O PIRATA E O CAPITÃO PAULO GEORGE SAND E ALEXANDRE DUMAS MEMÓRIA E EDIÇÃO NO BRASIL Conceição Cabrini (PUC-SP – CEO) Magali Oliveira Fernandes (PUC-SP – COS) Rosângela Guimarães (PUC-SP– COS/FAPESP) Resumo Neste artigo trabalhamos dois romances franceses: um denominado O Pirata (de George Sand) e, outro, O Capitão Paulo (de Alexandre Dumas). Ambos foram publicados no Brasil em português já nos anos 40 do século XIX. Do primeiro, conseguimos recuperar a edição original datada de 1841; do segundo, uma interessante versão de 1936. Com isso, nossas observações se concentraram num modo curioso de leitura, a qual pudesse apreender não apenas o texto em si desses autores, mas também o "texto" de seus editores no País, nas suas "traduções editoriais", pensando cultura e memória. Palavras-chave: edição; memória; George Sand; Alexandre Dumas; tradução editorial; leitura. The Pirate and Captain Paulo. By George Sand and Alexandre Dumas – Memory and Edition in Brazil Abstract In this article, we worked on two French novels: one entitled O Pirata [The Pirate] (by George Sand) and, the other, O Capitão Paulo [Captain Paulo] (by Alexandre Dumas). Both of them were published in Brazil, in Portuguese, during the 1840s. For the first once, we managed to get the first original edition dated from 1841; of the other one, we obtained an interesting edition of 1936. Therefore, our approach focuses on an interesting mode of reading, through which we could comprehend not only the text of these authors in itself, but also the “text” of their Brazilian publishers, in their “editorial translations”, in terms of culture and memory. Key-words: edition; memory; George Sand; Alexandre Dumas; editorial translation; reading. Bordas. Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n.1, p. 30-54, 2014. 31 Ao saber da edição de O Pirata, de George Sand, no Brasil, com data de 1841, pela Typographia Imperial e Constitucional de J. Villeneuve e Comp., casa publicadora do Rio de Janeiro, surpreendeu-nos constatar não apenas a novidade de um título dessa escritora francesa ser comercializado no país, desde o século XIX, em idioma português, como também o fato de no índice do próprio livro haver muitas outras novelas lançadas pelo mesmo editor, entre elas: O Capitão Paulo, de Alexandre Dumas, obra de folhetim inaugural desse escritor francês1. Foi a partir desse momento que resolvemos tratar, no âmbito das edições, o que havia de semelhante e de diferente nesses dois textos, assim como quais eram as rupturas e permanências aí contidas, tomando como base a disposição do material publicado. Certamente, esses dois escritores são considerados figuras importantes na história da literatura francesa traduzida aos leitores brasileiros. Escritores estes vistos pela crítica literária de um modo geral, até há pouco tempo, como menores, no sentido de atenderem a demandas populares com produção em grande quantidade, mas que estão sendo redescobertos cada vez mais na sua rica contribuição não apenas entre os franceses como em diversos outros países. No Brasil, pode-se afirmar que George Sand obteve grande êxito editorial em determinados períodos2, depois foi praticamente esquecida pelo público. No referente a Alexandre Dumas, é comprovado que ainda nos dias atuais ele compõe as listas dos livros mais vendidos no país3. Alexandre Dumas não foi um autor que ficou restrito ao momento de explosão do gênero romance-folhetim na França e em sua repercussão em outros países; sua obra se mantém publicada, rompendo fronteiras de espaço/tempo (França e Brasil / do século XIX até nossos dias), e continua sendo editada e lida aqui como em terras francesas. Nesse sentido, a produção do autor não sucumbiu com a decadência do gênero que ajudou a 1 O Capitão Paulo não foi sua primeira experiência como escritor. Naquele período Dumas já era conhecido como dramaturgo com algumas peças já escritas e encenadas na França. 2 Ver FERNANDES, Magali Oliveira (2012). O processo criativo no universo da edição – George Sand no Brasil. Tessituras & Criação, n. 3, PUC-SP. Também, ver FERNANDES, Magali Oliveira (2012) Editions de George Sand au Brésil. Trad. Eric R. R. Heneault. L’Ull Critique, Universitat de Lleida. Catalunya. Em ambos os artigos a autora procura apresentar como ocorreu a inserção de livros de George Sand no país e a demanda de público em diferentes ocasiões. No primeiro texto, o estudo é mostrado com maior detalhamento em relação à história do livro no Brasil, desde o Período Colonial. No segundo texto, o enfoque maior é dado às produções editoriais, a partir de alguns exemplos de coleções populares. 3 É interessante mencionar os dois últimos anos (2010 e 2011) do Prêmio Jabuti, quando duas produções editoriais de requinte pela Editora Zahar foram premiadas na categoria “melhor tradução”. Investimento que não estaria desvinculado de um interesse de comercialização com sucesso de público. Os títulos foram: Os três mosqueteiros e O Conde de Monte Cristo. Deve-se levar em consideração, no sentido de seu sucesso atual, a adoção de alguns dos títulos de Dumas nas escolas de primeiro e segundo graus, categoria de paradidáticos. Sem contar ainda as versões cinematográficas sobre obras desse mesmo autor que se atualizam às novas gerações. Bordas. Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n.1, p. 30-54, 2014. 32 inventar. Utilizando-se de recursos da oralidade, é como se ele estivesse contando ainda uma história para alguém, transcendendo a marcação do período em que escreveu. Numa pequena busca feita na Biblioteca Mario de Andrade, na cidade de São Paulo, certificamo-nos do número de consultas de alguns livros tanto da escritora quanto do escritor nos últimos anos, conferindo que Dumas manteve-se em primeiro lugar a todo instante com uma larga diferença4 de Sand. Para este artigo, contamos com as seguintes versões: de um lado, o romance-novela O Capitão Paulo, de Alexandre Dumas, numa edição datada de 1936, apesar de esta já ter sido anunciada como lançamento também da Villeneuve em 1841; de outro lado, o romance- novela intitulado O Pirata, de George Sand, numa reprodução rara citada acima, pela publicadora J. Villeneuve. Ambos os documentos podem nos proporcionar outra experiência de leitura, acoplando o enredo e a materialidade editorial da publicação. Um modo de ver e perceber o livro (os livros), desde o registro no papel até os períodos em que foi lançado ao público no país. O frontispício de O Capitão Paulo de Alexandre Dumas De O Capitão Paulo, na edição relançada em 1936, pela Sociedade Imprensa Paulista, nos deparamos, muito provavelmente, com um texto compilado após publicação em jornal 4 Em 2011 conseguimos obter, pelo pessoal técnico da biblioteca Mario de Andrade, dados referentes à quantidade de consultas feitas desde 2008 a livros de ambos os escritores franceses, valendo mencionar que tal resultado não se limitava apenas ao espaço Mario de Andrade, mas a várias outras bibliotecas vinculadas a ela. Bordas. Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n.1, p. 30-54, 2014. 33 paulistano, cumprindo o percurso natural de passagem de folhetim a livro. Uma edição singela, encadernada em capa dura, em formato de bolso, com sinais de restauro, não constando nenhuma propaganda de outros romances de Dumas, mas sim uma pequena propaganda de Noventa e três, de Victor Hugo, pela mesma editora. Essa publicação de Alexandre Dumas consagra o gênero romance-folhetim na França, em 1838, no jornal Le Siècle. No mesmo ano o romance foi divulgado, no Brasil, no Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro. Segundo Marlyse Meyer, “nasce assim o folhetim, e o resultado concreto foi, para o jornal, um aumento de 5 mil assinaturas suplementares em três meses. Data daí o império do folhetim. A partir de então, não se trata mais, para o romance-folhetim, de trazer ao jornal o prestígio da ficção em troca da força de penetração deste, mas, pelo contrário, é o romance que vai devorar seu veículo. Este passa a viver em função do romance” (Folhetim, p. 61). Reprodução do epílogo de O Capitão Paulo, de Dumas Alexandre Dumas – o cenário marítimo e suas descrições No porto da Bretanha, na França, O Capitão Paulo inicia com a descrição de uma fragata que aportara ali durante a noite, sem que ninguém soubesse sua nacionalidade, bem como o nome do condutor. Dois jovens, desempenhando ofícios distintos na ocasião, conversam sobre tal mistério e a respeito da beleza da embarcação, a ponto de deixar o leitor atento a todos os detalhes. Bordas. Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n.1, p. 30-54, 2014. 34 O tempo inicial da ação narrativa é bem sugestivo: outubro de 1779, ou seja, no contexto histórico de uma França pré-revolucionária. Em certo ponto do enredo, o narrador alude ao período, quando se refere ao caráter destemido do herói: “Paulo chegou a Paris no meio de nossas guerras europeas, e de nossas luctas civis, emquanto suffocavamos com uma das mãos o extrangeiro, e com a outra rasgávamos as nossas próprias entranhas” (p. 297). Mas a trama não se fixa na explanação de nuances mais detalhadas desse momento histórico. Em alguns tópicos, o narrador mescla comentários sobre personagens históricas do conturbado período, como Luís XVI e Maria Antonieta. Consta, por exemplo, que o capitão Paulo era uma pessoa íntima do rei, recebendo algumas condecorações e até “favores”, como a conquista do título de “governador da ilha de Guadalupe”. Apenas rápida referência a uma História difusa. Na mesma perspectiva, outra alusão parece dominar o enredo a partir de então, mas perde força após o primeiro capítulo: seria a ênfase dada, em todo o livro, aos feitos do herói e suposta figura histórica Paulo Jones (1747-1792), capitão da marinha americana que teria participado de combates navais contra os ingleses, em favor da independência dos Estados Unidos, no mesmo período, tendo a França como aliada. O narrador/Dumas menciona o personagem, imbuído dessa dupla representação aventureira/heroica: E para o novo aventureiro, em que os nossos leitores reconheceram o famoso Paulo Jones, era isso mais fácil do que para qualquer outro, porque tendo recebido carta de corso das mãos de Luiz XVI, para guerrear os ingleses, tinha de voltar a Versailles a dar conta do seu cruzeiro (p. 112). Digamos que o aspecto histórico comparece no enredo em leves “pinceladas”. Diz o narrador, por exemplo: “A América, pela sua emancipação, preparava a Revolução da França, reis e povos desconfiados uns dos outros, estavam de cada lado em guarda, invocando estes factos, aquelles o direito” (p. 292). Mas o que predomina no romance é a representação microscópica dos dramas de uma família de nobres franceses do século XVIII. É como se houvesse uma deslocação da trama quanto ao seguimento do aspecto histórico – e por sua vez heroico – de alguns personagens envolvidos na narrativa, para um viés privado, em que as lentes da máquina folhetinesca se voltam para o lar, para a família e seus conflitos, ou seja, o que parecia direcionar o enredo para grandes aventuras marinhas – e há descrições nesse sentido – foca nos dramas de uma família de nobres. Bordas. Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n.1, p. 30-54, 2014. 35 Para além da questão do foco narrativo, o que predomina em O Capitão Paulo é a força do texto folhetinesco que impulsiona a história, mantendo o leitor preso ao enredo, digno do sucesso que alcançou enquanto romance de estreia do gênero. Nesse sentido, o tema histórico das possíveis aventuras de um capitão da marinha americana, que combate a favor da independência dos EUA, por exemplo, e as nuances de uma pré-revolução francesa introduzem o primeiro capítulo do romance. E essa “paisagem histórica” de fundo só é evocada no restante do texto quando se faz necessária, para fins de “legitimação” dos fatos. O aspecto histórico, dosado e às vezes esmaecido frente à força do enredo, serve aí como suporte para o florescimento de temas folhetinescos que vão se tornar clássicos, como o mistério sobre a verdadeira identidade do herói, o capitão Paulo; o rapto do recém-nascido – a avó rapta o neto para “preservar” a honra da filha –, além de outros segredos de família; loucura, casamento arranjado; degredo de inocente, por causa de amor proibido, para a América do Sul. Aliás, este continente é sempre um lugar de deportação nos romances de Dumas; adultério, entre outros. Na história, Paulo, imponente capitão de uma luxuosa fragata, tem inesperadamente sua vida remexida pelo avesso no decorrer da narrativa. O leitor vai descobrindo, atônito, que a vida pessoal desse personagem é mais repleta de peripécias do que imagina, a qual está longe da descrição da figura de capitão, esboçada no primeiro capítulo. São aventuras dignas de um folhetim, superando qualquer relato de proeza real que a profissão de marinheiro em si pudesse propiciar a alguém. O enredo se desloca, concentrando-se a partir de então, nos dramas da família D’Auray, no tempo ficcional, nobres franceses da região da Bretanha da época de Luís XVI. Pode-se dizer que a dinâmica de leitura desse romance se apresenta em forma de sugestivos núcleos narrativos, típicos de um folhetim, sempre pretendendo atrair a atenção do leitor através do elemento surpresa, como será visto a seguir. Estes núcleos funcionam aqui quase como um roteiro de leitura. Ambientado nos tumultuados tempos da pré-revolução francesa, e sendo fiel ao gênero a partir do qual foi criado, O Capitão Paulo começa com extensas descrições a respeito da exuberância da fragata que atracara em Port-Louis, na região da Bretanha. Espaços, personagens, objetos, circunstâncias, tudo pode se transformar em matéria narrativa nesse tipo de gênero, num esforço desenfreado do narrador, na sua exposição, de forma didática, de um “retrato” preciso dos fatos. Neste romance, que a princípio parece Bordas. Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n.1, p. 30-54, 2014. 36 enveredar para um tema náutico, o narrador elege, de saída, a descrição de um componente importante desse universo: uma esquadra. E a exalta: “O que effectivamente era uma sculptura não só estranha de forma, mas de execução notabilíssima, e via-se facilmente que fora não um operario vulgar, mas um artista exímio que arrancara do tronco do carvalho onde dormira séculos” (p. 31). O mar aí evocado pode remeter a uma variante do romance popular ao qual o romance-folhetim está vinculado, o “romance marítimo”, que teria sido praticado, desde os anos de 1830, por autores como Sue, Dumas, Gonzalès ou “especialistas” como La Landelle5. Nesse sentido, O Capitão Paulo caberia nesse sub-gênero de classificação, quando o autor elege a temática como motivação para a escritura de seu texto. Mas as considerações a respeito da embarcação e também o suspense em torno do marinheiro a bordo dão lugar à lenta divagação sobre nobre família local: d’Aunay, à qual pertencia o conde Manoel, quem primeiro consegue entrar na fragata para obter informações. Temas da estrutura folhetinesca em Dumas O degredo Manoel estabelece, então, contato com o misterioso capitão Paulo. Sua ida até a embarcação era para tratar da deportação de um prisioneiro para a América do Sul, especificamente “Cayenna”, visto que o navio seguia para aquelas paragens. Após conversa entre ambos, o degredado é aceito a bordo, mas Paulo e Manoel não imaginavam que fossem tão ligados. Mas num texto folhetinesco os destinos das personagens sempre estão unidos por alguma razão! E o fio de um novelo de intrigas começa ainda a ser desenrolado em alto mar, quando num ataque inimigo, de piratas ingleses, o degredado desempenha excelente performance contra o grupo invasor, ajudando o capitão a dominá-lo. Curioso, Paulo quer saber detalhes sobre o rapaz que lhe conta o motivo do degredo. Acusado de “crime de Estado”, com direito à prisão expedida pelo Ministério da Marinha Francesa, havia sido condenado ao exílio. Mas em se tratando de trama folhetinesca, havia 5 Cf. Universo e Imaginários do Romance Popular, de Lyse Dumasy-Queffélec. In: Livro. Revista do NELE (Núcleo de Estudos do Livro e da Edição da ECA/USP), n. 2. Editores: Plínio Martins Filho e Marisa Midori Deaecto. São Paulo: Ateliê Editorial, agosto de 2012, pp. 101-114. Trad. Rosângela Oliveira Guimarães. Bordas. Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n.1, p. 30-54, 2014. 37 algo encoberto. Na verdade, a influente família d’Auray tinha a ver com o fato. O acusado manteve um relacionamento amoroso com a jovem Margarida, contrariando os interesses dos d’Auray, e por isso seu exílio fora tramado, tendo-se aí um quadro de injustiça, que o capitão irá a todo custo reparar com êxito no romance, como num conto de fadas. Os segredos de família Quando se refere aos d’Auray, o narrador logo esclarece a origem nobre: “O conde Manuel d’Auray era de uma das mais tradicionais famílias da Bretanha” (p. 68). Por outro lado, esta família é condenada a se isolar em sua região natal, em virtude da loucura do patriarca, cujo motivo era mantido em segredo absoluto. Pesava também sobre ela a acusação de degredo de um inocente para terras distantes e inóspitas. Na sociedade da época, todos os seus membros mantinham discrição, para não atrair a curiosidade de terceiros. De personalidade ambiciosa, Manuel se preocupava em reaver o prestígio da família. Para isso, pretendia, em comum acordo com a mãe, casar a irmã Margarida com o rico barão Lectoure, após deportarem o grande amor da herdeira, sem levantar suspeita. Em meio aos acertos desse casamento arranjado, tendo o desenrolar dos fatos um movimento de não linearidade, Manoel e Paulo se encontram de novo. Este aparece de surpresa no palácio da família d’Auray e pede-lhe esclarecimentos sobre o degredado que embarcara em seu navio dias antes. E justifica a razão de tê-lo levado: “Obedeci a essa ordem porque ignorava então que esse grande culpado, que degredavam não comettera outro crime senão o de ser amante de sua irmã” (p. 89). Daí em diante a relação entre os dois se inflama. E diante da intransigência de Manuel, insistindo em casar Margarida com D’Auray, Paulo pede-lhe que tenha compaixão dela, não a deixando se casar sem amor. A imagem da jovem indefesa O narrador descreve a beleza e a fragilidade de Margarida: “Era uma dessas bellezas pallidas e frágeis, que têm impresso em tudo o sello aristocrático de seu nascimento” (p. 8). Submissa à mãe e ao irmão, Margarida tinha, acima de tudo, uma relação difícil com a mãe, de personalidade fria e cruel. Nessa mistura de emoção e drama, características típicas do folhetim, cuidadosamente distribuídas no enredo, a crise entre mãe e filha inicia quando a marquesa rapta o neto recém-nascido dos braços da filha, fruto de uma relação amorosa Bordas. Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n.1, p. 30-54, 2014. 38 proibida entre ela e Lusignan. E na defesa de Margarida, o capitão Paulo detalha a Manuel cenas do crime de sequestro: Sua mãe, digo eu, ouviu uma noite gritos mal abafados, entrou no quarto de sua irmã, dirigiu-se, pallida e muda, para o seu leito, arrancou-lhe friamente dos braços uma criança que acabara de nascer, e sahiu com ella sem dirigir uma reprehensão a sua filha, simplismente mais pallida e mais muda ainda do quando entrara. Emquanto a pobre Margarida, essa não deu um grito. Tinha desmaiado, ao ver sua mãe... foi isto assim, senhor conde? Estou bem informado, e esta terrível história é exacta? (p. 93) Em outro momento da trama, Margarida revela a Manuel sua aversão ao noivo que lhe arranjaram. Adverte que se o casamento acontecer será uma mulher desgraçada. Implora que, ao invés disso, a mandem para um convento. Nesse clima de pressão emocional, a jovem encontra em Paulo um aliado e protetor. Inicialmente o considera um amigo, mais tarde descobrirá que são irmãos. Ele tenta livrá-la do casamento arranjado. Paulo leva ao conhecimento de Manuel cartas comprometedoras trocadas entre o casal, e cobra pensão alimentícia para o menor Heitor (filho do casal), exigindo que desista de casar Margarida por interesse, caso contrário tornaria públicos tais impressos e fatos. A verdadeira identidade do herói Para surpresa do leitor, quase na metade do romance sabe-se que o nascimento de Paulo envolvia outro grande segredo a ser revelado quando completasse seus 25 anos. A chave dos mistérios da trama estava na figura do velho Achard, com quem a sisuda marquesa compartilhava segredos de família. Havia outra criança na história cuja identidade lhe fora negada: agora um adulto, o marinheiro Paulo, na verdade, filho da marquesa d’Aunay. Chegava o momento de tudo ser revelado. Nos poucos instantes do enredo em que demonstrou fragilidade, a marquesa confessa a Achard: “Tens o meu segredo nas tuas mãos, velho, bem faze delle o que quizeres. És o senhor e eu sou a sua escrava. Adeus!”(p. 123). Parte interessada na questão, guiado por uma carta que lhe fora entregue, Paulo procura Achard e lhe apresenta o escrito do pai, sendo ali revelado o segredo sobre seu nascimento: “Por que? Porque esta carta me dizia que viesse procurar-te quando completasse vinte e cinco anos, e há bem pouco tempo que os completei... há uma hora!” (p. 128). Observando de forma minuciosa o ambiente e seus detalhes, reconhece e exclama surpreso: Bordas. Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n.1, p. 30-54, 2014. 39 “Nesta choupana! Neste quarto! repetiu ele. E habitei aqui até a idade de cinco anos, não é assim?” (p. 128). As lembranças de infância se apresentam muito vivas. Descobre então que Margarida e Manuel são seus irmãos. Tudo aconteceu quando o conde de Morlaix, certa noite, entra pela casa do velho amigo, com uma mulher envolta num véu, que da à luz uma criança, levando-a de volta, após o parto, no mesmo clima de mistério em que entrara. Achard estava autorizado a entregar o recém-nascido a um portador que o levaria à Escócia. Morlaix recomendou isso um pouco antes de participar de um duelo mortal. Infidelidade conjugal Outro significativo núcleo narrativo da história, e mais um segredo/suspense em pauta no romance, é que o conde de Morlaix (pai de Paulo) é morto em duelo pelo marido da marquesa d’Aunay por ter sido seu amante. Paulo é fruto desse relacionamento proibido. Também só soube do nome da mãe após as revelações de Achard. Mais uma vez surpreso, o leitor constata que o velho marquês enlouqueceu após o duelo travado com Morlaix. Assassinou o rival, mesmo ele pedindo perdão pelos erros cometidos. Dali em diante passou a ser uma vítima nas mãos da marquesa, que o isolou do convívio social, embora soubesse exigir, em momentos oportunos, atitudes de uma pessoa sã. Por exemplo, quando para cumprir protocolos, ordena que ele assine o contrato de casamento da filha com o barão Lectoure. Possessiva e manipuladora, a marquesa trabalhava com várias estratégias ao mesmo tempo, para que seus projetos fossem bem-sucedidos. Desejava manter os filhos longe de seus segredos. Lances dramáticos do casamento O noivo, Lectoure, chega para a cerimônia no castelo da família d’Aunay, ambiente pomposo e de expectativas. Segundo o narrador, a oficialização da união era resultado de um jogo de interesses entre as famílias envolvidas, bastante comum à época. Entra em cena uma carta, elemento usado nesses tipos de escritos sempre para conseguir confissão importante de algum personagem, ou funcionando como matéria de chantagens ou moeda de troca em acordos. Pouco antes da cerimônia, Paulo pressiona, mas Manoel não cede: Cabe-me hoje pois, que tenho a sua honra e a da sua família nas minhas mãos, cabe- me pois salvar a mãe do desespero, como quero salvar o filho da miséria. Estas Bordas. Revista do Centro de Estudos da Oralidade, n.1, p. 30-54, 2014.
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