cf. Maria Lucia Caira Gitahy; Paulo César Pereira possibilidades de participarem dos programas de financiamento eram quase nulas, Xavier (2002, p. 30). as mudanças foram fatais. Pressionados pelos proprietários, constrangidos pelo 37. Ver Carlos A. C. Lemos aumento do aluguel e premidos pela insegurança da condição de inquilinos, os (1976). trabalhadores deixaram seus imóveis de locação por cortiços e favelas na região 38. Cf. Lucia Helena Gama central ou moradias autoconstruídas nas periferias, que se expandiram (2004, p. 138-45) consideravelmente34. Para as classes médias, por sua vez, os edifícios verticais se 39. Cf. João Manuel Cardo- tornariam ao longo dos anos a “principal” alternativa de moradia, as tipologias so Mello; Fernando A. No- variando em função da sua maior ou menor capacidade de endividamento. Se vais (1998). para aqueles com maior poder aquisitivo, a área não se configurava como uma variável tão decisiva quanto à localização do empreendimento (escolhida em função da exclusividade do uso residencial)35, ao menos do ponto de vista econômico, para os remediados ela era um fator essencial. Dado o seu menor poder aquisitivo e o desejo de permanecer nas áreas centrais da cidade, seja pela inserção social e simbólica que ela possibilitava, seja pela proximidade dos espaços de trabalho, serviço, comércio e lazer e daqueles providos de infraestrutura urbana, essa camada da sociedade passou a morar em apartamentos com áreas cada vez mais reduzidas. Daí a preponderância entre os investimentos dos anos 1940 em diante dos apartamentos quitinetes, espaços multifuncionais com áreas que variavam de 25 a 40m2. O surgimento das quitinetes em São Paulo, contudo, não pode ser explicado apenas em função do preço da terra e do interesse imobiliário em multiplicá-la por meio de apartamentos de área pequena e, por isso mesmo, em grande quantidade por edifício. Além dos aspectos econômicos, a origem da nova tipologia estava vinculada aos processos de metropolização e modernização e, por isso mesmo, com o surgimento de novos atores e uma nova sociabilidade urbana, algo experimentado nos Estados Unidos e na Europa como já mencionado. Originalmente as quitinetes eram destinadas a um público de solteiros e jovens casais, formado por pequenos funcionários do comércio, indústria e serviços urbanos, alguns deles recém chegados a São Paulo, e a maioria em início de carreira36. Se o modo de vida desses novos clientes impulsionava e, ao mesmo tempo, adaptava-se às quitinetes, é certo também que a cidade lhes dava suporte. De um lado, porque a industrialização liberou a casa das atividades de preparação dos alimentos e do vestuário37 e, de outro, porque a modernização fez da cidade um espaço não só de trabalho, mas também de lazer, de serviço e de consumo, que animava a sociabilidade fora do espaço residencial com cinemas, teatros, museus, livrarias, bibliotecas, restaurantes, confeitarias, cafés, bares e casas noturnas38. É nesse momento que um novo modo de vida mais despojado e menos hierarquizado se afirma, “desaparecendo, para homens e mulheres, a distinção Annals of Museu Paulista. v. 21. n.1. Jan.- Jun. 2013. 149 39. Cf. João Manuel Cardo- rígida entre a roupa de ficar em casa e o traje de sair, de sair para a cidade, para so Mello; Fernando A. No- visitar fulano ou sicrano, de ir à missa todos os domingos, de ir às festas” e que o vais (1998). vestuário foi simplificado, facilitando o dia a dia e colocando em desuso “o suspensório, a abotoadura, a barbatana da camisa social, o pregador de gravata, o lenço de pano, a cinta-liga, a anágua e a combinação.”39. Na casa algo semelhante ocorreu. Com o tempo, vai se afirmando uma vivência igualmente mais simples e integrada que possibilitava a agregação da sala de jantar à de estar, a eliminação de ambientes como os salões de visita, as salas de fumar, de jogos, de brinquedos, de costura, o gabinete, o quarto de empregada e a lavanderia e a diminuição da cozinha e áreas de serviço a depender da tipologia e do público atendido. É nesse quadro econômico, social e cultural que a quitinete surge em São Paulo e que a contribuição de Heep se destaca desde o seu primeiro projeto no ramo, o Edifício Atlanta. Como nos edifícios de Paris, Heep agregou na parte dos fundos do prédio a circulação e a área molhada, reeditando nas paredes da escada a solução de concentrar as tubulações de água, esgoto, incêndio e lixo (Figura 2). A solução expressa o intento de conjugar os problemas técnicos, infra- estruturais, do âmbito da engenharia, com as soluções arquitetônicas, formais e construtivas, típico da produção moderna de arquitetura. Preocupação semelhante se expressa no desenho do peitoril da varanda, misto de proteção e assento que se configura como um espaço de estar e de expansão da sala em direção à Praça Figura 2 – Adolf Franz Heep. Edifício Atlanta (construído entre 1945-1949), São Paulo. Planta do térreo e do 1º ao 10º pavimento. Fotografia e desenhos da autora. 150 Anais do Museu Paulista. v. 21. n.1. jan.- jun. 2013.
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