O saber das crianças e a psicanálise da sua sexualidade. Raúl Iturra Para a minha descendência. 1. Introdução. Falar do saber das crianças, é uma temática difícil por dois motivos: primeiro, porque temos de entrar na mente cultural1 dos mais novos e entendermos o que querem 1 Mente cultural, conceito criado por mim, no livro de 1990, A construção social do insucesso escolar. Memória e Aprendizagem em Vila Ruiva, Escher, hoje Fim de Século, Capítulo 8, página 87 e seguintes: “A sabedoria das crianças”, que define o saber costumeiro do seu grupo social, incutido no mais novo pelos seus adultos, desde o primeiro dia da sua vida. Tenho-o definido também com uma simples frase: “pega no livro e aprende”, retirada de conversa de adultos com filhos pequenos, ao pensar que o saber advém dos textos e da escola e não da interacção social. Ideias que acrescento neste livro para contextualizar a mente cultural, o que dizem os adultos ao pensar que o saber é sempre doutoral, sem repararem que o seu comportamento perante a infância, é a principal fonte de alimentação do conhecimento do mundo, da sua história, do conteúdo dos conceitos estruturados nas palavras costumeiras e definidos mais com acção corporal e não com palavras. O processo gestual tem mais valor 1 dizer ao balbuciar essas primeiras palavras, que aprendem à medida que crescem, de que só eles sabem o conteúdo. Os pais, ou os seus adultos directos, começam a entender pelo hábito de ver a criança indicar com gestos o que deseja, reconhecem o objecto e podem explicar o seu conteúdo a outros. Essa primeira reacção, que eu denomino primeira via, conceito explicado mais à frente, é a que define uma relação emotiva, carinhosa, compreensiva e de entendimento do que a infância, no seu não saber falar, explica não com palavras ou gestos, mas com fantasia. Os pequenos usam muito a sua fantasia2 para exprimir os seus desejos de uma guloseima ou outra materialidade do seu agrado. Não esqueço um acontecimento da minha história de vida. Aos quinze anos e a convite dos meus pais, como era natural no tempo que essa cronologia não me permitia ganhar dinheiro para pagar o meu bilhete do Cinema Velarde – que em chileno se diz apenas Teatro – e ver o filme – em chileno película – ouvi a voz do marido de um casal que estava no mesmo cinema, dirigindo-se ao pé do meu Senhor Pai com muita alegria, após mais de doze anos de não estarem juntos esses grandes amigos, abraçaram-se e a primeira frase que o amigo disse foi: “Não me digas, não me digas, é este o gallallia?3 “Por amor de deus, como cresceu, é todo um jovem hoje em dia”, ao que os meus Senhores Pais responderam que sim, que era eu. Adquiri essa alcunha por causa de uma palavra inventada por mim aos três anos de idade, ao me ser impossível pronunciar a palavra “galleta”. Impossível, porque as consoantes sempre foram um problema para os chilenos. A minha espanhola mãe sabia pronunciar todas as palavras e sentia orgulho que milhares de palavras entre a infância e o seu grupo social, ou do grupo de adultos, para o entendimento infantil. Considero esta nota de rodapé como um acréscimo ao meu conceito de mente cultural. 2 O dicionário que me auxilia na escrita, define assim fantasia: do Lat. phantasia Gr. phantasia, imagem, s. f., imaginação; em que há imaginação; obra de imaginação; devaneio, sonho, ficção. Freud define fantasia de uma forma muito complexa: Precisar o conceito de fantasia na obra freudiana não é tarefa simples, embora se imponha, pois surge repetidas vezes e em momentos diferenciados ao longo de toda a teoria. O termo único utilizado pelo autor – Fantasie – é bastante abrangente, comportando várias significações: fantasias conscientes, pré-conscientes, inconscientes, devaneios diurnos... A sua definição, portanto, constitui-se como uma necessidade, imposta não apenas pelo estudo da doutrina psicanalítica, mas também pela clínica apoiada nesta definição. Freud e Breuer falam extensamente sobre fantasia nos seus estudos de neuroses, em: FREUD, S., E.S.B.-1976, vol. XVI, Conferência XXIII (1917): “Os Caminhos da Formação dos Sintomas”, p. 430 (grifos originais). Texto acessível em: http://www.maxwell.lambda.ele.puc-rio.br/cgi- bin/PRG_0599.EXE/4124_3.PDF?NrOcoSis=8768&CdLinPrg=pt. Acrescenta no mesmo texto e página, esta sucinta definição: As fantasias possuem realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva. 3 Palavra inventada pelas crianças chilenas quando se referem a bolachas que, em Castelhano, diz-se “galleta”. Contudo, tenho a impressão de ser uma palavra criada por mim, como narro no texto central. 2 que a sua descendência falasse como ela. Semelhante ao caso do meu Senhor Pai, descendente de bascos endogâmicos e muito cuidadoso na sua pronúncia, por ser um senhor muito elegante e bem-criado, com a mania de nos incutir um falar “correcto”. Por causa dessa atitude, que analisarei adiante, a palavra “galleta” era repelida por mim. Reacção a tanta imposição da parte dos pais a impingir-me em idade tenra, uma boa pronúncia das palavras. Bem sabido é que as crianças começam a falar com um vocabulário mais completo cerca dos três anos. Se houver resistência às palavras completas, pode-se dever ao facto dos adultos insistirem nessa fala perfeita. A resistência não é às palavras, mas sim aos pais que obrigam os mais novos a falar de forma completa numa idade em que os conceitos ainda não estão formados. Se os conceitos não estão formados, as palavras que os exprimem também não4. Esta opinião não é apenas minha. Há a de Freud que ao falar com Joseph Braeur5, seu professor e mais tarde colega, diz: “... que acha difícil convencer os outros médicos, sobre a ideia de que a teoria deveria ser invertida, porque as palavras exprimem o que acontece na libido infantil e na dos seus adultos, que eles ouvem. A sexualidade adulta torna-se sexualidade infantil pelas palavras dos adultos...”. Breuer, tomando Freud como filho, proíbe-o de publicar aquele capítulo da sexualidade infantil. Freud resiste dizendo: "chega uma hora que se deve renunciar a todos os pais e ficar de pé sozinho"6. Numa palestra realizada no "Conselho de Neurologia e Psiquiatria de Viena", Freud começa por frisar como na "Idade da Inocência", a criança não tem consciência do seu erotismo. Após, estudos e análise da libido infantil, existe, afirma, a fase oral da criança, correspondendo a boca à zona de prazer, pelo desejo dos seios da mãe, 4 Uma criança começa a falar, geralmente, quando completa 01 ano de idade. Os estudiosos tendem hoje a insistir mais na herança (genética), com o que concordo, que no factor meio ambiente social e cultural, o que não quer dizer que este último não exerça nenhuma influência. Estímulos ajudam. Seja como for, em princípio, o falar não está necessariamente vinculado ao potencial intelectivo do indivíduo. Um antigo génio, como o filósofo Fridriech Niezsche, começou a falar aos 03 anos de idade. Esta nota é em parte minha, em parte de uma estudante do jogo Yahoo Respostas, denominada Maria Helena, sem nome de família. As várias alternativas podem ser estudadas em: http://www.google.com.br/search?hl=pt- PT&sa=X&oi=spell&resnum=0&ct=result&cd=1&q=Freud+idade+crian%C3%A7as+come%C3%A7am +falar&spell=1. 5 Josef Breuer (Viena, 15 de janeiro de 1842 — Viena, 20 de dezembro de 1925), médico e fisiologista austríaco a quem se atribui a fundação da psicanálise. Seu pai, Leopold Breuer, foi professor de religião na comunidade judaica de Viena. Devido à morte prematura de sua mãe, Josef foi criado pela avó materna. História completa em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Josef_Breuer 6 Retirado de cartas trocadas entre Breuer e Freud e de histórias contadas por outros. Texto completo em: http://www.nucleodepesquisas.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=97&Itemid=75 Cronologia em: http://www.geocities.com/mhrowell/freudcitacoesindice.html. 3 seguidamente o prazer da criança passa a ser pelo corpo inteiro da mãe porque é esta quem acaricia os seus meninos 7durante o banho. No meu caso, de certeza, como todo o ser humano, experimentava esses desejos, sublimados na proibição de comer bolachas entre horas de comer. O meu desejo pelas bolachas era tão grande, que resistia ao guardião dos filhos, a figura do pai, como tenho debatido com o meu grande amigo, o analista João Cabral Fernandes8. Talvez, na minha história de vida opusesse resistência à figura do pai, por meio das bolachas, essa resistência infantil que nem sabe que está a acumular raiva. Essa que os meus descendentes também guardaram, por configurar, conforme a cultura, a figura do pai, ao proibi-los de comer qualquer alimento entre as horas das refeições. Grande o meu engano, sinto-o hoje em dia. Há horas distanciadas para as guloseimas e para as refeições. As minhas pequenas tinham todo o direito a guloseimas entre comida e comida; se eu não permitisse, bem sabiam como enganar a figura de pai pretendida por mim. Eu fazia ouvido mouco. Permitia. Sem refilar. Sem punir. Sem homilias. Se almoçavam ou não, já não era problema meu: elas sabiam como se alimentar.... Uma criança não pode comer como um adulto, o seu corpo não tem essa capacidade. Na minha infância, os pequenos deviam comer tudo o que era servido na mesa dos mais novos, normalmente com quantidades idênticas às dos adultos. Os pequenos apenas podiam transitar para a mesa dos adultos, quando sabiam comer tudo 7 Informado no comentário do filme intitulado: Freud, Além da alma, de 1962, título original: Freud, secret passions, de John Huston. O filme conta o período da vida do "pai" da psicanálise, desde a sua graduação no curso de Medicina, na Universidade de Viena, até à formulação da teoria da sexualidade infantil, inter-relacionando a vida pessoal com as suas descobertas. 8 O Médico Psicanalista João Cabral Fernandes, meu grande amigo, é uma pessoa amável e bem-criada no meio de imensos irmãos e irmãs, pela sua Senhora Mãe e pelo seu Senhor pai, seu duplo guardião porque, como Freud e Bion analisaram, a figura de pai é a de ser o guardião dos descendentes e porque o seu pai foi um Senhor Magistrado que bem sabia aplicar a lei para a pessoa certa. É desse exemplo, que João Cabral Fernandes aprendeu a ser excelente ser humano. Fiz dez anos de psicanálise com ele e curou- me das ideias persecutórias, adquiridas na vida adulta, quando fui levado para um campo de concentração aquando da minha visita ao Chile do Presidente Allende. O Dr. Cabral Fernandes, um homem empreendedor, é assim mencionado na Internet: «Criada em 1996 pelo seu Director Editorial, João Cabral Fernandes, a CLIMEPSI EDITORES veio preencher um vazio na área da edição de livros técnicos e científicos em português e afirma-se hoje no panorama editorial como uma editora especializada nas áreas de Psicologia, Psicanálise, Medicina, Saúde e Enfermagem. Tendo por objecto a edição e promoção científico – cultural de livros de referência, a CLIMEPSI EDITORES é hoje reconhecida pela sua qualidade no meio universitário português, colaborando com os principais editores internacionais. No âmbito da sua linha editorial, a CLIMEPSI EDITORES assume-se ainda como um parceiro privilegiado de diversos organismos internacionais, entre os quais, o Ministério da Cultura Francês». 4 sem refilar. Com novas aprendizagens, sabemos que há tamanhos e tamanhos, diferença que todo o adulto deve considerar. No meu trabalho de campo, tenho observado crianças, analisadas por mim, a serem alimentadas com pratos cheios como os dos adultos, e dois pratos de comidas diferentes. A criança resiste. Muita comida e bem condimentada, cria um corpo doente. Por recomendação, os pais das crianças estudadas por mim e a minha equipa, começaram a servir comidas leves, sem especiarias. Ganharam em saúde. Não era fome o que as fazia comer, era a figura guardiã do pai, a que inventava a fome que o mais novo nem tinha: ou comia por amor aos seus ascendentes, ou por temor à punição. Punição muito estranha: se não comia já, mais tarde nada podia engolir, nem o jantar da noite. Naturalmente, a criança, no dia seguinte, comia imenso. O comentário dos adultos observados por mim era sempre: “vês como o castigo dá bons resultados?” Mas, uma vez satisfeito esse obrigado jejum, de “barriga cheia”, tornava a desventura de não querer esses pratos cheios. Os mais novos comem porque têm um guardião no tempo, na sua idade da inocência, como era denominada por Freud, a cronologia infantil. Um guardião que o analista denominou pai castrador – fosse pai ou mãe. Idade da Inocência combatida por ele ao definir a sexualidade das crianças, como se verá quando analisarmos o seu texto de 1905. Obra comentada, em 1979, por Cármen Barroso e Cristina Bruschinni, no trabalho intitulado: “Sexualidade infantil e práticas repressivas”. Dizem elas que as crianças teriam dois defensores: Freud, por conceder à sexualidade infantil um confortável trono real, em que esta caminha sob vermelho tapete psicanalítico, e Malinowski ao provar nas Kiriwina que o complexo de Édipo não é universal9. No caso de Malinowski é bem 9 Escrito na Revista Pesquisa – Fundação Carlos Chagas, nº 31, Dezembro de 1979, São Paulo, periódico que acolhe textos do Brasil e do estrangeiro e pode ser lido em: http://www.multiverso.com.br/resumo.asp?ofe_cod=611&parceiro=6&nome=revista- fapesp&gclid=CLXOl6i08JcCFYsh3god0nMyDQ, a citação é da Revista em linha, num livro denominado Movimentos sociais, educação e sexualidade, página 253, 1979, em: http://books.google.com/books?id=KazvKsy88JcC&pg=PA253&dq=Freud+A+idade+da+inoc%C3%AA ncia&lr=&hl=pt-PT#PPA6,M1, que diz resumidamente: os costumes e as ideias a respeito da sexualidade infantil variaram ao longo do tempo e nas diferentes sociedades. Freud, ao mesmo tempo que foi um inovador radical, não conseguiu fugir à influência da cultura repressiva da qual fazia parte, implicitamente justificando muitas de suas práticas. Apresenta dados colectados recentemente em São Paulo sobre práticas repressivas em famílias de baixa renda. Conclui que qualquer esforço teórico de compreensão das raízes da repressão da sexualidade infantil deve considerá-la também naquilo que representa de potencialidade de desenvolvimento da sexualidade adulta e deve colocá-la no contexto das demais práticas educacionais utilizadas em determinado tipo de estrutura familiar, situada numa dada estrutura social. Esta síntese pode-se ler em: http://www.fcc.org.br/pesquisa/actions.actionsEdicoes.BuscaUnica.do?codigo=509&tp_caderno=0, texto completo em: http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/cp/arquivos/509.pdf. As referências a Freud, foram retiradas das Obras Completas, 3ª Edição, Editorial Nueva, Madrid. Há uma tradução, em inglês, do livro de 1905, On Sexuality, Pelican Books, 1979, Londres, retirado do Volume VII, 1953, Standard Edition of the Complete Psychoanalitical Works of Sigmund Freud, 1953, Hoggart Press and the Institute 5 mais simples. Consegue provar que o Complexo de Édipo não é Universal, ao existir o matrimónio da mulher do irmão, donde, os filhos são da mulher e do que nós denominamos tio. Apenas se esqueceu que há incesto e Complexo de Édipo no caso do acasalamento se realizar dentro do mesmo clã ou, se o homem da mulher do irmão ama as crianças, e não gosta essa tradição que os varões transitem para a casa do irmão da mãe. Tudo é muito simpático quando é narrado, mas na realidade o quotidiano é quem fala. Malinowki nada diz, mas os meus colegas que pesquisam na Melanésia têm observado e escrito nos seus livros os ciúmes que ocorrem na realidade, como o caso estudado por Maurice Godelier, que veremos mais à frente, e The Sambia10 de Gilbert Herdt11. Malinowski publicou o seu texto em 192712 onde compara a psicanálise com a of Psycho-Analysis, Londres, com os textos seguintes: “The Sexual Enlighment of the Children”; “On the Sexual Theories of the Children”;” Character and Anal Erection”; “Family Romances”, Volume IX, 1959; “Contributions to the Psychology of Love”, Volumes I-II & III; Volume XI, 1957, “The Lies Told by Children”; Volume XII, 1958: “On Transformation of Instincts as Exemplified in Anal Erection”; Volume XIII, 1955: “The Infantile Genital Organization”; “The Dissolution of Oedipus Complex”; “SomePhyaical Consequences of the Anatomical Distinction Amongst the Sexes”; Volume XIX, 1961: “Fetishism”; “Female Sexuality”; Volume XX, 1961: “Sigmund Freud: An sketch of his life and Ideas”, first published as “The Short Account of Psychoanalysis”, Pelican Books, 1962. Comigo tenho uma reimpressão do texto On Sexuality, datada de 1982. 10 Sobre Os Sambia e a construção da masculinidade, com texto em inglês pode-se ler em: http://milena.27designs.com/ ou em várias outras entradas Internet da página web: http://www.google.com.br/search?hl=pt-PT&q=The+Sambia&btnG=Pesquisar. 11 Herdt, Gilbert, 1987: The Sambia. Ritual and Gender in New Guinea, Holt, Rinehart and Wiston, Chicago, USA, 227 páginas em formato de papel. Gilbert Herdt (born February 24, 1949) [1] is an American cultural anthropologist who specializes in sexuality and gender identity-based cultures. His studies of the 'Sambia' people - a pseudonym he created -- of Papua New Guinea analyzes how culture and society create sexual meanings and practices. In the United States, Herdt has also studied adolescents and their families, the emergence of HIV and gay culture, and the role that social policy plays in sexual health. Biografia completa em: http://en.wikipedia.org/wiki/Gilbert_Herdt. Comentários sobre o livro em: http://www.google.com.br/search?hl=pt-PT&q=Gilbert+Herdt+The+Sambia. Embora não exista versão portuguesa, podem ser lidos comentários em língua lusa: "A proporção em que masculino e feminino se misturam num indivíduo, está sujeita a flutuações muito amplas. (...) aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade é uma característica desconhecida que foge do alcance da anatomia" Freud, "A feminilidade". Comentários sobre este texto, citado de forma enganada pelo autor do artigo, em: http://www.google.com.br/search?hl=pt- PT&q=Freud+A+feminilidade&btnG=Pesquisa+do+Google&aq=f&oq=. Paulo Roberto Ceccarelli, psicólogo, em: A Construção da masculinidade, em Revista Percurso, São Paulo, Vol. 19, p.49-56, 1998. Diz, no início: “O modelo biológico do masculino e do feminino é válido para a definição celular; mas seria ilusório pensar que a identidade sexuada poderia ser definida a partir do biológico, a despeito das esperanças daqueles que nele quisessem encontrar uma solução para os problemas de identidade: isso seria ignorar que o essencial da sexualidade humana reside em sua dimensão inconsciente.... O modelo freudiano do masculino e do feminino, lacunar e fechado num sistema simétrico binário, reflecte a dificuldade de Freud para falar destas noções. Além disso, as posições teóricas de Freud revelam que sua escuta não era imune a seus próprios complexos inconscientes, à sua própria organização identificadora e ao discurso social de sua época. Assim, ao expressar-se sobre a questão do masculino e do feminino, fala de "conceitos", de "noções" e até mesmo de "qualidades psíquicas". Em determinados momentos, refere-se ao masculino e ao feminino em termos de actividade e passividade; em outros observa que, tratando-se de seres humanos, esta relação é insuficiente. Texto completo em: http://www.ceccarelli.psc.br/artigos/portugues/doc/a%20construcao.doc. 6 antropologia, dizendo que o analista devia ir para o campo para entender a realidade. No entanto, essa realidade é disfarçada pelo autor como é conveniente para a sua hipótese em debate com o analista Ernest Jones, discípulo de Freud. O debate acaba quando, como prova final do Complexo de Édipo não ser Universal, é publicado em 1929, o seu famoso texto de 506 páginas The sexual life of savages in North Western Melanésia13, que também analisaremos aqui. Todos estes textos, não esquecem a figura paterna como guarda, tornando-se, assim, imprescindível, sabermos o que a figura paterna representa na infância. No meu caso das bolachas, mal entrava numa casa, de imediato ia às mobílias para procurar “gallallas”. A minha mãe ficava enternecida, a senhora da casa também. Não esquecerei o dia em que entrei na casa da enfermeira que tratava os trabalhadores da fábrica do nosso Senhor Pai, como relato noutro livro meu (a editar brevemente), e ir de forma precipitada para uma mobília de madeira de sândalo lavrado e coberta por uma peça de mármore de Carrara, que fez a minha grande ilusão. Era uma mesa encantadora e chamava a minha atenção. Essa enfermeira, Dona Ema Cubillos de Geisser, era na verdade uma parteira, denominadas Matronas no Chile. Tinha dinheiro e a sua casa era de uma elegância que qualquer criança poder-se-ia iludir com a ideia de que dentro dela haveria imensas maravilhas, portanto, também, “gallalas”. O nosso Senhor Pai, de imediato, chamou-me à atenção, no seu papel de guardião: “Menino, não faça isso”. Por ser, nesses tempos filho único, pensava que tudo era meu, e não quis ouvir e não parei quieto até rever toda a mobília da casa. Não havia “gallallas”... Grande desilusão! O puxão de orelhas do Senhor Pai doía menos que a falta do bem mais cobiçado, largamente conhecido pela família, amigos e vizinhos. A transgressão às ditas boas maneiras nem era um afazer mau para mim. Se tudo era meu, porque não tinha “gallallas”? Essa figura guardiã e restritiva, esse papel de pai, tão diferente do da mãe e do das mulheres que também tinham filhos, era apenas no olhar, uma grande punição. 12 Malinowki, Bronislaw, 1927: Sex and repression in savage society. Routledge and Kegan Paul, Ltd, Londres. Excertos do livro podem ser lidos em: http://books.google.pt/books?id=oXcxNvTMYv8C&dq=Bronislaw+Malinowski+Sex+and+repression+in +savage+society&printsec=frontcover&source=bn&hl=pt- PT&sa=X&oi=book_result&resnum=4&ct=result, versão portuguesa de 1973, Vozes, Brasil. Texto completo em: http://classiques.uqac.ca/classiques/malinowsli/vie_sexuelle/vie_sexuelle.html. Sobre o autor, pode-se aceder a: http://pt.wikipedia.org/wiki/Bronis%C5%82aw_Malinowski#Bibliografia. 13 Versão em luso-brasileiro de 1983, Editora Vozes, Rio de Janeiro. O livro em língua lusa não está em linha, mas há comentários em: http://www.google.pt/search?hl=pt- PT&sa=X&oi=spell&resnum=0&ct=result&cd=1&q=bronislaw+malinowski+A+Vida+Sexual+dos+Selv agens&spell=1. 7 Se o pai é figura restritiva, o filho deve respeitar e ter medo. Mas eu, no meu azarado afã de ter o que queria, nem medo tinha das mandadas restrições da figura punitiva do pai. Um pai que pune e vigia, se é a imagem do ser que controla, de facto, como diz Freud, acaba por ser um pai castrador14. É a terceira noção que a criança aprende do pai, na cultura ocidental. Pai castrador que o filho deve matar para existir paz na família, como defino em nota de rodapé. A definição dos estágios da figura paterna perante o menino aparece no seu texto de 192315. A teoria freudiana desenvolve estágios de paternidade, ao comparar um pai primário para a criança, com o pai que pune e castra os filhos na sua vida adulta. Freud responde à questão: o que é um Pai? O pai freudiano é o pai morto, retomado por Lacan como Nome – do – Pai (Subversão do sujeito e dialéctica do desejo no inconsciente freudiano). Pai morto articulado nos dois mitos freudianos: o pai da horda primeva e o pai do complexo de Édipo. 14 O pai castrador é a terceira categoria, ou o terceiro estágio, do tipo de pai que aparece na estrutura da teoria da sexualidade das crianças em Freud. Está definido no texto Organização Genital Infantil e da noção de falo. O primeiro tipo de pai que ele classifica, é o proto – pai, ou pai primevo, origem da Lei, que ele dita, sem a ela se submeter: a lei do proto – pai é uma lei fálica para organizar a vida da família, assim, ele necessita estar acima da lei. É o modelo de pai que aparece no seu livro de 1912, retirado das pesquisas de Durkheim sobre os Aranda ou Arunta da Austrália Central. Proto-pai que não se submete à Lei. Esta obra, traduzida para inglês, em 1919, como Totem and Taboo. Resemblances between the psychic lives of savages and neurotics, responde a uma necessidade lógica da origem da lei, pai mítico, macho dominante, morto pelos filhos. O texto pode ser lido em francês em: Totem et tabou. Interprétation par la psychanalyse de la vie sociale des peuples primitifs (1912). Traduzido do alemão para francês com a autorização de Freud, em 1923. Reimpresso, 1951. Texte téléchargeable ! Em: http://classiques.uqac.ca/classiques/freud_sigmund/freud.html. A sua análise é curta e fria ao estudar emotividades, mas muito detalhada nos aspectos sobre neuroses, especialmente na análise do incesto. O autor procura, como, mais tarde, Georges Devereux, psicanalista húngaro, que enveredou pela Antropologia sob orientação de Marcel Mauss, estuda a etnia Mohave dos Estados Unidos de América, confrontando a teoria freudiana, mas no terreno, e não no texto, como Freud que analisou a etnia Arunta a partir dos estudos de Durkheim e seus discípulos, cujos resultados são analisados no livro de 456 páginas, com o título de Les Structures Élémentaires de la vie religieuse, Le système totémique en Australie, 1912, Félix Alkan, Paris, livro que pode ser lido em: http://classiques.uqac.ca/classiques/Durkheim_emile/formes_vie_religieuse/formes_vie_religieuse.html. sobre o tabu do incesto entre os Aranda. É possível ver que o proto – pai de Durkheim é diferente do de Freud, apesar de ter sido retirado das mesmas fontes etnográficas. Só que Durkheim, analisado por mim noutro texto, endereçou a sua pesquisa ao estudo dos rituais, especialmente ao sacerdote tribal Aleteucha e a sua forma de ensinar aos mais novos o saber de sobrevivência. O Aleteucha é o proto–pai entre os Arunta. Para Freud, o recurso ao ritual totémico, é uma forma infantil, donde neurótica, de apoio para viver. Para Durkheim, o proto – pai é um pedagogo, para Freud, uma fantasia mental. Paradoxo – porque teria que haver a ameaça da castração como punição se já havia a ameaça de morte? Freud diz que a morte do Pai era necessária para estabelecer uma certa relação entre os filhos. Questão colocado pelo docente Márcio Peter de Souza Leite da Pontifícia Universidade do Brasil, em: http://www.marciopeter.com.br/links2/ensino/feminilidade/02_o_pai_em_freud.pdf. 15Freud, Sigmund, (1923) 1955: The Infantile Genital Organization, Hoggart Press, and London. Em português: Organização Genital Infantil, volume. XIX, Imago, 1999, Rio de Janeiro, citada antes, em francês: L’organisation Genital de l’Enfant, em: http://www.google.com.br/search?hl=pt- PT&sa=X&oi=spell&resnum=1&ct=result&cd=1&q=Freud+Les+Classiques+des+Sciences+sociale+L% 27Organisation+Genital+de+l%27%C3%AAnfant&spell=1. A lei fálica é a que faz de um adulto um pai 8 Para aquilo que não é mito, que vai além do mito, encontramos em Freud o complexo de castração, mola mestre do sujeito na psicanálise, eixo estrutural do sujeito dividido. Complexo que Georges Devereux16 quis provar não ser universal, e, já antropólogo, foi estudar entre a etnia Mohave17 dos Estados Unidos de América. Ele próprio, queria provar se a teoria de Freud era ou não universal e analisou a teoria psicanalítica dos Mohave18, que soube explicar, após um prolongado trabalho de campo, em vários textos escritos em língua húngara, traduzidos para francês. A castração marca a interdição, é da ordem do sacrifício. Tendo como contexto a via do mito da horda primeva naquilo que viabiliza a estrutura, como é o caso desse texto, nota-se que o facto dos filhos não puderem aceder às mulheres num primeiro momento hipotético não indica, necessariamente, que eles seriam, dali por diante, castrados, apesar de a lei já circular. Com o assassinato do pai fizeram um acordo, uma hipotética ordem social, um funcionamento viável ao instituir os dois tabus, donde se deduz o que deve ter passado pela subjectividade, cada um pôde assim renunciar e consentir em perda, submetendo-se à interdição. Aqui encontramos a função do pai 16 Georges Devereux (born Dobó György on 13 September 1908 — 28 May 1985) was an ethnologist and psychoanalyst. Foi um dos pioneiros da etnopsicanálise (ethnopsychoanalysis). Autor que eu admiro, começou a praticar psicanálise em trabalho de campo, teoria a que recorro para as minhas observações das crianças e dos seus pais. A sua história pode ser lida em: http://en.wikipedia.org/wiki/George_Devereux. Fomos colegas de ensino, com o meu eterno amigo Maurice Godelier, em La Maison de Sciences de l’Homme, nos anos setenta do século passado. 17 O resultado do seu estudo, entre outros textos escritos por ele sobre os Mohave, está no livro de 920 páginas, original em inglês de 1961: Mohave Ethnopsychiatrie: The Psychic Disturbences onf an Indian Tribe, Smithionan Instituion (Bureau of American Ethnology-Bulletin 75, Washington DC, traduzido para francês em 1996, por Françoise Bouillot, com o título de: Ethno-Psychiatrie des Indiens Mohaves, editado por Corlet, Imprimeur, Paris, 1996. Os seus livros não estão em linha, mas há comentários nas entradas Intenet da página Web: http://www.google.pt/search?hl=pt- PT&q=Les+Classiques+en+Sciences+Sociale+Georges+Devereux&btnG=Pesquisar&meta=. 18 Devereux, Georges, (1961) 1996 : Ethno-psychriatrie dês Indiens Mohaves, citado antes, da Collection Les Empêcheurs de Penser En Rond. É comentado em todas as entradas Internet da página web: http://www.google.com.br/search?hl=pt-PT&q=Georges+Devereux+Ethno- .Psychiatrie+des+Indiens+Mohave+1996&btnG=Pesquisar com prefácio em: http://www.ethnopsychiatrie.net/actu/hebranarchiste.htm, intitulado: “Devereux, en hébreu anarchiste”, da autoria de Tobie Nathan, retirado do livro em formato de papel. O texto mais interessante para mim de Devereux é o do ano de (1970) 1977: Essais d’ethnographie générale, Gallimard, traduzido do original em inglês: “Basic Problems in Ethnopsychiatry”, 1979, colecção de ensaios dos anos 1939 a 1965, Chicago University Press, 380 páginas. A tradução francesa, que tenho comigo em formato de papel, é de 394 páginas, comentada em todas as entradas Internet da página web: http://www.google.com.br/search?hl=pt- PT&q=Georges+Devereux+Essais+d%27ethnopsychiatrie+g%C3%A9n%C3%A9rale&btnG=Pesquisa+d o+Google&aq=f&oq= abordagem sobre as transgressões delinquentes da vida social da população mais nova nos diversos sítios por onde passa na sua trajectória migrante». Sobre os Mohave, consulte-se: http://www.google.com.br/search?hl=pt- PT&q=Ind%C3%ADgenas+Mohave&btnG=Pesquisar. 9 como agente da castração, o pai não é o castrador é antes o agente da castração, tendo a castração como enunciado de uma interdição 19. A função do pai na vida social é complexa. As análises dos autores citados e as dos seus comentaristas definem um papel de ser humano legislador. Perguntar-me-ia com Cyrulnik20 a quem pertence a criança, ao pai ou à mãe, ou aos dois? Com todas estas definições para entrar na mente cultural e nos secretos que as crianças guardam, frase retirada do título de um dos textos de Freud, como é possível amar? Na minha própria análise, lembro-me de ter admirado o meu Senhor Pai sempre como um exemplo, com imensas virtudes e ensino pragmático sobre a vida. Nunca falou comigo de amores ou paixões, deixou a temática para a nossa Senhora Mãe, como narro noutros livros. Recordo-me perfeitamente que o nosso Senhor Pai, por capricho pessoal, pretendia que eu desse o melhor de mim em saber, em perspicácia, uma exibição tipo macaco do filho que ele amava e que não queria castrar. Soubesse ele ou não, que com a sua atitude, impingia na criança, uma imensa timidez e uma obediência cega. Ensinou- me música, ao ouvirmos juntos discos gravados de autores clássicos e barrocos. Lembro-me ainda, de ter aprendido a ler no seu colo, enquanto ele lia os seus livros. Esse capricho passou a ser um facto: não havia escola para o menino, o menino devia estudar em casa. A escola não era para ele ir. A escola devia aparecer ao pé dele. Foi assim como o meu processo de ensino – aprendizagem aconteceu dentro dos muros de casa: docentes pagos, ensinavam e tratavam da minha disciplina de estudo. Permito-me dizer, que este facto é uma maneira de castrar ao ter sido retirado da interacção social com crianças pares em idade e condição social. A mãe defendia o meu direito à liberdade e à interacção social, mas não foi ouvida e dedicou o seu amor de seio bom, a explicar o abecedário e a complementar as minhas leituras. Essa liberdade que os pais pretendiam, foi um tiro de culatra mal orientado. Pensar em ir à escola, era para mim um horror. No entanto, acabei por ganhar imensos amigos de casa, a amar e brincar com a família nuclear, esses imensos irmãos que eu tinha ou os meus pares, filhos de amigos dos pais. O meu pré-consciente deve-me ter defendido, ao impor uma condição por 19 Texto retirado do artigo de Cármen Sílvia Cervelatti: “A função do pai. Uma articulação possível”, em: http://www.ebp.org.br/biblioteca/pdf_biblioteca/Carmen_Silvia_Cervelatti_A%20funcao_do_pai.pdf. 20 Cyrulnik, Boris, 1993 : Les Nourritures Affectives, Ódile Jacob, Paris. Não está em linha, mas é comentado em : http://www.boulimie.fr/livres/cyrulnik2_bon.htm , bem como em várias entradas Internet da página web: http://www.google.pt/search?hl=pt- PT&q=Boris+Cyrulnik+Les+Nourritures+Affectives&btnG=Pesquisa+do+Google&meta=&aq=f&oq=B oris+Cyrulnik+. 10
Description: