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O Último Tango de Salvador Allende PDF

304 Pages·2014·2.19 MB·Portuguese
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Ficção? Realidade? Embora se apoie na agitada história recente do Chile e numa profunda investigação do autor, este livro é um romance, e deve ser lido como tal. Às vítimas da violência política do último meio século no Chile, pátria de todos, onde ninguém está sobrando. “Sei que perdi tantas coisas que não poderia contá-las, e que essas perdas, agora, são o que é meu.” “Posse do ontem” Jorge Luis Borges * O padeiro e a CIA – Mario Prata Um americano desembarca em meados dos anos 1990 no Aeroporto Internacional de Santiago, no Chile, carregando uma pequena caixa. Na alfândega: – O senhor pode me explicar o que é isto? – Cinzas. – Cinzas? – Há receio em seu olhar. – Exato. – Cinzas do quê? – As cinzas de Victoria – esclareço. – Quem é Victoria? – Minha filha. – Sua filha. – Isso mesmo. Roberto Ampuero, autor do diálogo acima, exilou-se em 1973, logo depois do 11 de setembro chileno, dia da queda do então presidente Salvador Allende. Durante vinte anos viveu em Cuba, nas duas Alemanhas, na Suécia, no México e nos Estados Unidos, onde foi professor de espanhol e português na Universidade de Iowa. Voltou ao seu país em 1993, foi embaixador no México e hoje é ministro da Cultura no Chile. Em 1993, aos 40 anos, começou a escrever profissionalmente. Sete livros policiais protagonizados pelo bigodudo detetive Cayetano Brulé, misto de cubano, chileno e francês. Como ninguém, Ampuero e seu personagem sabem investigar crimes. No livro que está em suas mãos, o autor faz uma investigação política. Mas não é Cayetano quem narra e atua. É um ex-agente da CIA (sim, o que carrega as cinzas da filha) que atuava no Chile no começo dos 1970. O espião americano aposentado passa as mais de trezentas páginas do livro procurando uma pessoa para entregar as cinzas. Para quem? Por quê? Onde? Ao mesmo tempo está lendo um diário – escrito em 1973, a lápis, por um padeiro amigo de juventude do presidente – diário que lhe foi entregue pela filha em seus últimos momentos de vida. E o que tem a ver as cinzas com o diário? Exatamente aí é que entra a magia de Roberto Ampuero e o seu domínio do suspense: em escrever um romance com dois narradores bem distintos. Um americano da agência de espionagem dos Estados Unidos e um típico representante da classe operária chilena dos anos 1970, o padeiro. Antes de começar o romance, Ampuero nos dá um aviso: “Ficção? Realidade? Embora se apoie na agitada história recente do Chile e numa profunda investigação do autor, este livro é um romance, e deve ser lido como tal.” O autor que me perdoe, mas não pode ser lido apenas como um romance. Nunca, nem na literatura de ficção, nem na de não ficção, vi alguém mostrar tão claramente como a CIA agia na América Latina naqueles cinzentos anos. Estamos diante de uma obra-prima político-policial que, em seus momentos finais, mesmo que todos saibam que o presidente se suicida, torna-se, ali sim, um romance lírico, totalmente romântico, antológico. Um final de arrepiar! É para ler e não esquecer aquela realidade, pois, como diz um personagem: – A História não é linear nem tem lógica. [...] Nós, seres humanos, somos os únicos capazes de tropeçar duas vezes na mesma pedra. Tudo pode voltar a acontecer na América Latina. De forma parecida ou diferente, mas tudo pode acontecer de novo. Não se assusta com essa perspectiva? 1 * Mario Prata é escritor e, no momento, dedica-se à literatura policial. 1 Envolto na capa alva que flameja ao vento do crepúsculo, o Doutor voa sobre as vielas, passagens e escadarias que descem serpenteando até o Pacífico. Passa por cima dos navios enferrujados atracados no porto, segue pelos ares até a fonte de peixes coloridos da praça Echaurren e, lá do céu, admira não só as copas das palmeiras centenárias e o estrondo das ondas que quebram nos rochedos e anunciam a severidade agreste das colinas, mas também o amplo arco descrito por seu próprio voo. Embora um adejar de beija-flor agite seu estômago, pois desde a infância a altura lhe causa vertigem, o Doutor sorri ao divisar um bando de pelicanos que desliza rente ao oceano. Aspira a fragrância de algas marinhas e se dirige à igreja da Matriz, onde tenta pousar seus mocassins de camurça junto ao campanário coroado pela cruz de madeira – que ficou inclinada após o último terremoto. Os estalos das pombas que decolam do campanário abortam sua tentativa de pôr o pé sobre as telhas. Demora a constatar que seu fracasso não se deve aos pássaros, mas ao toque do telefone, que agora ele procura apalpando no escuro do quarto. O despertador sobre o criado-mudo mostra que faltam quatro minutos para as cinco da manhã de 11 de setembro de 1973. Leva o fone ao ouvido. – Deslocamentos suspeitos da Marinha em Valparaíso – anuncia uma voz. O Doutor acende o abajur, põe os óculos e tem a convicção de que neste dia irá morrer. Está sozinho em seu dormitório da avenida Tomás Moro, 200, em Santiago do Chile, longe de seu porto natal de Valparaíso, num espaço que mais parece a modesta cela de um monge franciscano. O quarto dá para a biblioteca, onde o esperam o xadrez de marfim e, junto à porta que se abre para o terraço com lajotas mouriscas e a piscina com o crocodilo embalsamado, sua amada coleção de huacos1 peruanos. Fica quieto, pensando no sorriso delicado da esposa, que dorme no quarto do segundo andar. Imagina a respiração espaçada e cadenciada de Hortensia. Imagina que ela sonha que são namorados. Imagina que ela sonha que voltam a compartilhar a cama. Admite que ela continuará a habitar sua memória como a beldade de tez pálida e cabelo escuro, cujos olhos claros o cativaram há mais de quarenta anos, na noite em que ele, em meio a um terremoto, fugia apavorado por uma rua de Santiago, vindo dos bancos de um templo maçônico. – Seja mais específico – diz o Doutor. Os boatos de levantes militares são o pão de cada dia desde que assumiu a presidência, três anos antes. – A Marinha zarpou ontem à noite para se unir à frota norte-americana e realizar as manobras conjuntas da Unitas2 – explica a voz. – Isso fui eu que autorizei – retruca o Doutor, esfregando o calcanhar de um pé no peito do outro, em meio ao agradável calor dos lençóis. – O que acontece é que a frota está voltando – acrescenta a voz, agora trêmula. – Só consigo ver os navios no escuro, mas estão de luzes apagadas na baía, vigiando a cidade. Podem bombardear-nos a qualquer momento. – Algo mais, companheiro? – O Doutor sai da cama e se despe do pijama de flanela diante do espelho do guarda-roupa, que lhe mostra seu promontório abdominal e a pálida magreza de suas coxas. – Há soldados da Marinha nos principais cruzamentos da cidade. Com uniforme de combate... – Consultaram o comando naval? – Depois de ativar o dispositivo viva-voz do telefone, o Doutor recolhe do chão a cueca do dia anterior e se enfia nela sem perder o equilíbrio. A seguir, de qualquer jeito, tira do guarda-roupa uma calça, uma camisa e um suéter com losangos, e veste-se apressadamente. – Ninguém atende na Marinha, Doutor. – E no Ministério da Defesa? – Lá também não estão atendendo. – E localizaram os comandantes em chefe? – Calça um dos sapatos pretos. – Ninguém responde na casa deles, Doutor. – Então vou ao palácio – anuncia o Doutor e, após colocar o fone no gancho, avisa os seguranças pelo interfone. Barbeia-se a seco e às pressas com o aparelho descartável, tira do cabide um paletó de tweed e vai até a biblioteca, onde agarra o fuzil AK que Fidel lhe deu de presente. Toma um gole de café frio na penumbra da cozinha e vai até a rotunda, onde quatro automóveis Fiat 125 azuis e uma caminhonete esquentam os motores. A comitiva sai rugindo pela Tomás Moro, e, antes que os guardas fechem o portão, o Doutor lança um último olhar àquele casarão branco de telhas de argila, que permanece no escuro, e às duas palmeiras que ladeiam a porta de entrada e parecem vigiar a passagem do tempo. 1 Peças de cerâmica originárias das culturas pré-incaicas. [N. T.] 2 Os exercícios militares navais da UNITAS – liga inicialmente formada por Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Colômbia, Equador e Venezuela, encabeçada pelos Estados Unidos – ocorreram anualmente a partir de 1959. A princípio, tinha como objetivo a prevenção de ataques da União Soviética. Com a mudança da conjuntura política global, passou a ter outros focos. [N. E.]

Description:
Depois de 35 anos de sua participação na conspiração que terminou com o governo e com a vida do presidente chileno Salvador Allende, David Kurtz, um agente aposentado da CIA, volta a Santiago. O que o motiva a regressar ao antigo palco de suas operações são documentos que sua fi
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