08 Fall Renata Whitaker Horschutz O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico Trabalho realizado por Renata Whitaker Horschutz e publicado nos Cadernos Junguianos No. 7- 2011, Revista Anual da Associação Junguiana do Brasil, São Paulo, Ferrari – Editora e Artes Gráficas LTDA, São Paulo. w ww .p s i c o l og ia s a n dp l a y . c o m . b r O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico Renata Whitaker Horschutz Sinopse: O presente artigo aborda o importante papel da Alquimia no universo da psicologia analítica, debruçando-‐se sobre o desenvolvimento da relação entre ambas. Descreve a construção do vaso terapêutico destinado a conter o material psíquico a ser transformado, num processo de análise, durante o qual cabe ao alquimista/terapeuta dominar a arte de controlar o fogo, a quantidade de libido capaz de modificar a psique do paciente. Seu objetivo consiste em salientar a Alquimia como uma preciosa ferramenta para o estabelecimento de uma ligação anímica entre analista e paciente. Palavras-‐chave: Alquimia, vaso, fogo, relação terapêutica, transformação. Abstract: This article emphasizes the important role of Alchemy in Analytical Psychology, by establishing a relation between both. It describes the construction of the therapeutic vessel which is meant to contain the psychic material in need of transformation, in an analytical process, during which the alchemist/therapist must possess the key to control the fire, the amount of psychic energy necessary to modify the patient´s psyche. The aim of this study was to stress Alchemy as a precious tool for the establishment of a soul-‐to-‐ soul link between patient and analyst. Key words: Alchemy, vessel, fire, therapeutic relationship, transformation. Resumen: El presente artículo aborda el importante papel de La Alquimia en el universo de la Psicología Analítica, encarando el desarrollo de la relación entre ellas. El artículo describe la construcción del “Vaso Terapéutico” destinado a contener el material psíquico que deberá ser transformado, en un proceso de análisis durante el cual cabrá al alquimista/terapeuta dominar el arte de controlar el fuego, la cantidad de energía psíquica capaz w w w . p s i c o l o g i a s a n d p l a y . c o m . b r 2 O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico Renata Whitaker Horschutz de modificar la psiquis del paciente. Su objetivo es destacar la Alquimia como una herramienta valiosa para establecer una conexión anímica entre el analista y su paciente. Palabras clave: Alquimia, vaso, fuego, relación terapéutica, transformación. Que é essa vida que percorre nosso corpo como fogo? O que é a vida? É como o ferro fundido. Pronto a ser derramado. Escolha o molde, que a vida irá queimá-‐lo. —Mahabharata abud JUDITH, 2010, p. 177 A Alquimia é uma arte que integra Química, Antropologia, Astrologia, Misticismo, Filosofia, Matemática, e Religião. Praticada no Egito antigo, na Mesopotâmia, na China, na Grécia, no mundo Islâmico e na Europa, consistia na investigação e aceleração dos processos da natureza, baseando-‐se nos quatro elementos: terra, ar, água e fogo. Seus objetivos principais eram a transmutação dos metais inferiores em prata e ouro; a criação da Panacéia, remédio capaz de curar todos os males; a descoberta da Pedra Filosofal, seu objetivo maior, capaz de aproximar o homem de Deus, produzindo assim o Elixir da Longa Vida. Esta ciência é muitas vezes de difícil compreensão, pelo fato de sua expressão ser metafórica, simbólica e imagética. Porém, são justamente essas características que melhor nos permitem a aproximação da psique, e os consequentes passos necessários para a realização das conexões e integrações fundamentais para o desenvolvimento humano. A Alquimia atua na energia vital do ser humano, em seu corpo, assim como em sua alma, psique, idéias, emoções e sentimentos que animam e dão vida ao corpo, como w w w . p s i c o l o g i a s a n d p l a y . c o m . b r 3 O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico Renata Whitaker Horschutz também no espírito, ou seja, na centelha divina que reside em todo ser humano. Portanto, ela integra o corpo à alma, e esta ao espírito, ocupando-‐se da evolução e do desenvolvimento humano, trazendo um propósito e um significado profundo à existência. Para melhor ilustrar a atuação da Alquimia na psique, podemos fazer uma analogia com a chama de uma vela: a parte do pavio que conecta o fogo à vela, sua parte material mais quente, simboliza o corpo; o meio da chama é a alma, a psique; a ponta da chama, muitas vezes difícil de enxergar por permanecer oculta, é o espírito. Em 1946, traçando um paralelo entre a alquimia e a psicologia do inconsciente, em sua obra Psicologia da Transferência, Jung tratou dos aspectos transferenciais na psicoterapia, comparando-‐os com as imagens alquímicas do Rosarium Philosophorum. Foram-‐lhe necessários aproximadamente 10 anos para decodificar, intuir e entender as fórmulas, receitas, desenhos e símbolos alquímicos. Porém, seu interesse pela alquimia já havia surgido muito antes disso, em 1909. Ao estudar a mitologia e os gnósticos, notou o aparecimento de símbolos alquímicos, sendo particularmente atraído pelo deus Cratera, originário da tradição Gnóstica, o qual representa um vaso contendo misturas alquímicas, destinado a ser ocupado pelo espírito. Enviado à terra para batizar os indivíduos que almejam a um desenvolvimento maior e à consequente expansão da consciência, este vaso simboliza então um útero em cujo interior ocorrem as transformações necessárias para que se processe o renascimento diferenciado de um indivíduo. w w w . p s i c o l o g i a s a n d p l a y . c o m . b r 4 O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico Renata Whitaker Horschutz Ao serem mencionados no campo da psicologia, vaso e fogo alquímico adquirem sentido muito mais amplo, relativo à energia que envolve esses arquétipos. Ao adentrar o universo alquímico, podemos estabelecer uma analogia com a psicoterapia junguiana, onde a relação terapêutica ocorre em um espaço livre, protegido, com isenção de julgamentos e total sigilo, relativamente a todo o material abordado — sonhos, fantasias, verbalizações, emoções, sentimentos, segredos, tudo o que diz respeito à intimidade do paciente. Assim, pode se tomar esse espaço terapêutico, metaforicamente, por um vaso onde são depositados todos os elementos da matéria a ser trabalhada para a grande transmutação alquímica. Do radical ark, que remonta à origem das línguas europeias, derivam as palavras arquétipo (que significa “forjado há muito tempo, modelo exemplar, padrão”), arcanjo (chefe dos anjos), arquiteto (chefe dos construtores), assim como o termo arca, que significa “algo que contém, limita”, isto é, um utensílio que, ao afastar do todo, se torna um ponto de partida, um começo, um vaso depositário de tesouros, do que é valioso e misterioso. Portanto, para iniciar um processo terapêutico é necessário primeiramente se formar a arca, o vaso. Os hebreus tradicionalmente possuíam a arca da aliança, onde, acredita-‐se, estavam guardadas as tábuas dos dez mandamentos, tendo as mesmas medidas, em escala reduzida, que a arca de Noé, o vaso que livra o viajante do dilúvio, de se afogar no mar dos conflitos, das dores e das paixões, e onde se operam transformações, a possibilidade de renascimento para um nível mais evoluído. w w w . p s i c o l o g i a s a n d p l a y . c o m . b r 5 O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico Renata Whitaker Horschutz O espaço terapêutico da psicologia junguiana é como um vaso, onde será realizado o trabalho seguindo a direção oferecida pelo inconsciente, que é a fonte dos conteúdos a serem trabalhados. Podemos, por conseguinte, compará-‐lo a um laboratório (termo derivado do radical labor, trabalho), onde ambos, alquimista/analista e paciente, precisam, com amor, perseverança, humildade, empatia, paciência e ressonância, realizar o grande trabalho. Segundo a Wikipedia, o termo vaso designa qualquer objeto côncavo destinado a conter substâncias líquidas e sólidas. Nesta acepção, podemos falar de vasos sanguíneos e linfáticos, por exemplo, os canais pelos quais circulam os líquidos que percorrem o corpo dos animais, respectivamente o sangue e a linfa. Na botânica, existem as estruturas tubulosas articuladas formadas por células coaxiais por cujo interior flui a seiva nas plantas. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Vaso — Acesso em 10/04/2011) Segundo Chevalier e Gheerbrant, em Dicionário de Símbolos, para a Cabala, assim como na literatura medieval, o vaso tem o significado de tesouro. Por tal, apoderar-‐se de um vaso equivale a conquistar um tesouro; quebrá-‐lo significa aniquilar pelo desprezo o tesouro que ele representa. O vaso alquímico e o vaso hermético sempre significam o local em que se operam maravilhas; é o seio materno, o útero no qual se forma um novo nascimento. Daí vem a crença de que o vaso contém o segredo das metamorfoses. O vaso encerra, sob diversas formas, o elixir da vida: é um reservatório de vida. (CHEVALIER e GHERBRANT, 1988, pp. 931, 932) w w w . p s i c o l o g i a s a n d p l a y . c o m . b r 6 O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico Renata Whitaker Horschutz Abrangendo terapeuta e paciente, o vaso contém a relação entre ambos: transferências, contratransferências, compreensão, acolhimento, associações, percepções, fantasias. Contribuindo para a transformação do sofrimento e dos sintomas do paciente, age igualmente sobre o terapeuta, que também sairá transformado desse vaso. Para ocorrer um processo psicoterapêutico, no qual a individuação se inicie, a consciência torna-‐se imprescindível, pois é a partir dela que o homem irá se separar e ao mesmo tempo estar integrado à natureza. Podemos dizer metaforicamente que a consciência neste processo de diferenciação e integração é simbolizada pelo fogo. A psique abrange consciente e inconsciente, porém é somente através da consciência que ela pode ser vivenciada, portanto através do fogo. A alquimia é uma arte do fogo. Então, todo o material psíquico do paciente é colocado dentro do vaso alquímico para que possa ser revisto, recriado, transformado, observado sob outros ângulos, em seu mais profundo interior, ocorrendo diversos processos e operações com o objetivo de transformar a fantasia em realidade, de fazer o desejo do alquimista -‐ paciente/analista triunfar sobre a Natureza agressiva e insensível. Isto se dá através da aquisição da consciência. Em geral a primeira operação alquímica que ocorre nos processos terapêuticos, é a calcinatio, na qual há um fogo queimando e comprometendo alguma substância, ou seja, conteúdos psíquicos. Quanto mais o ego estiver estruturado, menos ele se torna dominado e possuído por um afeto. É a partir do fogo que alimenta o complexo que o w w w . p s i c o l o g i a s a n d p l a y . c o m . b r 7 O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico Renata Whitaker Horschutz paciente vai se conscientizando de suas questões, fazendo com que os complexos não atuem mais autonomamente, tornando-‐os imunes ao fogo, pois o que é isento ao fogo é livre e não se identifica e nem é possuído por um afeto. Os complexos são aglomerados de pensamentos, desejos, lembranças, sentimentos, carregados de intenso potencial afetivo, conflitante e inconciliável com a consciência, retendo a energia psíquica e gerando reações exacerbadas no indivíduo que está possuído por determinado complexo. É através da passagem pelo fogo que os complexos mais primitivos são transformados e deixam de atuar autonomamente, isto é, sem o controle do indivíduo. A alquimia nos mostra isso na imagem do dragão, que simbolicamente são os afetos inconscientes, que ao serem vencidos, se transformam em salamandra, a qual é uma forma domesticada e mais suave do dragão. A salamandra é a criatura da transformação, que simboliza os afetos que saem de dentro do fogo e já estão conscientes para o paciente. Rubem Alves ilustra estes processos com uma bela metáfora: A vida é como a vela: para iluminar é preciso queimar. A vela que ilumina é uma vela alegre. A luz é alegre. Mas a vela que ilumina é uma vela que morre. É preciso morrer para iluminar. Há uma tristeza na luz da vela. Razão porque ela, a vela, ao iluminar, chora. Chora lágrimas quentes que escorrem da sua chama. Há velas felizes cuja chama só se apaga quando toda a cera foi derretida. Mas w w w . p s i c o l o g i a s a n d p l a y . c o m . b r 8 O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico Renata Whitaker Horschutz há velas cuja chama é subitamente apagada por um golpe de vento. (http://www.rubemalves.com.br/quartodebadulaquesXIV.htm acesso em 26/03/2011) Cabe aqui também a lembrança do seguinte texto de Clarice Lispector, grande alquimista das palavras, que tão profundamente atinge a nossa alma: Eu, alquimista de mim mesmo. Sou um homem que se devora? Não é que vivo em eterna mutação, com novas adaptações a meu renovado viver e nunca chego ao fim de cada um dos modos de existir. Vivo de esboços não acabados e vacilantes. Mas equilibro-‐me como posso, entre mim e eu, entre mim e os homens, entre mim e o Deus. É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-‐o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de dizer porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo. (http://www.paralerepensar.com.br/c_lispector.htm acesso em 26/03/2011) Assim como o alquimista precisava aprender a dosar o fogo e as substâncias e metais mais importantes utilizados em seus experimentos (o chumbo, o enxofre, o mercúrio e o sal), o analista terá que adquirir a capacidade de equilibrar seus pacientes, reduzindo os excessos e suprindo a escassez. O alquimista/analista precisa estar atento para não cometer erros que poderão prejudicar todo o processo, calcinando a substância errada, ou escolhendo a operação w w w . p s i c o l o g i a s a n d p l a y . c o m . b r 9 O vaso e o fogo alquímico formado pelo campo relacional terapêutico Renata Whitaker Horschutz inconveniente que poderá consumir ou desgastar as substâncias necessárias para o desenvolvimento saudável do processo, por isso se faz tão necessário também o conhecimento das principais substâncias presentes ou demandadas no processo de cada indivíduo. Um analista precisará desenvolver a arte de identificar todos estes elementos, estando atento para discriminar qual o caminho a seguir, como temperar ou retirar elementos que estão no interior do vaso, a partir da observação dos pacientes, de seu estado psíquico, para assim poder cozinhar o “caldo” que produzirá a síntese e a integração, ou, utilizando uma linguagem alquímica, a conjunctio mais elevada possível. Este é o caminho da individuação, ou seja, da realização da nossa essência, quando esta passa a dirigir o ego, e não o contrário, afinando a personalidade ao daimon, ou fruto do carvalho, como James Hillman nomeou a essência em seu livro O código do ser. É, no entanto, essencial saber conduzir com maestria os meandros do processo terapêutico, para que não sejam realizadas operações nas quais o ego venha a passar por fases que não tem capacidade de suportar. O terapeuta deve estar sempre atento ao tipo de vaso criado na relação terapêutica e à qualidade de fogo necessária, pois um vaso frágil não pode ser colocado diretamente no fogo, sob pena de estourar, requer certos cuidados que tornam o processo mais moroso, um aquecimento em banho-‐maria, até que o paciente esteja apto a transcender o ego, vivenciando a morte deste e o seu renascimento, transformado, o que requer muita entrega e confiança, tanto por parte do analista como w w w . p s i c o l o g i a s a n d p l a y . c o m . b r 10
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