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o pragmatismo americano PDF

17 Pages·2013·0.21 MB·Portuguese
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O PRAGMATISMO AMERICANO E A RENOVAÇÃO DO CAPITALISMO Giovanni Semeraro1 O pragmatismo é a maior glória da tradição intelectual dos Estados Unidos (R. Rorty) 1. As origens Entre final de 1871 e início de 1872, um grupo de intelectuais reúne-se periódica e informalmente em Cambridge, Massachusetts (Estados Unidos), para conversar sobre filosofia, psicologia, ciência, cultura, política, dando origem ao que passam a chamar de Metaphysical Club. Na realidade, uma denominação irônica para um círculo de estudiosos determinados a minar radicalmente a metafísica. Convergem sobre diversas questões, mas logo emerge uma convicção comum: Mostravam-se convencidos de que as ideias não estavam ‘lá fora’ esperando para serem descobertas, mas eram instrumentos inventados para enfrentar o mundo [...] Acreditavam que, por serem reações provisórias a circunstâncias particulares e únicas, as ideias não estavam vinculadas à imutabilidade, mas à adaptabilidade2. Seus debates, no entanto, não visam apenas romper com a tradição filosófica que havia definido por milênios o pensamento da Europa. Avaliam as repercussões das novas descobertas científicas e desenham horizontes em consonância com a cultura que está plasmando a identidade dos Estados Unidos da América. Entre as teorias e os diversos autores examinados no Club, ocupam lugar de destaque os escritos de Darwin, publicados naqueles anos: A origem das espécies (1859) e A descendência do homem (1871). A ideia de evolução aqui defendida não era apenas um golpe desferido contra a 1 Doutor em Filosofia da Educação pela UFRJ. Professor da Graduação e da Pós-Graduação na Faculdade de Educação da UFF. 2 Cf. Menand, L. The Metaphysical Club: A story of ideas in America, p. 12. superioridade da raça humana e a hierarquia das espécies. Juntamente com dogmas consagrados pela religião e o senso comum, a biologia darwiniana oferecia elementos para destituir do seu trono as substâncias fixas e transcendentes, as filosofias que desqualificavam o movimento e as teorias que reduziam a experiência sensível à condição de conhecimento inferior e imperfeito diante da especulação racional e dos domínios sobrenaturais. Ao apresentar uma visão unitária da natureza, da qual o ser humano é apenas parte, Darwin superava toda forma de dualismos e mostrava que o conhecimento é um elemento da interação entre organismo e ambiente, um instrumento que surge e se modifica constantemente na luta pela sobrevivência. Darwin indicava na linguagem o lugar mais apropriado para o surgimento da consciência. Apontava, também, que o cérebro se desenvolve ao longo do processo evolutivo para solucionar problemas. A mente, portanto, não podia ser mais entendida como uma faculdade autônoma e espiritual superior, mas como uma função natural, como um órgão especializado do corpo para analisar o ambiente, para adaptar-se, para construir instrumentos úteis ao prolongamento da espécie. A biologia evolucionista oferecia, portanto, munição para a lógica genética e para as análises dos mecanismos do conhecimento, entendido como uma operação estimulada pelos interesses e os impulsos vitais. Embora de caráter pouco expansivo, Charles Sanders Peirce (1839-1914) é o pensador mais perspicaz e produtivo do Metaphysical Club. As primeiras formulações do que vai ser chamado de pragmatismo podem ser observadas nos ensaios que ele escreve na década de 1870. Em The fixation of belief (A fixação da crença), de 1877, Peirce mostrava que precisava sair das “crenças” fundadas sobre bases inconsistentes como a obstinação, a autoridade e as ideias a priori. Para “fixar crenças” que acalmem as dúvidas é necessário, ao contrário, verificá-las continuamente, o que só se torna possível recorrendo ao método científico. Este, de fato, consiste em formular hipóteses, experimentá-las com provas e julgá-las pelas suas consequências. Convencido de que as crenças são sempre falíveis e mutáveis, considera necessário “inquirir” com espírito científico a realidade para superar verdades estabelecidas, formas preconcebidas de pensar, lugares comuns instituídos pela tradição e pelas autoridades. No ano seguinte, no ensaio How to make our ideas clear (Como tornar nossas ideias claras), aprofunda suas análises sobre a conduta aplicando-as à lógica. Também nesse caso, Peirce sustenta que o significado de uma palavra ou de um conceito depende de seu reflexo na prática: “O significado racional de uma palavra ou de outra expressão consiste exclusivamente no seu alcance concebível sobre a conduta de vida” 3. Ou seja, o valor de uma ideia está relacionado a seus efeitos, à ação que produz e à crença que se fixa em nós. Assim, devemos considerar verdadeiras as ideias cujos efeitos são verificados e comprovados na prática e que nos levam a agir e organizar o futuro. Não tendo autonomia e substância próprias, as ideias não são compêndios de verdade, mas são princípios operativos; estão sempre vinculadas aos “efeitos sensíveis das coisas”. Concentrando suas pesquisas sobre a lógica e a semiótica, Peirce elabora um método de esclarecimento de conceitos e de determinação de significados pelas consequências práticas. Desenvolve, desse modo, uma teoria dos sinais. Ao afirmar que “todo pensamento é sinal e participa essencialmente da natureza da linguagem”, Peirce cria quadros semióticos a partir de três termos: o sinal, o objeto e o intérprete4. Estava convencido de que a nossa compreensão não acontece abstratamente no cérebro, mas no sentir, na expressão de fatos, no valor prático que podemos obter pelo uso de sinais que construímos. Se a função do pensamento é elaborar instrumentos, criar hábitos de ação para produzir resultados, para enfrentar e resolver os problemas, Peirce alertava para não transformar palavras em essências e representações vazias. Com isso, a tradição filosófica voltada para a busca da verdade e de essências sobrenaturais, perdia seu status superior e tornava-se apenas uma atividade contingente para verificar as operações práticas da mente. Outro componente do Metaphysical Club, que se destaca naqueles anos, é William James (1842-1910). Centrado particularmente na psicologia, cria em Harvard o primeiro laboratório de psicologia experimental. Suas pesquisas criticam e desmentem a psicologia substancialista tradicional que separava a alma do corpo, estruturas centrais e periféricas, estímulos e respostas. Ao contrário, para James, a psique humana constitui um circuito senso-motório. É uma atividade integrada e coordenada de estímulo- movimento-sensação-unidade. No seu livro mais importante, Princípios de psicologia (1890), James mostra que as emoções têm base na experiência fisiológica e que a consciência é um instrumento funcional para adaptação ao ambiente. Qualquer conexão que acontece na psique não é uma relação colocada pela mente sobre os átomos dispersos da experiência, como ocorria com a “forma transcendental” de I. Kant. Para James as relações são experimentáveis e materializáveis e acontecem na própria 3 Cf. Peirce, C. S. How to make our ideas clear, in: Hartshorne C.-Weiss (orgs), Collected Papers, Cambridge (Mass.), 1931-35, p. 5.250. 4 Cf. Peirce, C. S. Semiótica, p. 83ss. experiência. Os processos da vida mental não diferem dos processos da vida corporal: os dois são instrumentos integrados de adaptação e de reação ao ambiente. De modo que a mente sente a influência do ambiente e ao mesmo tempo reage sobre ele. Desta forma, “as teorias se tornam instrumentos e não respostas para solucionar enigmas”5. Portanto, mais do que pelo seu conhecimento abstrato, o valor da psicologia mede-se por seus efeitos, por sua eficácia, por sua engenharia de adaptação e melhoria da vida. Compreende-se, então, por que, ao escrever Existe a consciência? (1904), James apresente-a como uma corrente de pensamento (stream of thought) que flui, muda a cada momento. Sem dogmatismos nem doutrinas metafísicas, retrata a consciência que nós temos como um fluxo sempre em movimento, que evolui com a fluidez do indivíduo, difícil de aprisionar no conceito. A nossa consciência forma–se na experiência que, de um lado, é individual, privada, transeunte (‘percepto’, percebido), e de outro é intersubjetiva e compartilhada, de modo a formar ‘conceitos’ comuns. Assim, o nosso conhecimento (e o que se chama de “verdade”), também para James, é a capacidade de operar, uma relação satisfatória (satisfactoriness) com outras partes da nossa experiência, mensurada por sua adequação e utilidade. Quer dizer, uma ideia é tornada verdadeira pelos fatos que podemos verificar e confirmar: “É verdadeira na medida em que acreditar nela pode ser útil para nossas vidas”6. O pragmatismo, seja de Peirce como de James, distancia-se da concepção metafísica de filosofia e das teorias clássicas de epistemologia. Apresenta-se, acima de tudo, como “um método, e em segundo lugar, uma teoria genética do que se entende por verdade”7. Seu objetivo não visa descobrir “os princípios”, as primeiras coisas, como na filosofia tradicional, mas ocupa-se dos “frutos, das consequências, dos fatos”. As ideias devem ser ancoradas e verificadas na prática, vinculadas a efeitos, não a verdades prévias. A verdade, não depende da adequação a princípios estabelecidos nem de teorias representacionais, mas da verificação: “Verdadeiro é um nome para qualquer ideia que inicie o processo de verificação, útil é o nome para a sua função completada na experiência”8. Nas obras de Peirce e James, o pragmatismo está já delineado e apresenta-se com características que podemos resumir nos seguintes pontos: 5 Cf. James, W. Princípios de psicologia, in: “Os Pensadores”, p. 20. 6 Cf. James, W. O significado da verdade, in: “Os Pensadores”, p. 67. 7 Cf. James, W. Pragmatismo, in: “Os Pensadores”, p. 25. 8 Cf. Idem., p. 73. 1. combater as ideias a priori, os fundamentos preestabelecidos, as verdades fixas e imutáveis; 2. não buscar as “primeiras coisas” (as essências), mas as “últimas”, ou seja, os resultados práticos; 3. não criar qualquer teoria global nem impor princípios: o conhecimento e a verdade fazem-se na pesquisa, na experiência, no ato de cognição, em operações que se podem justificar e convalidar. Neste sentido, o pragmatismo libera da neurose da “certeza”, dos projetos e dos fins; 4. ao repelir as abstrações, o dualismo, o formalismo e as questões inúteis, indicar como caminho o método de pesquisa que pode ser verificado continuamente e que objetiva a prática, a utilidade, a ação; 5. orientar o conhecimento para resolver problemas, buscar melhorias para a vida humana, procurar pragmaticamente o equilíbrio e o consenso entre as partes sem recorrer a teorias especulativas, doutrinas e ideologias. Podemos ouvir, então, das próprias palavras de James a descrição dessa nova concepção de mundo: O pragmatismo volta as costas de uma vez por todas a uma série de hábitos inveterados, caros aos filósofos profissionais. Afasta-se da abstração e da insuficiência, das soluções verbais, das más razões a priori, dos princípios fixos, dos sistemas fechados, com pretensão ao absoluto. Volta-se para o concreto e o adequado, para os fatos, a ação e a força, o que significa fazer prevalecer a atitude empirista sobre a racionalista, a liberdade e a possibilidade sobre o dogma, sobre o artifício e a pretensão da verdade definitiva9. Nas páginas que continuam essa citação, James apresenta o pragmatismo não como um sistema filosófico ou uma doutrina, mas como um método de pesquisa, caracterizado pela orientação prática e ativa do conhecimento, pelo experimentalismo, pela adaptação, a flexibilidade e a mudança, voltado ao bom funcionamento de um ambiente a ser controlado e melhorado. A partir desse retrato, percebe-se que o pragmatismo se afirma de um lado contra a metafísica, a filosofia fundada sobre as substâncias. Por outro lado, em continuidade com o empirismo inglês, contrapõe-se à filosofia idealista continental, particularmente de Descartes, Spinoza, Kant, Hegel, e diferencia-se também do 9 Cf. Idem., p. 80. materialismo. Desta forma, os pioneiros tentam estabelecer uma contraposição entre a Europa especulativa, tradicional, retórica, ideológica e autoritária, e o espírito americano prático, dotado de inovação, de liberdade, de dinâmica cientifica e de propulsão para o futuro. Contra o mundo fechado da necessidade e do universalismo, os pragmatistas apontavam para uma sociedade aberta às criações, à experiência científica, marcada pela contingência da inteligência experimental. 2. O contexto Ora, quando se estuda filosofia, não se deve perder de vista que as ideias e as teorias – de acordo com as posições que o próprio pragmatismo sustenta – estão estritamente relacionadas com a realidade concreta, com o contexto histórico-político- econômico-cultural. Portanto, para além da autoapresentação dos autores, é necessário descobrir objetivos nem sempre imediatamente explicitados em suas teorias. Contrariamente às afirmações de Peirce e James, de fato sabemos que antes do surgimento do pragmatismo americano, na própria Europa, autores como Hume, Kant, Marx, Nietzsche e Freud, por exemplo, haviam praticamente enterrado a metafísica e a velha ordem, aprofundando um processo desencadeado desde o início da modernidade, aproximando a filosofia da ciência e abrindo novos horizontes para a pesquisa. A este movimento de pensamento, acrescente-se o fato de que, juntamente com seus aspectos decadentes, na velha Europa, vinham ocorrendo convulsões sociais e políticas que pressionavam para levar adiante as propostas lançadas pela Revolução francesa, um evento mais profundo que a Revolução americana. Os movimentos insurrecionais de 1830, 1848, 1870, embora reprimidos, haviam preparado o terreno não apenas para a 1ª Guerra Mundial, mas principalmente para a eclosão da Revolução de Outubro de 1917. A novidade maior do pragmatismo, portanto, não consiste tanto no combate à metafísica e na contraposição à Europa “atrasada e burocrática”, como se costuma dizer. Suas contribuições e propostas sintonizam-se, isto sim, com o espírito de iniciativa e os empreendimentos de uma sociedade eficiente e produtiva, projetada por avanços científico-tecnológicos que a levam a não se importar com o passado nem a deter-se em questões abstratas e teorias especulativas. Para compreender melhor o pragmatismo, portanto, deve-se considerar que, entre o final do século XIX e o início de XX, os Estados Unidos despontam como um mundo promissor diante da Europa convulsionada por grandes conflitos. A expansão da indústria, da pesquisa de ponta, o ritmo vertiginoso das atividades econômicas e dos investimentos, a organização social, a difusão da democracia e de uma nova cultura exigem um pensamento ágil, experimental, prático, capaz de promover as liberdades e os interesses do individuo, de atender às mudanças, de prever resultados e consequências. Em contraposição a uma filosofia considerada abstrata, complicada e acadêmica, os Estados Unidos buscam uma filosofia aberta, concreta, formada na experimentação, orientada para o uso e controle dos eventos naturais e sociais. Contra as formas de autoritarismo religioso e ideológico, os pragmatistas consideravam a ciência e as novas descobertas o caminho a ser percorrido para a constituição de uma sociedade livre, organizada por um liberalismo renovado, capaz de neutralizar as lutas de classes e deter o avanço do comunismo, tidos como elementos desagregadores. Embora proclamassem isenção e neutralidade, a ideologia “natural” do liberalismo operava de forma subjacente à construção da ciência e à formulação das suas teorias. Na verdade, são as novas formas de produção capitalista e a consciência de estar assumindo a hegemonia mundial que levam a sociedade americana a contrapor-se à Europa e a lançar-se na busca de ideias e teorias que possam configurar uma identidade própria e uma “nova civilização”. Neste clima, portanto, sentia-se a necessidade de desenvolver “uma adequada filosofia americana”, em sintonia com o “modelo democrático de vida” capaz de realizar “o ideal de unidade social”10. Assim expressa-se John Dewey (1859-1952), o terceiro pioneiro do pragmatismo, “o melhor dos americanos”, como irá defini-lo R. Rorty. Aluno de Peirce, na universidade J. Hopkins, acaba fascinado pelos escritos de James, que o afastam de Kant e de Hegel e o despertam para a nova filosofia que está se desenhando nos Estados Unidos. Uma corrente de pensamento que, em suas distinções, James chama de “pragmatismo”, Peirce de “pragamticismo” e Dewey de “instrumentalismo”. A esta linha de pensamento Dewey vai dedicar a sua vida longeva e a sua extensa e variada obra. Seus escritos podem ser agrupados, mas não estudados isoladamente, em assuntos que tratam de psicologia, de educação, de filosofia, de política e de arte. Embora não sendo efetivamente o pioneiro, Dewey foi quem mais afirmou, ampliou e divulgou o pragmatismo no mundo. Sendo o autor norte-americano mais conhecido e pela influência marcante também no Brasil, por questões de espaço, aqui vamos tratar de algumas de suas ideias de filosofia e de política e concluir essa 10 Cf. Dewey, J. in: Hickman L.A. (org), The collected works of J. Dewey, 1882-1953, 31 vols, Southern Illinois Unversity Press, Carbondale, 1967-1991, LW, vol 3, p. 144; vol. 8, pp. 22-23. apresentação com uma avaliação crítica sobre o pragmatismo, de modo a provocar o debate necessário para o aprofundamento dos nossos estudos. 3. A filosofia de Dewey 3.1. O instrumentalismo No livro Reconstrução filosófica, Dewey se apresenta para levar adiante o projeto moderno e iluminista de filosofia. Seus interesses não estão voltados para a busca das essências, mas para o universo dos fenômenos, para “o que acontece” e “em vista do que”. A ciência experimental, para Dewey, deve substituir a “passividade” com o “espírito de iniciativa”, o “método da aceitação” com o “método de controle” e de verificação11. A sua proposta é criar uma nova civilização para transformar o “industrialismo” em uma nova cultura capaz de produzir uma sociedade livre, em condição de autorregular-se e de controlar com a inteligência experimental as consequências de suas ações: “Nós precisamos lutar com o industrialismo para arrancar- lhe uma nossa civilização, uma cultura para todos; e este fato significa que a indústria deve tornar-se uma força educativa e cultural de primeira ordem para aqueles compromissados com ela”12. Atrasada em relação à ciência, a filosofia deve passar por um saneamento frente ao pensamento tradicional: “deve assumir as mesmas normas procedimentais da investigação cientifica”, deve tornar-se operativa e experimental para resolver os problemas sociais e políticos13. Como a ciência moderna, a nova filosofia não vai buscar a substância imutável dos objetos, mas as relações, o movimento e os resultados obtidos pela experimentação. Deve superar, portanto, o dualismo tradicional e saber compor observação empírica e pensamento racional para tornar-se uma atividade capaz de “explorar racionalmente as possibilidades da experiência”. Deixando de ser especulativa e transcendental, a função da filosofia é auxiliar o método experimental e acompanhar as transformações científicas. Não tendo uma finalidade própria, deve ser pensada em vista da educação: “Se a educação é processo pelo qual se formam certas disposições essenciais, intelectuais e emotivas, do homem para com a natureza e com os outros homens, a filosofia pode ser definida como a teoria geral da educação”14. Uma teoria, no entanto, que está profundamente conectada ao que Dewey entende por natureza 11 Cf. Dewey, J. Rifare la filosofia, pp. 56-77. 12 Cf. Dewey, J. Individualismo vecchio e nuovo, p. 109. 13 Cf. Dewey, J. Rifare la filosofia, p. 113. 14 Cf. Dewey, J. Democrazia e educazione, p. 421. humana: um conjunto de impulsos entrelaçados a uma atividade mental, cuja combinação forma hábitos especializados para adaptar-se ao ambiente, ordenar as coisas e estabelecer relações sociais. A partir dessas premissas, Dewey elabora a lógica e a concepção de conhecimento. Veja-se, por exemplo, Lógica, teoria da investigação (1938), um dos seus livros mais importantes (considerado o “coração” do seu sistema filosófico), onde são analisadas as diferentes lógicas (formal, dedutiva, indutiva, transcendental, dialética). Neste livro, adota abertamente a base epistemológica e filosófica da ciência, sua estruturação experimental (observação, hipótese, convalidação, leis, teoria). Dewey mostra que não pode haver separação entre os fatos de observação e os conceitos que se formam na mente, entre teoria e prática, assim como entre matéria e espírito, sujeito e objeto, natureza e cultura. Critica a lógica formal e dedutiva que separa os fatos das formas rígidas da mente, mas também a lógica indutiva e meramente empiricista. Embora idealista, afirma que a lógica hegeliana é a mais próxima do método de investigação cientifica. Hegel, de fato, inaugura o método da “inferência” (investigação/descoberta/busca) da ciência moderna. No entanto, uma vez que a concepção idealista de Hegel exclui o processo de verificação, Dewey substitui-a pela concepção experimental. Contrapõe o método da pesquisa cientifica ao método da “prova” racional/lógica, fundada na demonstração pelo raciocínio para chegar à aceitação (ou recusa) de uma proposição conforme seja conectada ou não com uma verdade estabelecida. O objetivo do conhecimento, para Dewey, não é mais “julgar” mas “inventar”. Ao torna-se indagação e pesquisa, o pensamento deixa de ser faculdade ou racionalidade ontológica e passa a ser um instrumento, um processo experimental conduzido pela dúvida-busca-solução. Juntamente com Lógica, teoria da investigação, deveriam ser analisados outros escritos que lhe estão conectados: Estudos de teoria lógica (de 1903, em que aparece a ruptura de Dewey com Hegel), Como nós pensamos (de 1910, reformulado em 1933, no qual trata de questões relativas ao surgimento e à educação do pensamento) e Ensaios de lógica experimental (de 1916, uma crítica do empirismo, do racionalismo, do idealismo e do materialismo). Da análise desses escritos é possível ver como a lógica em Dewey tem uma interpretação autenticamente evolucionista e darwiniana: é resultado de processos bio-psicológicos, é a resposta ativa dos homens às condições ambientais e um instrumento para melhor adaptação. Depois de Darwin, para Dewey, “a ciência natural é obrigada a abandonar o pressuposto da imutabilidade e a reconhecer como são realmente importantes o ‘processo’ e a evolução”15. Seguindo tais indicações, alguns estudiosos chegam a traçar dessa forma o itinerário intelectual de Dewey: “A ideia originária da continuidade orgânica ‘mecanicista’ que Dewey deriva da leitura dos textos de Huxley e de Spencer se transforma na ideia de continuidade orgânica e dialética de Hegel, para enfim tornar-se a ideia da continuidade biológica e evolucionista de Darwin”16. Dewey considera a biologia evolucionista como a realização das conquistas metodológicas da moderna ciência experimental e a aplicação do novo modo de pensar aos problemas da vida humana. Deriva disso a lógica genética e funcional da formação dos conceitos que mostra como a ‘consciência’ é produto não fonte do conhecimento e que o pensamento não descobre leis, mas origina-as na experiência. Como em Peirce e James, para Dewey, o valor de uma ideia não deriva do seu uso, da sua capacidade de ação e dos resultados obtidos. A mente, assim, não visa criar uma ontologia, mas é uma técnica de pesquisa. Expressa o caráter operativo de todos os procedimentos do conhecer considerados como meios para passar de uma situação indeterminada a uma determinada. Tem bons motivos, portanto, Dewey ao denominar a sua filosofia de “instrumentalismo”, enquanto atividade da inteligência humana que tem valor operativo na resolução dos problemas práticos “à medida que eles surgem”, sem ter uma pretensão sobrenatural ou transcendental: A missão primordial da filosofia, seus problemas e campo de estudo, brotam das pressões e solicitações que se manifestam na vida de comunidade, em cujo seio surge determinada forma de filosofia e, consequentemente, seus problemas específicos variam com as transformações que a vida humana constantemente atravessa, e que por vezes constituem uma crise e uma mudança na história da humanidade17. Diversamente da concepção que acreditava na capacidade autônoma de produzir ideias ou do ato de fotografar os objetos, a função do intelecto com sua indagação é reagir, estabelecer relações com o ambiente para melhor adaptar-se e controlar as consequências. A filosofia em Dewey, portanto, não revela uma estrutura racional do mundo nem uma ordem lógica que reproduz os objetos da realidade, mas serve para a 15 Cf. Dewey, J. The influence of Darwin on philosophy and other essays in contemporary thought, p. 28. 16 Cf. Alcaro, M., John Dewey. Scienza prassi democrazia, p. 17. 17 Cf. Dewey, J. Rifare la filosofia, p. 17.

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