A realização desta obra partiu de um esforço coletivo e constitui uma celebração por agregar conhecimento e sabedoria da tradicional arte de contar histórias. As aves livres na natureza e a contemplação destes seres tão especiais, sem a interferência destrutiva do ser humano em seus habitats, delineou o eixo temático e fio condutor desta especial antologia de contos. Copyright © 2021 dos autores e da Editora Ecodidática Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou utilizada por meio eletrônico ou impresso, ou ainda por qualquer outra forma de reprodução, sem a expressa autorização dos autores e da Editora Ecodidática. O conteúdo presente em algumas narrativas pode não representar a posição oficial da Editora Ecodidática que é a de proteção e de conservação da vida livre na natureza. Incluímos como práticas nocivas: aves engaioladas; o tráfico, a venda e a caça predatatória de animais silvestres. Os textos desta obra alinham-se às normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil em 2009. Contos e biografias: revisão dos autores À memória de Daniel da Silva Araujo Organização, edição e imagens: Gleidson Melo e Marta R. Silva-Melo Diagramação e capa [maria-ferrugem]: Gleidson Melo Passarinhando Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Dia desses estava eu com meu coração arranhado por unhas- -de-gato. O céu estava cinzento, apesar do sol radiante. Observadores de pássaros [livro eletrônico] : Oh meu Deus, tem misericórdia de mim! Então, resolvi passari- contos de passarinhos : antologia de contos : nhar, saí voando por aí [...] Volume 2 / organização de Gleidson André Pereira de Melo, Marta Regina da Silva-Melo. -- Campo Tentei sair, mas fui provocado por aquela pessoa que me disse: Grande, MS : Editora Ecodidática, 2021. – Não vá embora a essa hora, voltar nessa longa estrada PDF durante à noite e madrugada pode ser perigoso. Durma na Vários autores. minha cama. ISBN 978-65-996629-1-1 Preparou uma sopa de legumes bem quentinha, ensinou-me diferentes cantos de pássaros, trouxe um cobertor e dormi o 1. Aves 2. Contos brasileiros - Coletâneas melhor sono, o sono da simplicidade e do afeto. I. Melo, Gleidson André Pereira de. II. Silva-Melo, Marta Regina da. Despedi-me no outro dia e algo mágico me aconteceu: vi que o mundo tem motivos para viver e ser feliz, voltei a acredi- tar em boa alma humana, amei ser acolhido e voltei voando para casa. Bendito homem passarinho... (p. 69) 21-90635 CDD-B869.308 Índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Antologia : Literatura brasileira B869.308 Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380 https://editoraecodidatica.com.br [email protected] SUMÁRIO Sabiá-laranjeira Ivete Nenflidio.............................................................. 59 O Papagaio e a sua aventura Jaquilza Gomes.......................................................... 61 INTRODUÇÃO................................................................... 8 Urubus Nico di Angelo Fierro.................................................. 63 CONTOS DE PASSARINHOS............................................. 11 Urubu-rei e a Saíra Keli Vasconcelos......................................................... 65 Horizonte destino Passarinhando Patrícia Ferreira............................................................ 12 Daniel da Silva Araujo................................................ 69 Na visão de um pássaro O homem-pássaro Érika Cristina Faria de Souza...................................... 16 Olivaldo Júnior............................................................. 70 O milagre da meia-noite feliz A floresta escura e o pássaro sagrado Ione Morais................................................................... 20 Andersen Medeiros..................................................... 74 Não é apenas conversa de passarinho Extinção Eduardo R. Alexandrino e Gabriel G. M. Mesquita 22 Ademir Moreno Aguilar.............................................. 79 As estranhezas da tiriba Lica Eduardo R. Alexandrino............................................. 27 SOBRE OS AUTORES......................................................... 83 A pardal que se embolou Vanessa Morais............................................................ 33 Pulseiras da sorte Larissa Alves Corrêa................................................... 40 Manifesto de um passarinho Marta Regina da Silva-Melo...................................... 43 Silegoísmo Danilo Boscolo............................................................. 46 Pássaro azul Ane Coutinho.............................................................. 52 A Coruja e o Pica-pau Thithi Johnson............................................................... 53 O dono do jardim Rita de Cássia Travagin Klein..................................... 56 INTRODUÇÃO Essa prática tão importante foi destacada com a con- tribuição dos observadores de aves com o acréscimo de 40 novas espécies, na nova lista do Brasil, sendo que a maioria foi devido ao registro de cidadãos cientistas. Observar os pássaros é estar em contato com a nature- za. Isto nos traz benefícios psicológicos, cognitivos e fisioló- Embora não seja ornitóloga, as aves me encantam. gicos: bem estar físico e mental; prende a atenção; reduz Sinto-me privilegiada por viver rodeada de passari- a fadiga; diminui depressão e o estresse; reduz ansiedade nhos. Com dois terrenos pontuados por árvores nati- vas do cerrado, um resquício da mata que cobria a e tensão; aumenta a interação social; entre outros. Mas região no passado, convivo com diferentes aves ao longo acima de tudo, observar os pássaros em vida livre ajuda a do ano. Dependendo das flores e frutos silvestres no quin- conservá-los nos seus ambientes naturais, aumenta o co- tal, em cada época é uma orquestra diferente. nhecimento sobre as espécies, gera informação e ciência. Neste ano de 2021, as araras-canindé (Ara ararauna) E essa é a premissa maior desta coletânea de contos, em marcaram forte presença nos meses de agosto e setem- que as pessoas podem observar as aves livres através da bro, gritando antes do sol nascer ao se fartarem das flores sua janela, do seu quintal, da sua cidade ou podem até e néctar do açoita-cavalo (Luehea grandiflora). se deslocar para ver os pássaros em outras regiões, incen- No meio da tarde, falando ao telefone com uma ami- tivando o desenvolvimento sustentável, ao mesmo tempo ga jornalista norte-americana, que escrevia para a revista que ajudam a promover a consciência ambiental e a con- da Audubon, ela ficou encantada ao ouvir os passarinhos servação da biodiversidade. do quintal, entremeando as nossas conversas. E é isso que Convido você a fazer uma leitura das diferentes for- me encanta, morar num país rico em biodiversidade, em mas, impressões e manifestações dos autores sobre as especial de aves, com 1971 espécies ocorrentes, segundo aves que fazem parte do nosso cotidiano, promovendo a última lista publicada em 2021, pelo Comitê Brasileiro de o aprendizado, reforçando as diversas culturas, a ciência Registros Ornitológicos (CBRO)*. e a educação. As aves atraem a atenção dos homens desde a antigui- dade, não só pelo tamanho, canto ou cores, mas sobretu- do pela capacidade de interação com os humanos, sen- do retratadas desde os tempos mais remotos, inclusive em Dra. Neiva Guedes pinturas rupestres. Quando os portugueses chegaram no Presidente do Instituto Arara Azul Brasil ficaram fascinados pelas araras, periquitos e papa- gaios, e naquela época esse fascínio deu início à retirada, captura e transporte de inúmeras espécies de aves. Pas- sados 500 anos, essa prática nefasta ainda persiste com o tráfico de animais silvestre em todo mundo, mas por outro lado, o estudo e a observação de aves na natureza tam- bém tem crescido exponencialmente. A América do Sul é o continente das Aves. O Brasil jun- tamente com Colômbia e Peru se destacam em núme- * PACHECO, J. F.; et al. Lista comentada das aves do Brasil pelo Comitê Brasileiro de Registros Ornitológicos – segunda edição. CBRO, 2021. Dispo- ro de espécies, onde a prática da observação tem sido nível em: https://doi.org/10.5281/zenodo.5138368 cada vez mais frequente e crescente. 8 I Observadores de Pássaros: Contos de Passarinhos - Antologia de Contos Volume 2 Contos de Passarinhos I 9 Cuide bem da natureza Hoje acordei cedo e contemplei mais uma vez a na- CONTOS DE PASSARINHOS tureza. A chuva fina chegava de mansinho. O encanto e aroma matinal traziam um ar de reflexão. Enquan- to isso, o meio ambiente pedia socorro. Era o homem construindo e destruindo a sua casa. Poluição, fome e desperdício deixam o mundo frágil e degradado. Dias mais quentes aquecem o “planeta água”. Tenha um instante com a paz e a harmonia. Reflita e conserve para uma consciência coletiva. Ainda há tempo, cuide bem da natureza. (Gleidson Melo) Horizonte destino um pouco, é melhor tirar quando dá) olho em volta e por toda parte vejo borboletas, abelhas, moscas, vespas, be- Patrícia Ferreira souros, grilos, gafanhotos, pequenas aves, lagartos e ratos que se mexem pra lá e pra cá. Há flores viçosas e outras mais discretas. Voo para um galho baixo e continuo a ob- servar. Uma serpente espreita um filhote de rato, dá o Senti o vento frio e o sal, eu adoro o mar. Me sinto em bote e sai vitoriosa com sua presa. Um dia do predador, o casa, o vento traz aquela já conhecida e amada sen- outro da presa. sação de liberdade, olho ao longe e só vejo a imensi- Não muito longe do riacho um arbusto com frutos es- dão azul. Uma corrente de ar ascende e plano, plano para curos me garante uma leve e rápida refeição, dois gafa- o horizonte sem esforços. O que há depois do horizonte? nhotos completam meu banquete. Voo para o alto e me Eu não sei. Mas é pra lá que eu vou, meu destino. Alguns afasto. De não muito longe vejo um mosaico de arbustos minutos depois uma mancha escura interrompe a imensi- e plantas rasteiras na areia. Lá há muita vida também, pe- dão azul do tão querido mar. Lá de longe não consigo ver quenas aves, insetos e lagartos fazem a festa nas flores. O detalhes. Voo alto. Uma ilha colorida de verde, branco, sol já está alto e o calor aumentou. Perto da praia, caran- marrom, e cinza, com um farol na pontinha leste, era tudo guejos exibem sua dança de cores e se cobrem de areia o que eu conseguia ver àquela altura. Era uma pequena pra lá e pra cá. ilha dessas que aparecem no meio do mar. A curiosidade e a fome me fazem descer e voo mais baixo para a ilha. Voo para o farol e lá do alto a vida fica insignificante, tudo fica tão pequeno, quase invisível. Eu podia ficar ali A ilha, agora mais perto, começa a mostrar seus deta- na tranquilidade e em paz, com comida e água garanti- lhes, um pequeno farol branco e vermelho irrompe de um da. A solitude era minha preferência. Não entendia e nem conjunto de rochas. Há manchas de vegetação rasteira e queria entender a necessidade de ficar em grupo, de se algumas poucas árvores. A linha da praia é linda. Uma fai- ver no meio de tantos outros fazendo tudo e sendo igual. xa estreita e muito clara de areia entra no mar de um azul Eu gosto do desconhecido, da novidade, da aventura, do estonteante, segue mar adentro e o azul fica mais profun- não saber e dos outros. Os iguais não entendiam isso. Eles do assim como o mar. A ilha é pequena, mas daquela al- gostavam de saber, do de sempre, do mesmo, do conhe- tura já consigo ver toda aquela extremidade. cido e do seguro, do mesmo lugar, da mesma comida, A sede começa a me incomodar, deve haver de co- das mesmas caras amigáveis, dos mesmos amores certos. mer e beber na ilha. Desço e pouso na areia. Me virei para Eles podiam voar, mas escolhiam ficar. Eu não, meu des- a mancha de árvores, havia poucas árvores, não chega- tino era o horizonte. Quero o novo e o desconhecido. Me va a ser uma floresta, mas tinha sombra e possivelmente julgam de louco, de inconsequente, mas louco é aquele água e comida. Aqui embaixo é mais quente do que lá no que não aproveita a breve chama da vida para viver, lou- alto sobre o açoite do vento. Adoro voar e estar no chão co é aquele que se acovarda e fica esperando e esperan- é medíocre, mas necessário. do. Eu não vou esperar e nem vou ficar. No bosque, sombra e umidade aliviam o calor da praia, O azul profundo convida e o horizonte me chama. Ali o som denuncia a vida pulsante naquela mancha verde. há a certeza de comida e água, mas o apelo de partir é Logo percebo o som da água de um riacho próximo. En- grande. Na indecisão de partir ou ficar, vejo peixes que quanto mato a sede e limpo as penas (o sal atrapalha saltam e uma nuvem de gaivotas se refestela com a refei- ção dinâmica. Me junto a elas e mergulho na água fria e 12 I Observadores de Pássaros: Contos de Passarinhos - Antologia de Contos Volume 2 Contos de Passarinhos I 1 3 salgada. Mergulho certeiro e volto para o alto enquanto se esborrachado no chão. Eu fico imóvel, não sei o que é, engulo meu petisco revoltoso e debatente. O movimento e quero entender. Passa um tempo, uma lufada de vento é meu, o som é o vento, a vida é o voar. Sigo para o des- traz um alívio para o calor. O vento é o que faz a coisa se conhecido para o horizonte destino. mexer. Não está viva, deve ter morrido na queda. Chego mais perto e voo por cima, não vejo olhos ou cauda, é um Quando algo chama minha atenção na ilha, não sei bicho estranho. ao certo se foi um movimento, uma cor, ou várias, mas uma vontade de saber me domina e volto. Aquele é o O sol caminha no céu, mas um tempo se passa e nada outro lado da Ilha, que eu ainda não tinha visto. A ilha acontece. As cores são inebriantes. Eu poderia olhá-las parecia menor lá do alto, agora de mais perto, parecia por dias, mas ainda assim não saberia o que é. Sigo o ca- maior. Vejo uma mancha verde mais densa de árvores, minho, meu destino, vou rumo ao horizonte e tudo que essas parecem mais altas e mais próximas do que as que levo comigo são as lembranças das cores, daquelas cores vi no outro bosque. As árvores formam um mosaico de tons tão brilhantes e lindas, sigo colorido. de verde e se movem ao sabor do vento como se fosse um bicho enorme. Nessa dança percebo de novo aquilo que me chamou a atenção e me fez voltar. Há cores no meio daquela massa de árvores além das verdes, cores que vibram em tons tão brilhantes, cores enfileiradas. Não entendo o que aquilo pode ser. Chego mais perto, vou mais para baixo, mas não há como ver por cima das árvores. Mergulho no ar e sinto a velocidade da queda livre aumentar muito e rápido. Abro as asas e paro a poucos metros antes de alcançar as árvores e de lá consigo ver as cores, muitas. Manobro um voo elegante por entre os galhos mais altos e pouso. Lá está aquilo, é um objeto que não reconheço. Não tem forma, mas pare- ce leve e se estende entre vários galhos, em várias alturas diferentes, parece líquido e sólido ao mesmo tempo, às vezes se mexe, é como se estivesse vivo. O calor úmido da massa de árvores me faz querer voltar para o alto céu, mas o desejo de saber é maior do que o de voar agora. Desço para um galho mais baixo, estou no mesmo nível da coisa. Escorre para baixo, algumas partes juntas e outras separadas, parecem tentáculos ou bigodes enormes. Na ponta de dois desses penduricalhos balan- ça um tipo de ninho, grande o suficiente para umas vinte gaivotas, não mais que isso. Está tombado de lado, pen- durado apenas por um dos seus quatro vértices. Não há nada dentro. Estamos a mais de dez metros do chão, na- quela posição o que havia ali, se não sabia voar, já tinha 14 I Observadores de Pássaros: Contos de Passarinhos - Antologia de Contos Volume 2 Contos de Passarinhos I 1 5 Na visão de um pássaro Meu pequeno coração que antes batia acelerado por felicidade, agora palpitava descompassadamente de Érika Cristina Faria de Souza medo. Fechei meus olhinhos mais uma vez. Recordando o que minha mãe dissera; já aguardava o pior, pois sabia qual seria o meu fim. Como queria, naquele instante, bater minhas asinhas Ov ento batia em minhas asas me convidando a alçar pela última vez, porém meus últimos segundos seriam tris- altos voos. Como era bom ser livre! A cada abalroar tes, sem o vento sentir. de asas era como se estivesse voando pela primeira vez e a euforia tomava conta do meu coração. Depois de um longo tempo de olhos fechados e enco- Lembro-me ainda daquele final de tarde. O sol des- lhido, fui abrindo-os com lentidão. O gigante se agachara pedia acenando e deixando entrar o escurecer da noi- para mais próximo de mim, e mostrava os dentes. Não sen- te que se aproximava. Minhas únicas barreiras eram os ti pânico, nem medo, apenas curiosidade. galhos das árvores que ficavam para trás quando minha Ele tentou me tocar com um de seus cinco grandes ga- agilidade os contornavam. Não sabia que aquela tarde lhos, mas recuou assim que me encolhi. Os grandes dentes seria de uma inesperada descoberta, de uma mudança sumiram e sua expressão se tornou estranha, água come- brusca e de início assustadora. çou a sair de seus olhos e eu me compadeci. Gradualmen- Em um dos momentos de um belo voo rasante, por uma te, fui perdendo o medo e permiti aproximar-me. Bloqueei fração de segundos me permiti fechar os olhos. De repen- todas as lembranças de minha mãe, para que não inter- te, senti um esbarrão e me vi caindo ao chão de um jardim. rompesse essa possível aproximação. Por algum motivo, Assustado, demorei um pouco a me situar, e a perce- eu queria me aproximar, queria conhecer essa novidade e ber uma dorzinha na minha pequena e delicada asa azul. descobrir qual monstruosidade estava à minha frente. Avistei, de longe, o que interrompeu o meu voo. A curiosidade também alcançou o gigante. Quando Era grande e diferente, feita de tijolos. Um pouco aci- ele viu minha aproximação, os dentes antes tão assusta- ma existia uma espécie de fumaça branca. “Com certe- dores, deu um brilho diferente a sua massa redonda de za, devo ter batido nesse amontoado de tijolos”. Olhando pele. Comecei a observar a coloração avermelhada de ao redor, percebi que havia várias plantas e flores e, logo, sua folhagem estranha e longa acima dos olhos. Abaixo senti a necessidade de tocá-las com meu longo bico, po- dos olhos havia pequenos pontos vermelhos também dan- rém refuguei quando avistei um gigante de duas pernas do um ar até mesmo angelical. se aproximando e, como eu não conseguia voar, fui de pulinho em pulinho me afastando para trás. Parecia me dizer coisas, mas não compreendia seu vo- cabulário. Subitamente, saiu correndo para a construção Há tempos atrás minha mãe me disse algo incisivo so- de tijolos e retornou com um potinho parecido com os que bre esses gigantes de duas pernas: utilizo para tomar água e algumas frutinhas. “São perigosos, não se aproxime!” Eu gostaria muito de entendê-lo, mesmo que fosse por Assim, sempre procurei não voar entre os pequenos jar- alguns minutos. Gostaria de saber o nome dado a sua gi- dins domésticos. mesmo os mais floridos. Preferia voar livre- gantesca casca. Uma tristeza me consumia, pois, ele pare- mente pelas matas, mas por algum motivo vim parar aqui cia querer cuidar de mim e eu não entendia nada. e me encontro de frente para esse gigante. 16 I Observadores de Pássaros: Contos de Passarinhos - Antologia de Contos Volume 2 Contos de Passarinhos I 1 7 Dei alguns pulinhos até a água e biquei as frutinhas. menor vinha me esconder em algum lugar; parecia que Ouvi um som estranho vindo dele, mas, pelos seus dentes me protegia. à mostra, parecia estar feliz. Sorri em resposta, mesmo não Aquela semana mudou minha visão, minha vida, mi- sabendo se ele entenderia. nha história. Naquela época, eu era uma criança e, des- O dia se passou... O gigante trazia suas bugigangas co- cobri, posteriormente, que o gigante que me acolheu loridas para o quintal, às vezes ele apontava para o objeto também era. e olhava para mim como se me explicasse o que fazia. Hoje, voo pelos campos em direção a uma casa em es- Tudo muito novo e diferente, minha mãe me mataria se pecífico, com o tempo aprendi a linguagem dos humanos, soubesse que estava a poucos pulos do gigante. descobri o nome das partes do seu corpo e de seus objetos. O sol foi cedendo lugar à lua que já aparecia no céu Hoje, estou voando para minha segunda casa. radiante, comecei a me sentir frustrado. Como iria embo- ra? Como retornaria para o meu lar? Depois daquela semana, minhas tardes eram diver- tidas, sempre ia visitá-lo. Nós crescemos juntos, sofremos Olhei para o gigante e ele observava o próprio lar. juntos e nos alegramos juntos. Parecia pensativo. Ele me olhou e sorriu, como se tivesse uma ideia. De longe, avistava um pequeno humano mais velho, com seus cabelos grisalhos a sorrir para mim, a minha água Com rapidez, pegou-me com todo o cuidado, enquan- e minhas frutinhas estavam sempre à mesa me convidan- to meu coração quase saía pelo bico. Percebi que ele do para nosso eterno café da tarde. estava me levando para dentro daquele amontoado de tijolos. Quando passamos pela enorme entrada de madei- Nunca mais tive medo de humanos, aprendi a discernir ra, ele correu, correu e saltou para voar para a segunda os bons dos maus. Um dia, o gigante salvou minha vida e parte da enorme casa. Por um momento, pensei que fos- hoje, eu o salvo da solidão. semos cair, pois o gigante não tinha asas. Diariamente ele é visitado por vários bichos que são cui- Ainda enlaçado pelos seus longos galhos, adentramos dados e amados, hoje ele encontrou a felicidade de um para um enorme lugar, seria a casa do humano? Não ha- ser ele mesmo na doação de seus dias. via árvores, nem flores, mas pude ver muitas imagens nas Um dia encontrei e me encantei com a bondade que paredes, bem coloridas, brilhantes. Uma em especial cha- todo ser humano tem, mesmo que alguns ainda não a vi- mou minha atenção, pois a tela brilhava e nunca parava venciem. Minha completude diária está em acompanhar de brilhar. Pensei que pudesse ser uma estrela cadente ali essa bela amizade que se estenderá por muitos anos... naquele lugar. O medo já tinha se despedido dando lugar ao encanto. Então, lembre-se, caro pássaro: “se algum dia você pu- der ler esse escrito, entenderá que a vida são os segundos. Ele colocou-me sobre algo bem fofinho, mais macio Que os momentos podem ser eternos. Que suas asas po- que as folhas da minha cama, depois voltou com uma es- dem sempre bater mais uma vez, basta abrir seus olhos, pécie de pote, e de lá tirou algo branco e comprido. Com visualizar as flores, tomar a água limpa e comer os frutos muita delicadeza colocou sobre minha asinha. deliciosos que a vida proporciona. Enfrente seus medos e Naquele lar, eu permaneci por uma semana, sendo cui- se encontre na sua coragem de ser um pássaro”. dado, e alimentado todos os dias. Era engraçado quando Com carinho, Beija-flor! um gigante mais gigante chegava no quarto, o gigante 18 I Observadores de Pássaros: Contos de Passarinhos - Antologia de Contos Volume 2 Contos de Passarinhos I 1 9