Organização Fernanda Mota Alves Gerd Hammer Identidades Patrícia Lourenço em trânsito Identidades em trânsito Organização Fernanda Mota Alves ∙ Gerd Hammer ∙ Patrícia Lourenço Organização IDENTIDADES EM TRÂNSITO Organização: Fernanda Mota Alves, Gerd Hammer e Patrícia Lourenço Capa: Sal Design Studio Revisão: Moirika Reker e Margarida Louro, CEC Edição: Centro de Estudos Comparatistas da FLUL © Autores Edições Húmus, Lda., 2018 End.Postal: Apartado 7081 4764-908 Ribeirão – V. N. Famalicão Tel. 926 375 305 [email protected] Impressão: Papelmunde 1.a edição: Outubro de 2018 Depósito Legal n.o: 445847/18 ISBN: 978-989-755-349-3 Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projecto UID/ELT/0509/2013 Índice 7 Nota introdutória Fernanda Mota Alves, Gerd Hammer e Patrícia Lourenço 13 A viagem de Ulisses ou encontrar os monstros e conhecer os homens José Pedro Serra 27 “Veja agora o juízo curioso”. Os Lusíadas: poesia e consciência identitária Isabel Almeida 49 “Para viajar basta existir” (Bernardo Soares) – viagens em torno de si Paula Morão 65 Viagens sem regresso. Imagens da deportação na literatura do século xx António Sousa Ribeiro 81 O “reverso-do-moderno” nas narrativas migrantes de mulheres africanas contemporâneas Catarina Martins 105 Cumplicidades reorientalistas, reconfigurações identitárias: Salman Rushdie no mercado cultural global Ana Cristina Mendes 121 Um caso da hiperidentidade portuguesa na diáspora de Goa: Vimala Devi Everton V. Machado 139 O testemunho do “retorno”: deslocamento, história ilegítima, desidentificação Elsa Peralta 159 Migrações, miscigenação e metamorfose das formas no cinema contemporâneo: os casos de Pere Portabella, Léos Carax e the Wachowskis Fernando Guerreiro NOTA INTRODUTÓRIA Os ensaios reunidos no presente volume, que evoca o encontro científico organizado pelo Centro de Estudos Comparatistas em 12 de Outubro de 2016, constituem os resultados do debate científico havido nessa ocasião e da reflexão levada a cabo por investigadores especializados nas matérias em apreço. A viagem e a migração constituem só por si um desafio identitário, já que o encontro com o Outro coincide com a re-configuração de si mesmo. A cultura europeia produziu narrativas de viagens que se tornaram grandes referências, que acompanharam a expansão colonial e capitalista e que se apresentam como elementos de uma memória cultural de que têm vindo a ser lugares e objectos, por vezes enaltecidos, mas também banalizados ou contes- tados na revisitação crítica (recordemos a Odisseia e Os Lusíadas como casos exemplares). No presente, à sempre precária ligação da memória cultural a uma comunidade de contornos definidos e território delimitado é recusada qualquer legitimidade no contexto da reflexão crítica. Para tal contribuíram os conflitos bélicos do século xx até aos nossos dias e a intensificação dos fluxos demográficos e culturais produzida pelo processo da globalização. Atingiu-se, actualmente, uma fase aguda deste processo, associada aos confli- tos contemporâneos que provocam intermináveis ondas de refugiados – um fenómeno cujas consequências culturais não são ainda previsíveis. Assiste-se, assim, a um acréscimo de visibilidade por parte de identida- des individuais e até comunitárias problemáticas, marcadas pelo hibridismo e pela ambiguidade, a que frequentemente a questão do género não é alheia (antes se apresenta como factor de complexidade adicional). Fernanda Mota Alves | Gerd Hammer | Patrícia Lourenço 8 Este volume propõe-se abordar estas questões, colocando o seu enfo- que no modo como a viagem e a experiência migratória em geral contri- buem para o questionamento e a reformulação das identidades e analisando aspectos da sua concretização no plano da manifestação cultural e estética na contemporaneidade. A nota introdutória tem por objectivo uma apre- sentação sucinta dos ensaios coligidos, tendo em conta o modo como iden- tificam e problematizam as questões implicadas na temática acima descrita. A primeira parte deste volume inclui os ensaios que reflectem sobre textos do cânone literário europeu, o seu papel fundador, as potencialidades identitárias e as suas possíveis ou efectivas perversões no enquadramento histórico e cultural do ocidente. Sabendo que a incompletude é, pela natureza da tarefa, marca inde- lével de qualquer colectânea de ensaios, esta sê-lo-ia ainda maior, se do presente volume a épica homérica estivesse ausente, uma vez que é sobre o manto das relações que se entretecem entre movimento e identidade que navega o engenhoso Ulisses. A Odisseia é o locus de construção da matricial viagem que enforma a consciência ocidental do homem enquanto ser em trânsito – entre trânsitos, na verdade, pois são múltiplos os movimentos que configuram a sua condição de possibilidade. É ao herói dos mil ardis que se impõe o desígnio da errância, a isso incumbido pela necessidade tantas vezes confundida com a mão caprichosa dos deuses, sempre prontos a reposicionar o homem no tabuleiro a que foi, por inerência à sua humana condição, votado. Ora, cumpre ao helenista José Pedro Serra não só a evo- cação da homérica viagem mas, ainda, a sua recolocação – ou resgate – no seio do encontro que lhe é próprio: o do homem consigo mesmo. Como preconiza o autor, trata-se esta de uma expedição de limites que em muito ultrapassa os mares nunca dantes vindimados – mas que se oferece enquanto campo fértil à ideia da descoberta que lhe é tão cara – e que compreende uma exploração de fronteiras, a saber, a permeabilidade entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, entre humano e não humano, entre social e bestial, entre memória e esquecimento. É em particular sobre esta última dimensão que incide o olhar analítico de José Pedro Serra, desenlaçando no poema homérico os fios que cruzam movimento, memória e identi- dade: o movimento como condição de possibilidade do conhecimento, a memória como possibilidade de inscrição do homem numa linha narrativa que o situa, e que lhe permite construir uma identidade. Desta não estão Nota introdutória ausentes fracturas múltiplas que constituem o herói homérico, situado 9 entre a imortalidade a que aspira e a irredutível humanidade que o inscreve. Isabel Almeida, no seu ensaio sobre Os Lusíadas, refere a permanência da aura desta obra ao longo dos séculos, sendo sempre reconhecida como refe- rência identitária para os portugueses, em especial em momentos de carência de uma “fonte de energia simbólica”. Uma explicação para este facto residirá no ethos que prevalece no texto, na crítica desassombrada de comportamentos e eventos narrados. Ao alargamento da experiência, conducente a um maior conhecimento do mundo viabilizado pela viagem, contrapõe-se a visão nega- tiva das interacções humanas, verificadas no exemplo de falhas morais que a todos unem e que se revelam eficazes na evolução adaptativa de Vasco da Gama ao longo da sua viagem. Conforme afirma Isabel Almeida, a caracterização disfórica das figuras que povoam Os Lusíadas “vem a ser o nosso espelho”. O ensaio de Paula Morão relembra que existe uma tradição da viagem que significa mais do que um movimento no espaço físico de um lugar para o outro. Há viagens no interior de si, em busca da identidade e do eu, como testemunham poemas de Ramos Rosa, Baudelaire, Rimbaud ou Álvaro de Campos. E Bernardo Soares afirma: Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha de deslocar para sentir. Acentua-se, assim, a dimen- são radicalmente subjectiva da viagem, que decorre, em certa medida, do contexto histórico-cultural que valoriza a interioridade e os seus universos. É, certamente, esta valorização da experiência subjectiva inerente à deslocação que surge como pressuposto cuja essencialidade é colocada em causa por António Sousa Ribeiro no seu ensaio sobre a deportação na literatura do século xx. Uma vez constatada, nas reflexões iniciais, a inviabilidade efectiva do regresso, a viagem vem a ser interrogada, a seguir, a partir do “seu avesso disfórico”, uma vez que pensar nas migra- ções dos desfavorecidos implica reconhecer que estão sempre associadas ao sofrimento e ao risco de vida, conforme a actual crise dos refugiados demonstra. A deportação no contexto do Holocausto figura como o tema central de textos que, reportando-se, em termos de género, à literatura de viagens, representam a deslocação como uma situação de clausura e consequente, ainda que paradoxal, imobilidade dos seres humanos transportados. São estes os fundamentos apresentados por António Sousa Ribeiro para a sua leitura de Der siebente Brunnen, de Fred Wander, obra que descreve a realidade concentracionária e apresenta a condição das Fernanda Mota Alves | Gerd Hammer | Patrícia Lourenço 10 suas vítimas, prisioneiros de viagem, excluídos do mundo e destinados à aniquilação. Os ensaios que constituem a segunda parte do volume representam um amplo leque de abordagens às questões levantadas pelo fenómeno das migrações contemporâneas. A leitura de dois romances africanos, da escritora nigeriana Chimamanda Adichie e da escritora franco-senegalesa Marie Ndiaye, marca o ponto de par- tida de Catarina Martins para uma reflexão sobre a procura de identidade de mulheres africanas na migração e no regresso a África e sobre um feminismo africano e anticolonial. Afirmando que “é sobretudo a dimensão arrogante e metonímica da razão moderna que me interessa convocar aqui para uma reflexão sobre os feminismos e as teorias feministas”, Catarina Martins mostra como a categoria “género”, devido ao colonialismo, se tornou num modelo para uma explicação da organização social, mesmo para sociedades “onde a categoria ‘mulheres’ não existia enquanto grupo”. Assim, e “para a teoria feminista em geral, o desafio que Amadiume e Oyewùmí colocam é o de pen- sar a possibilidade de uma organização social em que o sexo não seja estru- turante”. Nestas considerações, a literatura ficcional assume para a autora um papel importante, na forma como consegue antecipar a compreensão teórica e combater a “indolência da razão moderna ocidental”. Everton V. Machado propõe uma leitura de A literatura indo-portu- guesa, de Vimala Devi e Manuel de Seabra (1971) e da colectânea de poemas Súria (Devi, 1962) recorrendo ao conceito de hiperidentidade portuguesa proposto por Eduardo Lourenço. A vida e obra da escritora goesa Vimala Devi, nascida em Goa como Teresa da Piedade de Baptista Almeida, católica e emigrada na Europa, mostra a sempre difícil procura de uma identidade entre a “hipertrofia da consciência nacional”, uma “colonização-outra” e uma Goa hindu, que é parte integrante da Índia; esta busca identitária consistirá, assim, num desencontro entre o “ser ideal” e o “ser real”. O conceito da indústria cultural, proposto por Theodor W. Adorno e Max Horkheimer no início da década de 1940, serve a Ana Mendes como base para a sua análise da obra de Salman Rushdie “na qualidade de agente e mediador cultural” num mercado literário globalizado. Nesta perspectiva, a obra de Rushdie significa também uma “permanente reflexão sobre os desafios identitários colocados pela viagem e a migração”, enquadrando- -se no conceito do reorientalismo, “entendido como discurso facilitador
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