O oponente escatológico de Daniel e o Anticristo do Apocalipse Siríaco de Daniel Sara Daiane da Silva José Sociedades Precapitalistas, vol. 4, nº 1, diciembre 2014. ISSN 2250-5121 http://sociedadesprecapitalistas.fahce.unlp.edu.ar/ ARTICULOS / ARTICLES O oponente escatológico de Daniel e o Anticristo do Apocalipse Siríaco de Daniel Sara Daiane da Silva José Universidade de Brasília (Brasil) [email protected] Cita sugerida: José, S. D. da Silva (2014). O oponente escatológico de Daniel e o Anticristo do Apocalipse Siríaco de Daniel. Sociedades Precapitalistas, 4(1). Recuperado a partir de http://www.sociedadesprecapitalistas.fahce.unlp.edu.ar/article/view/SPv04n01a02. Resumo O Apocalipse Siríaco de Daniel (Syr Apoc Dan), um apocalipse cristão do séc. VII E.C, é claramente tributário ao livro canônico de Daniel (Dn). Por sua vez, Dn forneceu a figura de um oponente escatológico que foi ressignificada no cristianismo: o Anticristo. As dimensões cósmicas do caráter malévolo do tirano opressor de Dn – a sua arrogância contra os deuses, a abominação da desolação, as conquistas militares e as perseguições aos santos, a mudança da ordem cósmica, o tempo do reinado e a morte do tirano – são consideradas neste trabalho em comparação ao Anticristo do Syr Apoc Dan. Palavras- chave: Anticristo; Apocalipse; Siríaco; Oponente escatológico The eschatological opponent of Daniel and the Antichrist of the Syriac Apocalypse of Daniel Abstract The Syriac Apocalypse of Daniel (Syr Apoc Dan), a Christian apocalypse from the seventh century of Common Era, is clearly tributary to the canonical book of Daniel (Dn). In its turn, Dn provided the figure of an eschatological opponent who was re-signified in Christianity: the Antichrist. The cosmic dimensions of the malevolent character of oppressive tyrant of Dn – his arrogance against the gods, the abomination of desolation, military conquests and persecutions of the saints, the change of the cosmic order, the time of the reign and death of the tyrant – are considered in this work compared with the Antichrist of the Syr Apoc Dan. Keywords: Antichrist, Apocalypse, Syriac, Eschatological Opponent Universidad Nacional de La Plata. Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación. Centro de Estudios de Historia Social Europea Esta obra está bajo licencia Creative Commons Atribución-NoComercial-SinDerivadas 2.5 Argentina Sociedades Precapitalistas, vol. 4, nº 1, julio 2014. ISSN 2250-5121 Introdução A memória sobre os perseguidores e o medo de tiranos contribuiu para a produção dos apocalipses no século III A.E.C. na Palestina. Os apocalipses judaicos influenciaram a base do cristianismo primitivo; o Messias esperado tornou-se o Cristo e o tirano escatológico transformou-se no Anticristo. A análise deste trabalho se baseia na compreensão da grande influência do livro de Daniel1 ao longo do tempo, que forneceu a figura de um oponente escatológico, e na ressignificação desse oponente no cristianismo. Entende-se que o Anticristo surgiu da interação de diversos componentes, dos quais o elemento “tirano opressor” é aqui destacado no Apocalipse Siríaco2 de Daniel na sua relação com Dn.3 O tirano escatológico de Dn é opressivo, ímpio e, sobretudo, um oponente arrogante. As dimensões cósmicas do seu caráter malévolo – a sua arrogância contra os deuses, a abominação da desolação, as conquistas militares e as perseguições aos santos, a mudança da ordem cósmica e o tempo do reinado e a morte do tirano – são consideradas neste trabalho em comparação ao Anticristo. Definindo Apocalíptica A ruptura da velha ordem política e religiosa no período do judaísmo do Segundo Templo fomentou a criação de novas formas de literatura religiosa produzidas por novos tipos de líderes religiosos com outras mensagens sobre Deus, o mundo e a história. Assim, variadas formas de literatura revelatória floresceram no mundo helenístico e entre elas estão os apocalipses produzidos pelos judeus depois de 250 A.E.C. A palavra grega apokálypsis significa, literalmente, descoberta, revelação, divulgação de fontes ocultas. O adjetivo “apocalíptico” foi popularmente associado com expectativas fanáticas milenaristas de alguns grupos que se utilizaram de passagens dos apocalipses canônicos de Dn e Ap. Em parte por isso, preconceitos foram estabelecidos contra a literatura apocalíptica e o seu estudo. No entanto, a maioria dos trabalhos da literatura apocalíptica judaica não foi designada como apocalipse na antiguidade. O uso do termo apokálypsis como uma “etiqueta de gênero” não foi atestado no período anterior ao cristianismo e Dn não foi designado como apocalipse no período helenístico. O primeiro trabalho apresentado como apokálypsis é o Ap do NT, e ainda não está claro se a palavra denotava uma classe especial de literatura ou se foi usada de uma forma mais geral para significar revelação (Collins, 1998: 3). Desde a publicação de Friedrich Lücke, em 1832, foi feita referência a um corpus literário denominado “apocalíptico”. Uma análise sistemática de toda literatura considerada Sociedades Precapitalistas, vol. 4, nº 1, julio 2014. ISSN 2250-5121 “apocalíptica”, seja pelos textos antigos ou pelos estudiosos modernos, foi empreendida pela Society of Biblical Literature Genres Project, tendo resultado em uma publicação nomeada Semeia 144 em 1979. O propósito do Semeia 14 foi dar uma precisão para a tradicional categoria “literatura apocalíptica”, mostrando sua extensão e seus limites, postulando os traços compartilhados e os distintos de outras formas de literatura.5 O projeto Semeia 14 postula que os apocalipses históricos6 são caracterizados pela ausência de viagem ao além e pela inclusão da profecia ex eventu. A mais típica forma de revelação é a visão em sonho. O conteúdo inclui uma predição ex eventu sobre o curso da história, frequentemente dividido em um determinado número de períodos, seguidos por desventuras, desastres e revoltas, os quais são os sinais do fim, do julgamento e da salvação. A escatologia apocalíptica dos apocalipses históricos envolve especificamente a ressurreição dos mortos. Os apocalipses históricos estão usualmente relacionados a uma crise histórica (Collins 1984: 109-110).7 Ademais, os apocalipses históricos foram vistos como literatura de consolação para os crentes perseguidos nos tempos de sujeição ao poder estrangeiro (McGinn, 1994: 15). Cerca de quinze apocalipses judaicos do período de 250 A.E.C. até 150 E.C. são revelações mediadas nas quais a mensagem é comunicada ao humano vidente por uma figura celestial – usualmente um anjo. Os apocalipses judaicos também compartilham outra forma de mediação na qual são todos pseudônimos, isto é, são atribuídos a antigos sábios ou heróis bíblicos como Enoc, Esdras, Abraão e Daniel. Os apocalipses se apropriaram de variadas fontes e tradições, mas o novo produto foi mais do que a soma das partes, a soma das fontes; ou seja, as matrizes (oráculos; profecias pré- exílio; elementos babilônicos, persas e helenísticos) se interpenetraram e em circunstâncias específicas os apocalipses foram produzidos. A matriz histórica e social dos oráculos tem afinidades significativas com alguns dos apocalipses tardios. O senso de alienação da ordem do presente nos oráculos é fundamental especialmente para os apocalipses históricos. Entre a tradição profética e os apocalipses também houve uma continuidade significativa, especialmente no uso do imaginário mitológico – que tem amplos antecedentes na Bíblia – uma vez que a profecia pós-exílio inegavelmente supriu-os com alguns códigos e matérias-primas (Collins, 1998: 24-25). A questão ainda a ser respondida é se os primeiros apocalipses foram escritos na diáspora oriental, uma vez que essa possibilidade não pode ser verificada nem descartada de forma Sociedades Precapitalistas, vol. 4, nº 1, julio 2014. ISSN 2250-5121 definitiva no presente. A “matéria-prima” babilônica, não proveu a matriz completa ou suficiente para o gênero apocalíptico, mas deve ser vista como um fator de contribuição significativo, especialmente na medida em que a revelação apocalíptica se assemelha à adivinhação na decodificação de sinais misteriosos (Collins, 1998: 26-28). A importância da influência persa sobre os apocalipses foi largamente discutida em grande parte do século XX, entretanto os estudiosos se tornaram reticentes sobre o grau dessa influência pela dificuldade notória de datar a “matéria-prima” persa.8 O Bahman Yasht, por exemplo, contém todas as características de um apocalipse histórico, pois ele combina a forma apocalíptica de revelação com a periodização elaborada da história e com a escatologia. Logo, não há dúvida de que a periodização e a sucessão dos milênios, subordinada a um determinismo, é uma característica da teologia persa. O Bundahisn,9 por sua vez, contém uma narrativa de ressurreição e purificação do mundo por meio do fogo. Entretanto, mesmo se os textos persas pudessem ser seguramente datados como pertencentes ao período helenístico, o gênero apocalíptico judaico não pode ser considerado uma simples cópia, uma vez que há uma adaptação importante: o monoteísmo (Collins, 1998: 29-33). O período helenístico trouxe fatores muito importantes. A conquista de Alexandre transformou o Oriente Próximo e o entrelaçamento das cidades helenísticas facilitou a difusão dessas ideias. Assim, muitas das mais proeminentes características dos apocalipses (pseudepigrafia, periodização da história, profecia ex eventu, viagens ao além, julgamento dos mortos etc.) envolvem a transformação da tradição bíblica no contato com novas cosmovisões. Portanto, o gênero literário do apocalipse não é uma entidade autossuficiente e isolada. A estrutura conceitual indicada pelo gênero, que enfatiza o mundo sobrenatural e o juízo final, também pode ser encontrada em narrativas não revelatórias10 e que, portanto, não são tecnicamente apocalipses. Embora muitos estudiosos tenham trabalhado intensivamente sobre quase todos os aspectos da origem do gênero apocalíptico, muitas disputas ainda permanecem. As considerações aqui expostas trazem apenas um recorte sobre a apocalíptica para uma melhor compreensão do tema do Anticristo. O Apocalipse Canônico de Daniel Os caps. 1-6 de Dn não são um apocalipse, eles são historietas de corte:11 Daniel e seus três amigos a serviço de Nabucodonosor, o sonho de Nabucodonosor, a estátua composta de elementos diversos, a adoração da estátua de ouro e os três amigos de Daniel na Sociedades Precapitalistas, vol. 4, nº 1, julio 2014. ISSN 2250-5121 fornalha, a loucura de Nabucodonosor, o festim de Baltazar e Daniel na cova dos leões. Os caps. 7-14 contêm as visões reveladas a Daniel: as quatro feras, o bode e o carneiro, as setenta semanas, a grande visão do tempo da cólera e do tempo do fim. Daniel, supostamente escrevendo no século VI A.E.C., descreve o futuro dos impérios da Babilônia, Média, Pérsia e de Alexandre e dos diádocos. Cada um destes é mau, mas o último é o pior. O décimo primeiro chifre da besta, uma figura bastante frequente nesse livro (Dn 7:23-27; 8:9-14; 9:27-28; 11:21-12:45), é retratado em tantos detalhes ao ponto de não restar dúvida de que o escritor descreve Antíoco IV Epífanes. O livro termina com o julgamento, anuncia o despertar dos mortos (Dn 12:2) e promete para Daniel a ressurreição.12 Muito perturbado com o que viu em seu sonho (Dn 2:1; 4:5), Daniel, cuja capacidade de interpretar os sonhos dos outros o distingue nos capítulos 1-6, tem necessidade de um intérprete nos caps. 7-14. A interpretação de Gabriel do reinado de Antíoco (Dn 8:23-25) é um bom exemplo da profecia ex eventu. O começo do livro está em hebraico, mas no cap. 2:4b muda bruscamente para o aramaico até o fim do cap.7:28, e retorna para o hebraico. Diversas explicações foram propostas para esta dualidade na língua, todavia nenhuma foi ainda comprovada e amplamente aceita. Sobre a autoria do livro, muito já foi discutido. As historietas de corte de Dn (caps. 1-6) foram localizadas na Babilônia e alguns estudiosos notaram a proeminência da erudição babilônica em partes de 1En. Por isso, Collins (1998, 26) entende que a possibilidade de essa literatura ser originária da diáspora oriental não pode ser completamente desconsiderada. Por outro lado, certos sinais – o ambiente neobabilônico é descrito com termos de origem persa e até mesmo os instrumentos da orquestra de Nabucodonosor possuem os nomes transcritos do grego – mostram que o autor está muito longe dos acontecimentos (Jerusalém, 1985: 1245). O autor utilizou tradições, orais ou escritas, que muito provavelmente circularam de forma independente, possivelmente em coleções menores em primeiro lugar, antes de serem adicionadas às visões, possivelmente pelos mesmos círculos que compuseram as visões. Os MMM contêm fragmentos de um ciclo de Daniel que tem semelhanças com o livro canônico. O autor, ou suas fontes, apresentou como herói dessas histórias piedosas certo Daniel (ou Dan’el) que em Ez 14:14-20 e 28:3 é citado como justo e sábio dos tempos antigos e que é também mencionado nos poemas de Râs Shamra,13 escritos no século XIV A.E.C. (Jerusalém, 1985: 1245). Já a respeito dos caps. 7-12, há indícios mais claros sobre quando foram compostos. No centro de sua atenção encontra-se Antíoco IV Epífanes (175-164 A.E.C.), o rei selêucida que aparece em Dn ou como o pequeno chifre (Dn 7:8, 11; 8:9-12, 22-25), ou simplesmente Sociedades Precapitalistas, vol. 4, nº 1, julio 2014. ISSN 2250-5121 como uma pessoa desprezível (Dn 11:21). O cap. 11 é um testemunho das guerras entre selêucidas e lágidas e tal relato não se parece com as profecias do AT, pois, apesar do estilo profético, fala de acontecimentos já ocorridos. O livro teria sido composto, portanto, durante a perseguição de Antíoco IV Epífanes e antes de sua morte,14 antes mesmo da vitória da revolta dos Macabeus entre 167-164 A.E.C. Essa data tão recente do livro explica sua posição na Bíblia Hebraica, visto que foi admitido após a fixação do cânone dos Profetas e foi colocado, entre Ester e Esdras, no grupo heterogêneo dos “outros escritos”, que forma a última parte do cânone hebraico.15 As Bíblias grega e latina colocam Dn entre os profetas e lhe acrescentam algumas partes deuterocanônicas: o salmo de Azarias e o cântico dos três jovens, a história de Suzana e as histórias de Bel e a serpente sagrada. Sobre o contexto babilônico descrito em Dn, o verdadeiro rei não foi Nabucodonosor, mas Nabonido (556-539 A.E.C.),16 rei neobabilônico e pai de Belsazar (o autor de Dn erroneamente afirma que Belsazar é o filho do rei Nabucodonosor). Acerca de Dario, o “Medo”, não há evidências de sua existência, porque o rei persa que derrotou Nabonido foi Ciro, o “Grande” (560-530 A.E.C.), sendo este sucedido por seu filho Cambises II (530-522 A.E.C.). Então, posteriormente, um Dario sucedeu Cambises e foi rei da Pérsia entre 522- 486 A.E.C. No período helenístico, em Dn 11:5-20, o intérprete se volta para o tempo entre a morte de Alexandre (323 A.E.C.) e o reinado de Antíoco IV (175-164 A.E.C.). O autor de 2Mc 4:1317 utiliza a oposição judaísmo e helenismo para designar, por causa da perseguição de Antíoco IV Epífanes, as comunidades judaicas que passaram a integrar oficialmente os reinos gregos, de um lado, e, de outro, um clima de “tendências helenizantes” negativamente concebidas pela maioria dos judeus (Hengel, 1974: 1). O conflito cultural resultou em um confronto armado entre 167 e 164 A.E.C., quando os judeus palestinos revoltaram-se contra Antíoco IV Epífanes devido à sua perseguição contra as práticas religiosas judaicas. Entretanto, Hengel (1974: 12) argumenta que, antes da incompatibilidade nas relações entre judaísmo e helenismo na Judeia, houve um significativo intercâmbio entre as culturas. Desde o Iluminismo, existe certo consenso na historiografia quanto à categoria pseudepigráfica e à datação de Dn. Uriel da Costa foi um precursor da abordagem crítica de Dn no século XVII. No século XIX, houve muitas posições controversas, arrefecidas diante do comentário de James Montgomery,18 publicado em 1927, até hoje muito citado. Sociedades Precapitalistas, vol. 4, nº 1, julio 2014. ISSN 2250-5121 A descoberta dos MMM recuou, por um milênio, a datação de testemunhos de Dn, porque oito fragmentos foram encontrados. Há casos em que os pergaminhos em bom estado permitem “corrigir” o texto até então conhecido.19 Noutros casos, o mérito das leituras variantes é difícil de decidir, pois os MMM não estão livres de adições de escribas e de erros dos copistas (Maluf, 2009: 46). Para além dos MMM são encontradas versões em vários idiomas. As versões gregas seguem duas tradições textuais: a da Septuaginta (LXX) e a de Teodocião (Th).20 A versão grega inclui seções que não foram encontradas no texto hebraico e aramaico, mas estão incluídas na Bíblica Católica: duas longas orações21 acrescentadas no capítulo 3 e as histórias de Suzana e de Bel e o Dragão. Na Antiguidade Tardia, a tradução da LXX foi substituída pela tradução de Th (Maluf, 2009: 47). Portanto, vê-se o quanto Dn é popular e bastante influente no judaísmo e no cristianismo primitivo. Alusões e citações a Dn perpassam Josefo, o NT, Justino, Orígenes, Eusébio, Jerônimo e outros pais da Igreja. O Apocalipse Siríaco de Daniel No século VII da era comum novos personagens, os árabes, apareceram no cenário de um Mediterrâneo dominado por gregos, romanos e persas. Antes do século VII E.C., os cristãos bizantinos22 enfrentaram grandes dificuldades (como quando guerrearam contra os persas e os hunos) e os desastres militares intrigaram os bizantinos. Até mesmo Procópio23 foi forçado a reconhecer que era incapaz de explicar a queda de Antioquia para os persas em 540 E.C. Nessa mesma circunstância, a peste bubônica em 542 E.C. também foi um fator de mudança e grandes preocupações (Olster, 2003: 260-262). Entretanto, a dimensão dessas derrotas e desastres foi menor que as do século VII, pois além das dificuldades econômicas no Império Bizantino, um episódio muito importante – pelo seu impacto na literatura apocalíptica – foi, sem dúvida, a guerra de Heráclio contra o Império Sassânida. No início da segunda década do século VII E.C., a conquista persa havia se estendido para todo o Levante. Os bizantinos foram capazes de retirar os persas de Cesareia, mas fracassaram em sua ofensiva contra a Armênia e a Síria. Em 614 E.C., Jerusalém caiu nas mãos do inimigo, que tomou a Santa Cruz e a levou para sua capital, Ctesiphon. Em 617 E.C., os persas atingiram o Bósforo, e em 619 E.C., conquistaram o Egito (Ubierna, 2008: 4-5). Os acontecimentos da guerra persa, que terminou com o retorno triunfal de Heráclio com a Santa Cruz, provocaram um forte impacto em todo o território onde as operações ocorreram. Tal impacto e suas consequências foram sentidos ao longo dos séculos VII e VIII E.C. A Sociedades Precapitalistas, vol. 4, nº 1, julio 2014. ISSN 2250-5121 partir daí, um grande número de tendências, que haviam começado a ser delineadas muito tempo antes, atingiu sua realização nesse período. Todavia, não foi apenas o inimigo militar que atacou as muralhas de Bizâncio no século VII E.C.; a contenda interna religiosa também foi uma praga entre eles. Desejando transmitir uma aparência de acordo e uniformidade do credo para o seu reino dividido pela guerra, o imperador Heráclio e o patriarca Siergo tentaram impor uma unidade. Isso deslocou a lealdade de algumas províncias e produziu um debate furioso de mais de meio século (especialmente de 630 a 680 E.C.) e resultou numa enxurrada de sínodos. Em resumo, as calamidades desse tempo trouxeram diversas mudanças na configuração das fronteiras, da política, das doutrinas cristãs, da literatura etc. Desse modo, as guerras bizantinas começaram a ser cada vez mais imbuídas de um significado religioso. É certo que, com os hunos, os ávaros, os persas e, posteriormente, os árabes nas muralhas de Constantinopla, os bizantinos perceberam-se a si mesmos não mais como cidadãos de um império do mundo, mas como povo escolhido rodeado por nações pagãs hostis (Palmer, 1993: xix- xxvii). A partir do século VII E.C., essa identificação da guerra ou da perseguição como uma oposição entre cristãos e pagãos em vez de romanos e bárbaros intensificou-se e a guerra tornou-se cada vez mais associada ao exercício do cristianismo do que ao exercício do poder romano. Logo, diante desse contexto de invasões e conflitos, o século VII E.C. se colocou como o período formativo da apocalíptica, e dele até o século IX E.C. se constituiu a era de ouro dos apocalipses bizantinos quando então os textos formativos e os modelos foram criados (Olster, 2003: 263). É nesse contexto da primeira metade do século VII E.C. que A Revelação de Daniel, o profeta, na terra da Pérsia e de Elam, ou simplesmente, o Apocalipse Siríaco de Daniel foi provavelmente escrito dentro do Império Bizantino por algum cristão siríaco e melquita. O manuscrito – MS Syr 42 da Universidade de Harvard – editado, publicado e traduzido por Slabczyk (2000) para o esperanto, sob o título Apokalipso de Danielo Profeto en la Lando Persio kaj Elamo, foi posteriormente publicado por Henze (2001) em edição crítica de língua inglesa. Como sugerido pelo título, o Syr Apoc Dan tem uma clara relação com Dn, pois também tem um personagem principal chamado Daniel que retoma algumas das mais importantes visões do personagem bíblico. Ademais, diferentemente da maioria da literatura pseudepigráfica daniélica tardia, o Syr Apoc Dan preservou duas partes como as do livro canônico. A primeira parte (caps. 1-13) é narrativa, escrita em prosa, em que Daniel conta, em primeira Sociedades Precapitalistas, vol. 4, nº 1, julio 2014. ISSN 2250-5121 pessoa, os acontecimentos da sua trajetória da Babilônia até a Pérsia. A segunda parte (caps. 14-40) está escrita em verso e trata das visões escatológicas de Daniel. A narrativa do Syr Apoc Dan inicia-se com a afirmação de Daniel de que as profecias relatadas nesse texto foram reveladas pelo Espírito Santo e que elas dão continuidade às que ele teve durante o reinado de Nabucodonosor, rei da Babilônia. Daniel descreve a pilhagem de Nabucodonosor aos tesouros do Templo de Salomão e relembra algumas visões presentes em Dn. O texto do Syr Apoc Dan prossegue relatando a conquista da Babilônia por Ciro e o assassinato de Ciro por Gaumata, o “Mago”,24 que posteriormente também é assassinado por seus nobres. Dario assume, então, o trono da Pérsia e obriga Daniel a revelar o lugar onde estavam os tesouros do Templo. Como castigo pela pretensão de tomar posse do tesouro, um anjo tira a visão de Dario e lhe revela que, para ter a cura, o rei deveria ir a Jerusalém e adorar no Templo do Senhor. Dario e Daniel vão a Jerusalém, onde Dario é batizado no tanque de Siloé e, curado, adora a Deus. Aqui se inicia a segunda parte do Syr Apoc Dan. Escrita em versos, ela é composta na terceira pessoa e trata das visões escatológicas de Daniel. A revolta do “Povo do Norte” marca o início da seção escatológica no Syr Apoc Dan. Essa rebelião é acompanhada por vários sinais de grande calamidade. A desordem na natureza é seguida de uma intensa corrupção moral.25 O texto do Syr Apoc Dan prossegue narrando o nascimento de uma criança da tribo de Levi que é o próprio Anticristo. Ele seduz os habitantes do mundo por meio de milagres e sinais e persegue os cristãos. Em conjunto com o Anticristo, uma multidão de Agogitas e Magogitas toma o controle do mundo. Os anjos o atingem com uma espada de fogo dividindo-o em duas partes que são lançadas no mar. Em seguida, o Senhor dos Exércitos desce em majestade e poder numa carruagem de água benta acompanhado por seus anjos de guerra. Então, o grande Messias assenta-se no trono dos justos na Nova Jerusalém para julgar. Ao final do Syr Apoc Dan, há uma adição tardia na qual o autor pede para ficar à direita de Cristo entre os santos e seus amigos. O autor conclui dizendo que ali acaba a assombrosa revelação ao profeta Daniel na terra da Pérsia e Elam. No Syr Apoc Dan ecoam várias tradições de outros textos tanto judaicos quanto cristãos, pois essas tradições continuaram a exercer influência na literatura siríaca até o período da Sociedades Precapitalistas, vol. 4, nº 1, julio 2014. ISSN 2250-5121 invasão islâmica (Brock, 1979: 212). A literatura siríaca foi influenciada pela tradição judaica tanto pela Peshitta quanto pela pseudepigrafia e literatura apócrifa. Nesse contexto, a tradução de Henze do Syr Apoc Dan, segundo Brock (2006: 17), obscurece certo número de palavras e características provenientes da literatura Hekhalot26 e do Targum da Palestina,27 por exemplo. Henze assume que o autor conhece o Ap e compara várias passagens do Syr Apoc Dan ao Ap. Entretanto, os apocalipses bizantinos tiveram como fonte de inspiração maior as profecias de Daniel sobre as setenta semanas e os quatro impérios mundiais e as profecias de Ez sobre Gog e Magog em vez do Ap. Isso não significa que os bizantinos não tivessem conhecimento do Ap, mas eles tinham certas suspeitas em relação à sua autoria (Olster, 2003: 256). Desse modo, para Brock (2006: 17), parece mais incerto ainda afirmar que o autor do Syr Apoc Dan tenha utilizado passagens do Ap para compor seu texto. Os apocalipses bizantinos demonstram grande sofisticação literária ao incorporarem, com frequência, elementos de outros gêneros, como homilias e literatura hagiográfica. A imagem dos “Portões do Norte” é um tópico bem conhecido da Lenda de Alexandre, o Grande28 e esta, provavelmente, interferiu na literatura apocalíptica siríaca do século VII E.C. (Henze, 2001: 13). De acordo com a narrativa popular, Alexandre construiu uma muralha ou um portão no Cáucaso para evitar que as nações de Gog e Magog29 assolassem a terra antes do fim dos tempos. A primeira menção a essa lenda é encontrada em Josefo.30 Para Paul Alexander (1985: 185-192), então, é de Ez que os apocalipses bizantinos derivam a noção de uma invasão e destruição das nações pela vontade de Deus. Geralmente, a data de composição dos apocalipses medievais está relacionada ao último evento histórico que eles aludem na passagem da primeira parte, a narrativa, para a segunda parte, a escatológica (Alexander, 1968: 999). Entretanto, o Syr Apoc Dan se diferencia dos outros apocalipses pela completa ausência de revisões históricas explícitas na forma de profecias ex eventu. Até existem nomes específicos de pessoas e lugares – como a Montanha de Zilai – mas estas não são alusões reconhecíveis para eventos históricos concretos e, portanto, dificultam a determinação exata da data de composição da obra. Ou seja, é um apocalipse histórico que não retrata seu contexto histórico. Não há nenhum sinal das mudanças da época nem das catástrofes presentes no século VII E.C. Para Cardinal (2012: 121-122), a localização geral e a ausência de marco cronológico fazem dele um texto flutuante no tempo e indefinido no espaço. Ele acrescenta, ainda, que a primeira parte é justaposta à segunda e que elas não compartilham necessariamente a mesma origem. Além disso, Cardinal postula que outra razão para o Syr Apoc Dan não entrar nas categorias de subgêneros apocalípticos formulada por Collins (1984: 4-9) é a ausência do intérprete angélico.31
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