BALDUINIA. n.I7, p. 29-33, IS-VI-2üü9 o USO DA MADEIRA NAS REDUÇÕES JESUÍTICO-GUARANI DO RIO GRANDE DO SUL VII -VIGA DO CORO DA IGREJA DA IGREJA DE SÃO MIGUEL ARCANJO) JOSÉ NEWTON CARDOSO MARCHIORF MARIA CRISTINA SCHULZE-HOFER3 RESUMO Amadeira da viga do coro da Igreja de São Miguel Arcanjo (São Miguel das Missões, Rio Grande do Sul- Brasil) foi anatomicamente identificada como Tabebuia heptaphylla (Vell.)Toledo (Bignoniaceae), espécie lenhosa de notável resistência mecânica ealta durabilidade natural. Palavras-chave: Tabebuia heptaphylla, Ipê-roxo, Anatomia da Madeira, Missões Jesuíticas, Rio Grande do Sul. SUMMARY [Wood utilization in the Jesuitic-Guarani Missions from Rio Grande do Sul state, Brazil. VII - Choir beam of Saint Michel Archangel's Church]. The choir beam of Saint Michel Archangel's church was anatomically identified as Tabebuia heptaphylla (Vell.) Toledo (Bignoniaceae), awood species notable for its mechanical strength and decay resistance. Key words: Tabebuia heptaphylla, Wood Anatomy, Jesuitic Missions, Rio Grande do Sul state. INTRODUÇÃO MATERIAL E MÉTODOS As ruínas da Igreja de São Miguel Arcanjo O material examinado, com sinais externos testemunham oapogeu da arquitetura Jesuítico- de carbonização (Figura lC,D), foi extraído do Guarani em terras do atual Rio Grande do Sul. fragmento remanescente davigadocorodaIgre- Situada no núcleo urbano de São Miguel das ja de São Miguel Arcanjo (Figura lA,B), cuja Missões, este reconhecido Patrimônio da Hu- implantação é atribuída ao século XVIII. A manidade compõe, juntamente com oMuseu das amostra coletada para estudo foi registrada em Missões, um dos principais focos do turismo fichário, fotografada, acondicionada em enve- histórico-cultural no Estado. lope com identificação e enviada ao Laborató- Atribuído ao século XVIII, o fragmento re- rio deAnatomia da Madeira doInstituto Nacio- manescente da viga do coro da Igreja de São nal de Pesquisas da Madeira, em Lohbrügge- Miguel Arcanjo é o objeto do presente estudo Hamburgo (Alemanha), onde foram realizados anatômico, que visa à identificação da espécie os trabalhos de microtécnica efotomicrografia. demadeira econtribuir para oconhecimento das Os autores agradecem àsenhora Eda John, pela técnicas construtivas utilizadas neste singular colaboração nestas tarefas. período da história regional. Da amostra de madeira foram preparados corpos-de-prova, orientados para aobtenção de cortes anatômicos nos planos transversal, lon- gitudinal radial e longitudinal tangencial. Os 1 Recebido em 12-8-2008 e aceito para publicação em 10-11-2008. corpos-de-prova foram fervidos em água, com 2 Engenheiro Florestal, Dr., Professor Titular do Depar- vistas aoamolecimento eexpulsão completa do tamento de Ciências Florestais, Universidade Federal ar, incluídos em PEG 2000 e seccionados em de Santa Maria, RS. Bolsista de Produtividade em Pes- quisa, CNPQ - Brasil. [email protected] micrótomo de deslizamento (modelo American 3 Arquiteta e Urbanista, Dra., IPHAN - Instituto do Optical), regulado para a obtenção de cortes Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. schulze- anatômicos com espessura nominal de 20 flm. [email protected] 29 FIGURA 1-Vigadocoro daIgreja deSãoMiguel Arcanjo. A, B-Dois aspectos do fragmento remanescente da viga. C -Face externa da amostra coletada, com sinais de carbonização. D -Face interna da amostra. 30 No caso dos cortes radiais, parte deles foi trata- ve dicotômica para madeiras americanas de es- do com hipoclorito de sódio, com vistas a sali- trutura estratificada (Record, 1943). entar eventual presença de cristais. As O parênquima paratraqueal escasso, com fotomicrografias da Figura 2, foram tomadas pouca confluência, aporosidade difusa, aabun- com câmera Olympus AX, em diferentes aumen- dância de conteúdo amarelado nos vasos e os tos. raios finos, com 3-4 (raro mais) células de lar- gura, inserem a amostra no "grupo Lapacho" DESCRIÇÃO ANATÔMICA do gênero Tabebuia (Record & Hess, 1940). Anéis de crescimento visíveis, fracamente Composto de numerosas espécies -eampla dis- demarcados (Figura 2A). Porosidade difusa (Fi- tribuição geográfica -, o referido grupo distin- gura 2A, B). Poros muito numerosos, arredon- gue-se das demais seções de Tabebuia pela cor dados ou ovais (Figura 2A, B) e geralmente so- castanho-esverdeada da madeira, bem como pela litários, menos comumente geminados (Figura presença de abundantes depósitos amarelados 2A) ou em múltiplos de três. Estratificação com- (Lapachol) em vasos do cerne (Record &Hess, pleta, de elementos vasculares, parênquima 1943). axial, raios e fibras (Figura 2E, F). O exame comparativo dos três cortes Elementos vasculares retilíneos (Figura 2C- anatômicos com exemplares representados no F), com placas de perfuração simples e abun- Laminário do Departamento de Ciências Flo- dante conteúdo amarelado na cavidade celular restais da Universidade Federal de Santa Ma- (Figura 2A-F). Ponto ações intervasculares al- ria, permite a identificação da madeira ternas, não ornamentadas, de 12 a 14 11mde di- investigada como Tabebuia heptaphylla (Vell.) âmetro, com aréola circular e abertura Toledo, espécie botânica conhecida popular- lenticular inclusa. Espessamentos espiralados, mente como ipê-roxo no Rio Grande do Sul, com ausentes. base na presença de raios relativamente finos e Parênquima paratraqueal escasso a pouco parênquima vasicêntrico incompleto, tendente confluente (Figura 23A, B). Séries a confluente, sem formar, todavia, faixas con- parenquimáticas, geralmente compostas de duas cêntricas. células. A utilização do ipê em construções Raios homogêneos, com freqüência de 5-10/ missioneiras tem respaldo em relatos de cronis- mm (Figura 2E), compostos inteiramente de tas do período jesuítico, notadamente de Cardiel células procumbentes (Figura 20). Raios com e Sepp, bem como em obras de Félix de Azara, menos de 10 células de altura e geralmente militar e naturalista espanhol que visitou as ex- trisseriados em plano longitudinal tangencial, tintas Missões no século XVIII. menos comumente uni emultisseriados (Figura Em "Las Misiones dei Paraguay", Cardiel 2E, F). (1989) informa que para "pilares o horcones" Fibras libriformes de paredes espessas a usava-se preferencialmente a madeira de muito espessas (Figura 2B). "árboles muy altos ygruesos llamados Tajivos", grafia da época para Tají ou Tají-hü, vozes ANÁLISE ANATÔMICA E DISCUSSÃO guaranis correspondentes ao ipê ou Lapacho, OS raios relativamente estreitos e baixos, as conforme diversos dicionários e outras obras de pontoações intervasculares não ornamentadas, referência (Dirnitri, 2000; Guasch, 1991; Peralta a porosidade difusa e a ausência de & Osuna, 1950). A respeito do termo "Ipê", cabe espessamentos espiralados em vasos, remetem salientar que em língua tupi (Igpê) apalavra tam- aamostra àfaIllilia Bignoniaceae, segundo cha- bém alude àcasca da árvore (CUNHA, 1989). 31 FIGURA 2-Fotomicrografias do fragmento de madeira da viga do coro da Igreja de São Miguel Arcanjo. A-Anel de crescimento fracamente demarcado, porosidade difusa, poros muito numerosos, arredondados ou ovais, eparênquima paratraqueal escasso, pouco confluente, emseção transversal. B-Fibras deparedes espessas amuitoespessas eparênquima paratraqueal escasso apouco confluente, emseção transversal. C-Linhas vasculares retilíneas, com abundante conteúdo, eraioshomogêneos, compostos inteiramente decélulas procumbentes, emseção longitudinal radial. D-Mesmos aspectos da imagem anterior, com maior aumento. E - Estratificação completa e vasos com abundante conteúdo, em seção longitudinal tangencial. F-Mesmos aspectos da imagem anterior, com maior aumento. 32 Na mesma linha de Cardiel, o Padre Antô- CARDIEL, 1.Las Misiones dei Paraguay. Madrid: nio Sepp (1972) informa que "para las Historia 16, 1989.204 p. cumbreras de las Iglesias o casa del padre" CUNHA, A. G.da. Dicionário histórico das pala- usava-se madeira de "Tuxifo", uma clara vari- vras portuguesas de origem Tupi. São Paulo: ante de Tajy-hü, grafia moderna corresponden- Melhoramentos: Editora daUniversidade deSão te a ipê, na língua guarani. Paulo, 1989. 357 p. DIMITRI, M. 1.EI nuevo libro dei arbol: especies Omilitar, viajante epolígrafo Felix de Aza- forestales delaArgentina oriental. Buenos Aires: ra (1847) registrou, por sua vez, que oLapacho EIAteneo, 2000. v.2. 124p. era uma das madeiras preferidas para tabuados, GUASCH, A., ORTIZ, D. Diccionario Castellano- vigas, tesouras e outros fins construtivos, por Guaraní Guaraní-Castellano: Sintactico- causa de sua notável durabilidade natural. fraseo1ogico-ideologico. Asunción: Centro de Abundante naregião missioneira, oipê-roxo Estudios Paraguayos "Antonio Guasch" é árvore de grande porte, com troncos retos e (CEPAG), 1991. 826 p. diâmetro considerável em indivíduos adultos, PERALTA, A.1.,OSUNA, T.Diccionario Guarani- produtora de madeira notável por sua durabili- Espanõl yEspanol-Guarani. Buenos Aires: Edi- dade natural eelevada resistência mecânica. O torial Tupã, 1950.427 p. uso do ipê, comprovado no presente estudo anatômico, demonstra que os construtores je- RECORD, S.1.Woods ofstoried structure. Tropical suítas conheciam perfeitamente a matéria-pri- Woods, New Haven, n.76, p. 32-47, 1943. ma utilizada, pois souberam escolher, na flora RECORD, S. 1.,HESS, R. W.American timbers of regional, aespécie mais adequada para uso em the farnily Bignoniaceae. Tropical Woods, New peças de grandes dimensões, caso da viga do Haven, n. 63, p. 9-38, 1940. coro, na Igreja de São Miguel Arcanjo. RECORD, S. l., HESS, R. W. Timbers of the New World.New Haven: YaleUniversity Press, 1943. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 640 p. AZARA, F.de.Descripcion éHistoria deiParaguay SEPP, P.A. Viagens às Missões Jesuíticas etraba- y dei Río de la P/ata. Madrid: Imprenta de lhosapostólicos. SãoPaulo:LivrariaMartins/Edi- Sanchiz, 1847. v. 1.346 p. tora daUniversidade de São Paulo, 1972.206 p. 33