http://dx.doi.org/10.5007/1984-9222.2014v7n13p193 Africanos e afrodescendentes nas origens do Brasil: raça, relações raciais e culturas negras no II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador (1937)* Sarah Calvi Amaral Silva** Resumo: o objetivo deste artigo é discutir duas comunicações apresentadas ao II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador (1937), atentando para os lugares sociais atribuídos a brancos, negros e mestiços nessas interpretações sobre a formação histórica, social e cultural do Brasil. Ocorrido no contexto da conformação do campo 193 de estudos africanos e de relações raciais, o evento contou com a participação de inúmeros intelectuais brasileiros e estrangeiros. Dentre eles, estavam Arthur Ramos e Dante de Laytano, autores dos textos a serem aqui analisados com base em noções de raça e categorias correlatas instrumentalizadas pelos mesmos. Tal abordagem se dará, através da remontagem parcial de redes de relações domésticas e transnacionais estabelecidas por Ramos e Laytano, bem como por meio de elementos de suas trajetórias intelectuais e proissionais. Palavras-chave: intelectuais; raça; formação do Brasil. Abstract: this article aims to discuss two speeches given during the Second African- Brazilian Congress of Salvador (1937), in order to analyze the social positions granted to white, black and half-blood peoples and the related points of view regarding historical, social and cultural aspects in Brazil. The event, which happened during the development of the African Studies and Racial Relations ields, featured many intellectuals from Brazil and abroad. Among these names were Arthur Ramos and Dante de Laytano, who wrote the speeches hereby studied. The focus lies in which concepts of race and other categories the authors use as instruments. The approach takes into consideration the network they held within and outside of the country, as well as their intellectual and professional histories. Key-words: intellectuals; race; Brazil. * Este artigo é uma relexão desenvolvida com base nos dois primeiros capítulos de minha dissertação de mestrado. SILVA, Sarah. C. A. “Africanos e Afrodescendentes nas origens do Brasil: raça e relações raciais no II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador (1937) e no III Congresso Sul-rio-grandense de História e Geograia do IHGRS (1940)”. (Dissertação de Mestrado em História, UFRGS, 2010). ** Doutoranda em História – PPGH/ UFRGS. E-mail: [email protected]. Revista Mundos do Trabalho | vol. 7 | n. 13 | janeiro-junho de 2015 | p. 193-214 SARAH CALVI AMARAL SILVA Embora interpretações sobre a formação histórica, social e cultural do Brasil, entrecortadas por noções de raça, igurassem na cena letrada desde, pelo menos, o século XIX, foi na década de 1930 que os chamados estudos africanos e de relações raciais seriam conformados em um campo de investigação.1 No contexto de intensos debates acerca da identidade nacional, as nascentes ciências sociais brasileiras passavam por um lento processo de institucionalização, marcado por tentativas de deinição de suas disciplinas, pela fundação de instituições, por diálogos com especialistas estrangeiros, pela recepção de categorias analíticas inovadoras, entre outras iniciativas.2 O referido campo se consolidou no I Congresso Afro-Brasileiro de Recife (1934), organizado por Gilberto Freyre, e no II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador (1937), empreendido por Edison Carneiro, Aydano do Couto Ferraz, Reginaldo Guimarães e apoiado por Arthur Ramos.3 Ambos os eventos contaram com a presença de intelectuais brasileiros, cientistas sociais estrangeiros e personalidades do universo religioso e militante afrodescendente. As possibilidades abertas nos congressos permitiram a enunciação de teses variadas, centradas nos sentidos e consequências da presença negra no desenvolvimento do Brasil, demonstrando o quanto as discussões travadas naqueles espaços inluenciaram a atribuição de lugares sociais especíicos a brancos, negros e mestiços em escritos produzidos em inúmeros ambientes. O objetivo deste artigo é discutir duas comunicações apresentadas ao II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador, evento no qual tornaram-se mais explícitas as disputas em torno da legitimação de pesquisas sobre o negro. Nos textos 194 apresentados por Arthur Ramos e pelo intelectual sul-rio-grandense Dante de Laytano, será analisado o uso de noções de raça e categorias correlatas na caracterização de grupos sociais considerados importantes para a formação do Brasil. O primeiro autor dedicou-se a compreender a estruturação de culturas de matriz africana na Bahia. Já o segundo, buscou perceber a participação dos negros na formação do Rio Grande do Sul, localizando-os em eventos históricos determinados. Aparentemente distantes entre si, ambas as comunicações foram, em certa medida, forjadas no âmbito do mesmo campo de debates, articulado por redes de relações domésticas e transnacionais, cujos desdobramentos permitem uma análise comparativa dos textos em questão. Por outro lado, as obras de Ramos e Laytano possuíam particularidades, somente perceptíveis se consideradas as conjunturas institucionais e proissionais sob as quais ambos produziram. Africanismos, regionalismo e o “elemento africano” na formação do Brasil O II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador ocorreu entre os dias 11 e 20 de janeiro de 1937 no Instituto Nina Rodrigues, pertencente à Faculdade de Medicina da Bahia, e no Instituto Geográico e Histórico da Bahia. Na programação constaram a apresentação e leitura de comunicações, demonstrações de capoeira, festas em candomblés, exposições, reuniões político-intelectuais.4 As teses publicadas nos 1 SANSONE, Lívio. “Um campo saturado de tensões: o estudo das relações raciais e das culturas negras no Brasil”. Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, n. 1, 2002. 2 MICELI, Sérgio (org.). História das Ciências Sociais no Brasil. v.1. São Paulo: Sumaré/IDESP/FAPESP, 2001. 3 SANSONE. “Um campo saturado de tensões”, p. 4. 4 Neste artigo não será possível abordar toda a complexidade do II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador Revista Mundos do Trabalho | vol. 7 | n. 13 | janeiro-junho de 2015 | p. 193-214 AFRICANOS E AFRODESCENDENTES NAS ORIGENS DO BRASIL anais trouxeram pontos de vista variados acerca da história e da cultura brasileira, basicamente calcados na “inluência do elemento africano no desenvolvimento do Brasil”.5 A presença negra fora, assim, entendida “sob o ponto de vista da etnograia, do folclore, da arte, da antropologia, da história, da sociologia, do direito, da psicologia social [...] de todos os problemas de relações de raça no país”.6 De vinte e três comunicações publicadas, treze trataram de assuntos perpassados por culturas e religiões de matriz africana. Eram tempos de tentativas de superação do racismo cientíico ainda circulante entre a intelectualidade, tarefa em parte assumida pelos adeptos da Antropologia Cultural de Franz Boas. Em resumo, a importância do culturalismo no Brasil e na América Latina residiu no fato de que, teoricamente, o conceito de cultura teria substituído a noção biológica de raça na compreensão das diferenças humanas.7 Ao invés de as mesmas serem explicadas pela Antropologia Física, cujo conceito-chave era a raça, essas diferenças poderiam ser perscrutadas com base em manifestações culturais observadas em sociedade, por meio do método etnográico.8 Um dos intelectuais dedicados à difusão do culturalismo no Brasil foi Arthur Ramos. Ramos incorporou a Antropologia Cultural em sua produção, ao mesmo tempo em que criava a Psicologia Social, em diálogo com os africanismos ou sobrevivências de traços culturais africanos nas Américas. Quando o discípulo de Franz Boas, Melville Herskovits, enviou ao II Congresso Afro-Brasileiro um texto sobre o sincretismo religioso no Novo Mundo, os diálogos com Arthur Ramos já existiam.9 Antônio Sérgio Guimarães analisou detidamente a correspondência de 195 Ramos e Herskovits, a partir de fontes disponíveis nos arquivos da biblioteca de Northwestern University (1935 a 1941), e no Arquivo Arthur Ramos da Biblioteca Nacional (1941 a 1949).10 Segundo Guimarães, esses intercâmbios signiicaram a abertura do mundo afro-baiano para Herskovits, possibilitando o avanço de seu projeto de pesquisa intercontinental sobre as culturas africanas nas Américas.11 Em contrapartida, Ramos acumularia prestígio no Brasil e no exterior em discussões candentes à época. Exemplo disso é a carta por ele escrita para Herskovits, em 1936: “Estarei tratando de divulgar o mais largamente possível o seu trabalho numa conferência próxima que irei realizar em São Paulo sobre ‘As culturas negras no Brasil’ que lhe enviarei logo que sair publicada”.12 A conferência fez parte de uma que, afora discussões intelectuais, tocou em temas fundamentais à época, tais como a perseguição policial aos candomblés e o universo afro-religioso contemporâneo, na ocasião amplamente representado por pais, mães e ilhos de santo. Esta ponderação é necessária, visto que os debates travados no evento foram perpassados por contextos políticos e sociais mais amplos, em meio aos quais diversos especialistas desenvolveram suas relexões. Para perceber esta interface ver, entre outros: BACELAR, Jeferson. “O legado da Escola Baiana. Para uma Antropologia da reafricanização dos costumes”. In: _________. A hierarquia das raças: negros e brancos em Salvador. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. 5 CARNEIRO, Edison; FERRAZ, Aydano do Couto; GUIMARÃES, Reginaldo. “Palavras inaugurais do Congresso Afro-Brasileiro da Bahia”. In: Congresso Afro-Brasileiro (2: 1937: Salvador, BA). O negro no Brasil: trabalhos apresentados ao 2° Congresso Afro-Brasileiro. Coleção Biblioteca de Divulgação Cientíica, v. XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1940, p. 15. 6 CARNEIRO; FERRAZ; GUIMARÃES. “Palavras inaugurais do Congresso Afro-Brasileiro da Bahia”, p. 15. 7 MARTÍNEZ-ECHAZÁBAL, Lourdes. “O Culturalismo dos Anos 30 no Brasil e na América Latina: Deslocamento Retórico ou Mudança Conceitual?”. In: MAIO, Marcos Chor; e SANTOS, Ricardo Ventura. Raça, Ciência e Sociedade. Rio de Janeiro: Fiocruz/CCBB, 1996, p. 107-124. 8 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas Ciências Sociais. São Carlos: EDUSC, 2005, p. 40-49. 9 HERSKOVITS, Melville. “Deuses africanos e santos católicos nas crenças do negro no Novo Mundo”. In: Congresso Afro-Brasileiro (2: 1937: Salvador, BA), p. 19-29. 10 GUIMARÃES, Antônio Sérgio Alfredo. “Africanismo e democracia racial: a correspondência entre Herskovits e Arthur Ramos (1935-1949)”. Texto em versão preliminar. http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginile.php/271096/ mod_resource/content/1/Africanismo%20e%20democracia%20racial.pdf. Acessado em 19/06/2015, p. 1-28. 11 GUIMARÃES, “Africanismo e democracia racial”, p. 7. 12 Fundação Biblioteca Nacional, Arquivo Arthur Ramos - I, 35, 15, 173 – Carta de Arthur Ramos a Melville Revista Mundos do Trabalho | vol. 7 | n. 13 | janeiro-junho de 2015 | p. 193-214 SARAH CALVI AMARAL SILVA série de palestras do curso de Etnograia e Folclore organizado pelo Departamento de Cultura da Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, preparada a pedido de Mário de Andrade, então diretor do Departamento.13 Essas trocas entre especialistas se deram num contexto no qual modelos de sistemas raciais eram construídos em âmbito internacional, conforme aponta Micol Seigel, ao discutir a montagem comparativa de quadros explicativos das relações raciais, concebidos com base em unidades nacionais pré-estabelecidas.14 Segundo Seigel, semelhanças e diferenças supostamente particulares a determinadas nações foram produzidas por uma intelectualidade empenhada em construir a “cultura” e a “raça” enquanto categorias analíticas e sociais. Esse processo ocorreu através de redes transnacionais, pelas quais circularam pessoas e ideias que preencheram aquelas categorias de seus conteúdos teóricos, históricos e culturais. Tal dinâmica possibilitou a criação de dois arquétipos: a ideia dos Estados Unidos como um lugar de uma gritante dicotomia racial; e a ideia do Brasil como um país de contornos raciais mais sutis.15 Esses estereótipos subsidiaram projetos políticos e izeram parte da história das relações raciais dos dois países, quando o campo de estudos assim denominado era conformado.16 Nesse sentido, Seigel comenta a colaboração angariada por Arthur Ramos, o que signiicou um importante passo para a participação brasileira em investigações sobre temáticas negras. Desde então, o candomblé seria citado com mais frequência como uma prova de que culturas africanas teriam sobrevivido nas Américas, mais do que quaisquer outras instituições afro-americanas.17 O programa de trabalho do II Congresso Afro-Brasileiro parece ter reletido esse contexto. Além de Herskovits, 196 o sociólogo Donald Pierson, representante da Escola de Chicago, participou do evento, quando realizava pesquisas sobre as relações raciais brasileiras em Salvador. No plano nacional, em parte, a atuação de Arthur Ramos ocorreu sob a chamada Escola Nina Rodrigues, um heterogêneo coletivo de médicos e intelectuais dublês de homens de Estado, cujos interesses perpassavam áreas como a Medicina e a Antropologia.18 Um dos objetivos do grupo radicado no Rio de Janeiro era enfrentar a hegemonia da perspectiva Freyreana sobre as relações raciais, calcada na mestiçagem. Dentre as estratégias da Escola encontram-se a Herskovits. Rio de Janeiro, 26 de março de 1936. 13 Fundação Biblioteca Nacional – Arquivo Arthur Ramos - I – 35, 21, 542. Carta de Mário de Andrade a Arthur Ramos. São Paulo, 20 de abril de 1936. 14 SEIGEL, Micol. “Beyond Comparative Method after the Transnational Turn”. Radical History Review, Issue 91, winter, 2005, p. 63. 15 Segundo Luciana Brito, nos Estados Unidos apropriações e reelaborações de imagens sobre o Brasil ocorreram entre os anos anteriores à Guerra Civil e o pós-abolição. A autora coloca que, num contexto de intensas discussões políticas acerca de outras sociedades escravistas das Américas, o caso brasileiro foi tomado como exemplo para pensar as experiências de escravidão e liberdade na sociedade norte- americana. Abolicionistas negros, viajantes, cientistas e escravistas participaram desses debates, ora considerando o Brasil como um país miscigenado e racialmente harmônico, ora tomando-o como um país de clima tropical portador de formas de vida inferiores às dos Estados Unidos. As relexões de Brito demonstram como a construção dos modelos de relações raciais comentada por Seigel operava, através de intercâmbios de ideias e projetos políticos gestados na América diaspórica. BRITO, Luciana Cruz. “Impressões norte-americanas sobre escravidão, abolição e relações raciais no Brasil escravista”. (Tese de doutorado em História Social, Universidade de São Paulo, 2014). 16 SEIGEL. “Beyond Comparative Method after the Transnational Turn”, p. 67. Essa relexão inspirou a metodologia escolhida para o presente artigo. Ao invés de analisar os escritos de Arthur Ramos e Dante de Laytano enquanto discursos supostamente correspondentes a realidades diferentes (uma Bahia essencialmente negra e um Rio Grande do Sul essencialmente branco), mais produtivo é entender os textos dos autores como discursos elaborados em meio a relações e contextos que inluenciaram a apropriação de conceitos e problemáticas atrelados à raça e à cultura. 17 SEIGEL. “Beyond Comparative Method after the Transnational Turn”, p. 79. 18 CORRÊA, Mariza. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a Antropologia no Brasil. Bragança Paulista: EDUSF, 1998. Revista Mundos do Trabalho | vol. 7 | n. 13 | janeiro-junho de 2015 | p. 193-214 AFRICANOS E AFRODESCENDENTES NAS ORIGENS DO BRASIL ocupação de cargos estatais, a docência em universidades e o engajamento em editoras importantes. Contudo, destaca-se que a concorrência entre membros da Escola e outros intelectuais era situacional, não conigurando posturas rígidas, quanto a divergências teóricas e aproximações de variadas naturezas. Autointitulados discípulos do mestre em “africanologia”, Raimundo Nina Rodrigues, os idealizadores da Escola revisitaram os materiais de campo por ele coletados em Salvador no inal do século XIX, interpretados à luz de teorias do racismo cientíico. Como médico, a preocupação de Nina era entender os motivos patológicos da criminalidade e de outros comportamentos considerados desviantes e anormais, supostamente observáveis nos candomblés.19 Ao buscar resigniicar estes postulados, sob um viés culturalista, Ramos e seus pares buscaram legitimar seus próprios trabalhos, mediante a reivindicação de uma iliação aos estudos de Nina, num momento de “renhida disputa político-intelectual” sobre o pioneirismo dos estudos sobre o negro.20 Outro elemento a ser considerado é a institucionalização das Ciências Sociais brasileiras, anteriormente mencionada. Desde então, seria necessário conhecer e se apropriar de escopos mais “modernos” para conquistar o rótulo de “cientiicidade”, progressivamente, atribuído à Sociologia e à Antropologia estrangeiras. Porém, vale lembrar que nos anos 30 esse processo estava apenas no início, permitindo a circulação institucional de proissionais simultaneamente atuantes em espaços, tais como as universidades e os Institutos Históricos e Geográicos.21 As próprias disciplinas foram demarcadas em meio a disputas nesse 197 processo que, em alguns casos, atravessou questões políticas e sociais. Havia, por exemplo, uma inter-relação entre a face cientíica da “questão negra” no Brasil e a proposição de políticas públicas, especialmente na esfera educacional, embasadas em saberes antropológicos sobre populações a serem administradas pelo Estado.22 Este é o caso de Ramos. A aproximação de Ramos da Antropologia Cultural ocorreu quando ele lecionava Psicologia Social na Universidade do Distrito Federal (1935).23 Em carta a Herskovits, Ramos informa: “Tenho atualmente um curso de Psicologia Social na Universidade do Distrito Federal e estou procurando inteirar-me da bibliograia norte-americana. Muito grato icaria se me fornecesse [...] qualquer indicação neste particular”.24 Mesmo alocado em uma especialidade que, aparentemente, não dialogava com o culturalismo, Ramos necessitou se apropriar desses e outros postulados para adquirir legitimidade. Ajuda a entrever esse terreno, o fato de Gilberto Freyre ser professor de Antropologia Social e Cultural na UDF, além de ter sido aluno de Franz Boas e conseguido levar Herskovits ao I Congresso Afro- Brasileiro de Recife (1934), nada afeito a “escolas rígidas”.25 19 CORRÊA. As ilusões da liberdade, ver o Capítulo I, intitulado “Contexto”. 20 CORRÊA. As ilusões da liberdade, p. 220. 21 Alfredo Ellis Júnior – catedrático de História da Civilização Brasileira na Faculdade de Filosoia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (1934) – pertenceu ao Instituto Histórico e Geográico de São Paulo, inicialmente, levando para a USP as orientações teórico-metodológicas operadas no IHGSP. Sobre o autor, ver: FERREIRA, Antônio Celso. A epopeia bandeirante: letrados, instituições, invenção histórica (1870-1940). São Paulo: Editora UNESP, 2002; MONTEIRO, John. “Caçando com gato: raça, mestiçagem e identidade paulista na obra de Alfredo Ellis Júnior”. Novos estudos/CEBRAP, v. 38, 1994, p. 61-78. 22 L’ESTOILE, Benôit de; NEIBURG, Federico; SIGAUD, Lygia. “Antropologia, impérios e estados nacionais: uma abordagem comparativa”. In: L’ESTOILE; NEIBURG; SIGAUD. Antropologia, Impérios e Estados nacionais. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002, p. 18. 23 ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de. “Dilemas da institucionalização das Ciências Sociais no Rio de Janeiro”. In: MICELI. História das Ciências Sociais no Brasil, p. 225-226. 24 Fundação Biblioteca Nacional – Arquivo Arthur Ramos - I – 35, 15, 172 - Carta de Arthur Ramos a Melville Herskovits. Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 1935. 25 FREYRE, Gilberto. “O que foi o 1° Congresso Afro-Brasileiro do Recife”. In: GILBERTO FREYRE E OUTROS. Revista Mundos do Trabalho | vol. 7 | n. 13 | janeiro-junho de 2015 | p. 193-214 SARAH CALVI AMARAL SILVA Arthur Ramos exerceu certa inluência sobre a montagem do programa de trabalho do II Congresso Afro-Brasileiro de Salvador, segundo aponta o informe dirigido a Ramos por Edison Carneiro, folclorista eventualmente identiicado com a Escola Nina Rodrigues: “Aderimos à ideia de homenagem a Nina. [...] A solenidade será na Faculdade [de Medicina]. Lá você terá de ler a sua tese sobre a escola de Nina”.26 Quanto às disciplinas, Antropologia, Etnograia, Sociologia e Psicologia Social iguraram entre as possibilidades colocadas aos congressistas, embora essas não fossem as únicas alternativas disponíveis. O Folclore e a História estavam também representados. Na primeira metade do século XX, o folclore desempenhou importante papel em pesquisas sobre a cultura popular, pleiteando o status de disciplina autônoma institucionalizada, sendo fundamental inscrever os temas abordados por alguns intelectuais brasileiros no âmbito dessa área de saber.27 A conferência encomendada por Mário de Andrade a Arthur Ramos, anteriormente citada, objetivava instrumentalizar aspirantes a folcloristas com métodos que possibilitassem a observação da realidade brasileira, através de coleta empreendida com base nos mesmos princípios “cientíicos”, posteriormente, atribuídos às Ciências Sociais da USP.28 Em 1936, Andrade criaria a Sociedade de Etnograia e Folclore no Departamento de Cultura de São Paulo, onde fora realizado o curso integrado por Ramos e dirigido por Dina Lévi-Strauss.29 Porém, a disciplina acabou marginalizada na arena concorrencial que incluía Institutos Históricos e Geográicos, universidades e outras instituições que, naquele período, declinaram as solicitações de apoio feitas por folcloristas. 198 Ao procurar atingir os objetivos de autonomia e cientiicidade, o folclore se aproximou da Antropologia Cultural, pautando perspectivas calcadas na fábula das três raças. Essas considerações são importantes, porque, por vezes, Arthur Ramos e Dante de Laytano deiniram seus trabalhos como estudos de folclore, ao mesmo tempo em que contatavam as Ciências Sociais.30 Considerando esta dinâmica, é possível compreender a participação de Laytano no II Congresso Afro- Brasileiro, momento em que escrevia sob o Instituto Histórico e Geográico do Rio Grande do Sul (IHGRS). Segundo Letícia Nedel, nas décadas de 40, 50 e 60, a busca por espaços de enunciação, por parte de intelectuais sul-rio-grandenses, esteve ligada aos debates das progressivamente hegemônicas Ciências Sociais.31 A autora argumenta que redes de relações, articuladas a círculos letrados dedicados a pesquisas acerca da cultura popular, ajudaram a conformar não só a historiograia sulina, como também a identidade proissional dos atores envolvidos. Tal identidade foi permanentemente marcada por tensões quanto às formas de perscrutar as manifestações culturais deinidas como “essencialmente” nacionais. Nessa conjuntura, o engajamento de Dante de Laytano na Comissão Estadual de Folclore (CEF) fora decisivo para a sua entrada nos debates comentados. Filiada Novos Estudos Afro-Brasileiros. Trabalhos apresentados ao 1° Congresso Afro-Brasileiro realizado no Recife, em 1934. (2° volume). Recife: Fundação Joaquim Nabuco/Massangana, 1988. Edição fac-similar, p. 348-352. 26 Fundação Biblioteca Nacional – Arquivo Arthur Ramos - I - 35, 25, 880 – Carta de Edison de Souza Carneiro a Arthur Ramos. Salvador, 12 de dezembro de 1936. 27 VILHENA, Luis Rodolfo. Projeto e missão: o movimento folclórico brasileiro (1947-1964). Rio de Janeiro: Editora FGV/ Funarte, 1997. 28 VILHENA. Projeto e missão, p. 91. 29 VILHENA. Projeto e missão, p. 90. 30 RAMOS, Arthur. As Culturas Negras no Novo Mundo: Negro Brasileiro III. v. 249. 2ª ed. Brasiliana. São Paulo: Editora Nacional, 1946, p. 13. 31 NEDEL, Letícia Borges. “Um passado Novo para uma História em Crise: Regionalismo e Folcloristas no Rio Grande do Sul (1948-1965)”. (Tese de doutorado em História, Universidade de Brasília, 2005). Revista Mundos do Trabalho | vol. 7 | n. 13 | janeiro-junho de 2015 | p. 193-214 AFRICANOS E AFRODESCENDENTES NAS ORIGENS DO BRASIL à Comissão Nacional de Folclore, a CEF se transformou em importante esfera de produção para intelectuais “de província”, preocupados em irmar seus escritos, frente ao cenário concorrencial que se desenhava. Fundadas nos anos 40, ambas as comissões integraram o projeto de institucionalização do folclore. Quanto às disciplinas reivindicadas ou refutadas por intelectuais do “centro” e da “periferia”, o folclore apareceu como alternativa àqueles interessados em inserir contornos regionalizados em sua escrita, reconciliando “padrões identitários locais e brasileiros”, como era o caso de Laytano.32 Nedel aponta que a apropriação da Antropologia Cultural não signiicou o abandono de perspectivas manipuladas pelo autor anteriormente, mas sim a deixa para que ele estabelecesse interlocuções com campos em ascensão. Percebendo a emergência do culturalismo, da Escola de Chicago e de autores brasileiros de renome, Laytano passou a citar Arthur Ramos, Gilberto Freyre, entre outros, e a receber visitas ilustres em seu gabinete no Museu Júlio de Castilhos, como Melville Herskovits e Donald Pierson. Ao mesmo tempo, cientistas sociais eram indicados para sócios correspondentes do IHGRS.33 Assim, o folclore tomou emprestados das ciências sociais conceitos e métodos referenciados nos estudos africanos e de relações raciais. Em se tratando da historiograia, Nedel airma que, no mesmo momento em que nacionalmente a intelectualidade se dedicava à “culturalização da imagem do cadinho racial brasileiro”, convertendo a mestiçagem em elemento positivo da identidade nacional, o projeto historiográico do IHGRS “sabidamente 199 recalcava a presença negra, imigrante e castelhana da formação histórica e social do Rio Grande”.34 Segundo a autora, historiadores polígrafos mantiveram-se mais ocupados em nacionalizar a memória farroupilha e relacionar seus heróis militares às elites do Estado Imperial, do que discutir os temas em voga surgidos no período. Nedel refere-se a uma produção forjada num contexto de ascensão de intelectuais nordestinos como porta-vozes da autêntica cultura nacional.35 O desaio colocado consistia, portanto, em incorporar a mestiçagem e a presença negra em interpretações sobre a formação do Rio Grande do Sul. Nas disputas sobre as deinições do “povo” e da cultura brasileiras, o Rio Grande do Sul esteve à margem do modelo ideal construído por agentes que, segundo a concepção de Pierre Bourdieu, conquistaram autoridade para nomear diferenças e impor, aos “outros”, classiicações consideradas destoantes de um todo deinido como nacional.36 Esses agentes encontravam-se em espaços diferentes daqueles onde a produção escrita era conhecida, interna e externamente, como “provinciana”, por não comportar elementos que permitissem incluí-la na categoria “nacional”.37 Parafraseando Bourdieu, a “região” foi o resultado de disputas entre intelectuais que, não reconhecendo na historiograia sulina traços como a miscigenação, a rotularam de regionalista. Entre as práticas de Dante de Laytano para reverter este quadro incluíram- se, além das redes de relações, a presença em eventos como o II Congresso Afro- Brasileiro. Nesse sentido, as conversas de Laytano e Arthur Ramos parecem ter contribuído para a inserção do intelectual sulino no campo de estudos africanos e 32 NEDEL. “Um passado novo para uma história em crise”, p. 264. 33 NEDEL. “Um passado novo para uma história em crise”, p. 237-238. 34 NEDEL. “Um passado novo para uma história em crise”, p. 245-246. 35 NEDEL. “Um passado novo para uma história em crise”, p. 209. 36 BOURDIEU, Pierre. “A identidade e a representação. Elementos para uma relexão crítica sobre a ideia de região”. [1984]. In: O poder simbólico. Rio de Janeiro/Lisboa: Diefel, 1989, p. 107-132. 37 NEDEL. “Um passado novo para uma história em crise”, p. 236. Revista Mundos do Trabalho | vol. 7 | n. 13 | janeiro-junho de 2015 | p. 193-214 SARAH CALVI AMARAL SILVA de relações raciais, conforme indicam as quinze cartas trocadas entre 1936 e 1940. As correspondências incluem informes de Laytano sobre atividades de pesquisa, tratativas editoriais (Ramos dirigia a coleção Biblioteca de Divulgação Cientíica da Companhia Editora Nacional), elogios ao “mestre da africanologia”, entre outros assuntos. Na primeira carta, o “humilde discípulo” fala de um ensaio publicado pela Editora Globo: “Ousei, sem lhe consultar, dedicar meu modesto ensaio: ‘Negros sul-rio-grandenses’. Livro que não tem pretensões cientíicas, mas que representa [...] um esforço para consolidação da questão africana na pampa brasileira”.38 Em outra correspondência, Laytano menciona “três pequenos trabalhos” que pretendia apresentar ao II Congresso Afro-Brasileiro: “A luta entre o negro e o alemão na sociedade gaúcha do século XIX’ – ‘Aproveitamento da força guerreira do africano nas conquistas militares do Rio Grande’ e ‘Sobrevivência negra num tema do folclore pampiano”.39 A proposta levada ao II Congresso foi O negro e o espírito guerreiro nas origens do Rio Grande do Sul. Outra situação que demonstra a articulação de Laytano, consiste na concessão de honrarias a Ramos: “A Sociedade de Investigações Africanistas e Ameríndias é a única a felicitar-se com o seu presidente honorário, título que lhe foi conferido unanimemente pela nossa modesta corporação [...]”.40 Ao lado de outras entidades, Edison mencionou a Sociedade fundada em Porto Alegre na abertura do evento soteropolitano.41 Arthur Ramos citou a honraria em As Culturas Negras no Novo Mundo42, o que não passaria despercebido por Laytano: “[...] sinto- me no dever de confessar todo o meu mais puro reconhecimento pela citação 200 com que me honrou em seu livro [...] permita-me a honra de agradecer [...] aquela citação salvadora do deserto do silêncio nacional”.43 As redes de relações domésticas e transnacionais erigidas por Arthur Ramos e Dante de Laytano inluenciaram a elaboração das comunicações apresentadas ao II Congresso Afro-Brasileiro, nas quais lugares sociais especíicos foram designados a africanos e afrodescendentes. Ao lado das redes, devem ser consideradas particularidades decorrentes de iliações institucionais e práticas proissionais que ajudaram a conformar interpretações acerca da formação histórica, social e cultural do Brasil. Vejamos como Arthur Ramos debruçou-se sobre a problemática. O lugar dos negros e das culturas africanas após a aculturação Culturas Negras: problemas de aculturação no Brasil apresenta considerações sobre traços de culturas africanas que teriam sobrevivido no país, estabelecidos conforme a procedência desde África, a língua e a religião.44 No texto, percebe-se a justaposição das muitas faces das obras de Arthur Ramos, concebidas entre a 38 FBN – Arquivo Arthur Ramos - I – 35, 32, 1610 – Carta de Dante de Laytano a Arthur Ramos. Porto Alegre, 10 de agosto de 1936. 39 FBN – Arquivo Arthur Ramos - I – 35, 32, 1612 – Carta de Dante de Laytano a Arthur Ramos. Porto Alegre, 22 de dezembro de 1936. 40 FBN – Arquivo Arthur Ramos - I – 35, 32, 1613 – Carta de Dante de Laytano a Arthur Ramos. Porto Alegre, 2 de março de 1937. 41 CARNEIRO; FERRAZ; GUIMARÃES. “Congresso Afro-Brasileiro da Bahia”. In: O negro no Brasil, p. 9. 42 RAMOS. As Culturas Negras no Novo Mundo, p. 249. 43 FBN – Arquivo Arthur Ramos - I – 35, 32, 1617 – Carta de Dante de Laytano a Arthur Ramos. Porto Alegre, 8 de novembro de 1937. 44 RAMOS, Arthur. “Culturas Negras: problemas de aculturação no Brasil”. In: O negro no Brasil, p. 147-157. Revista Mundos do Trabalho | vol. 7 | n. 13 | janeiro-junho de 2015 | p. 193-214 AFRICANOS E AFRODESCENDENTES NAS ORIGENS DO BRASIL Psicologia Social e a Antropologia Cultural. Para compreender a comunicação do autor, é preciso acompanhar parte de seu percurso intelectual e proissional. Natural de Alagoas, Arthur Ramos (1903-1949) ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia nos anos 20 apresentando, em 1926, uma tese sobre a Loucura Primitiva, com a qual concluiria sua formação.45 Nesse período, fora livre docente na Faculdade, psiquiatra e legista do Manicômio Judiciário do Instituto Nina Rodrigues. No Instituto que, após sua entrada, passou a se chamar Sociedade de Medicina Legal, Criminologia e Psiquiatria da Bahia, Ramos instalou uma seção dedicada à psicanálise.46 No Hospital São João de Deus, exerceria a perícia em casos judiciais. Na década de 20, o enfoque patológico dos estudos sobre as raças realizados na Faculdade de Medicina, baseado na Antropologia Física, era deslocado do diagnóstico de degeneração para a regeneração.47 Sob essa perspectiva, a noção de “eugenia” adentrava os debates médicos, propondo soluções para o problema que afetava o progresso da nação, entendido como decorrente da miscigenação.48 Além disso, as referências a Freud em periódicos dedicados à psiquiatria na Bahia, são um exemplo das transformações em curso, no momento em que Ramos frequentava a Faculdade de Medicina.49 Já nos anos 30, a eugenia seria explicada sob uma roupagem mais culturalista do que racial biológica, apesar de o darwinismo social ter permanecido em pauta entre os médicos. Com o acúmulo dessas experiências e conhecimentos, em 1933, Arthur Ramos migra para o Rio de Janeiro onde, como membro da Escola Nina Rodrigues, iria reorientar suas preocupações médicas para o estudo das culturas negras. Em 1934, 201 é nomeado chefe do Serviço de Ortofrenia e Higiene Mental da Secretaria Geral de Educação e Cultura do Distrito Federal, onde desenvolveu pesquisas sobre a criança- problema que, assim como a raça negra e mestiça, tais como deinidas por Nina Rodrigues, portaria comportamentos desviantes.50 Para tanto, Ramos empregou a noção de pensamento pré-lógico, do etnólogo Lucien Lévy-Bruhl, em investigações que pretendiam elucidar a estrutura mental das crianças. Esta seria caracterizada pelo pensamento patológico-primitivo, anterior à consciência adulta e civilizada do eu, semelhante à dos esquizofrênicos e “primitivos”, demonstrando uma leitura da psicanálise enquanto uma teoria da ‘civilização’ ou ‘educação’ individual.51 O pensamento pré-lógico fora atribuído a praticantes de religiões de matriz africana em O Negro Brasileiro (1934), cuja proposta era estudar as culturas negras do Brasil, através do “sentimento religioso” das “tribos” africanas.52 Nesse sentido, elementos da natureza e objetos portadores de forças sobrenaturais e signiicações especiais seriam próprios a representações de mentes pré-lógicas.53 O “fetichismo” era assim entendido como uma manifestação cultural resistente às religiosidades mais soisticadas e lógicas, sendo os “primitivos” incapazes de compreender sua organização. O caminho para superar as “sobrevivências” da herança africana na religiosidade seria a educação de praticantes de candomblés, 45 As informações biográicas de Ramos foram retiradas, principalmente, de: ALMEIDA, “Dilemas da institucionalização das Ciências Sociais no Rio de Janeiro”; CORRÊA, As ilusões da liberdade. 46 CORRÊA. As ilusões da liberdade, p. 230. 47 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil: 1870- 1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 215-217. 48 SCHWARCZ. O espetáculo das raças, p. 215-216. 49 SCHWARCZ. O espetáculo das raças, p. 217. 50 CORRÊA. As ilusões da liberdade, p. 247. 51 DUARTE, Luiz Fernando Dias. “Arthur Ramos, Antropologia e Psicanálise no Brasil”. In: Anais da Biblioteca Nacional: Seminário: Diários do Campo: Arthur Ramos, os Antropólogos e as Antropologias. v. 119, [1999]. Rio de Janeiro: A Biblioteca, 2004. 52 RAMOS, Arthur. O negro brasileiro: etnograia religiosa. v. 1. [1940]. Rio de Janeiro: Graphia, 2001. 53 RAMOS. O negro brasileiro, p. 235. Revista Mundos do Trabalho | vol. 7 | n. 13 | janeiro-junho de 2015 | p. 193-214 SARAH CALVI AMARAL SILVA xangôs e macumbas.54 Uma noção bastante distinta da Antropologia Cultural, já que, nesta última, a sobrevivência era o resultado da aculturação decorrida dos processos de contato, consistindo num fenômeno cultural e não, psicológico. Por outro lado, ao expor o trabalho realizado junto a “macumbas” e comunidades pobres do Rio de Janeiro, supostamente precisadas da intervenção do Estado, Ramos airmava não endossar a inferioridade do negro e de sua capacidade de civilização. Para o autor, as representações coletivas pré-lógicas existiriam “em qualquer tipo social atrasado em cultura [...] independente da questão antropológico-racial”, no sentido da Antropologia Física.55 O olhar lançado sobre essas comunidades permitiu ao autor o incremento de seus estudos das culturas negras, interpretadas à luz da psicanálise. Com a entrada de Ramos na UDF, suas atividades se voltariam para a pesquisa antropológica culturalista, materializada em As Culturas Negras no Novo Mundo (1937). Nesse trabalho, o autor localiza o Brasil no contexto do Novo Mundo, com base nas sobrevivências culturais africanas observadas na América, combinando as áreas de cultura deinidas por Melville Herskovits às teorias da Psicologia Social. A comunicação apresentada ao II Congresso Afro-Brasileiro relete este ponto de vista, na qual Ramos elogia o método histórico-cultural etnográico e ressalta a permanência de questões de psicologia social ainda não resolvidas. Assim, o autor destaca o conceito proposto pelo “organicista da cultura” Leo Frobenius: a cultura teria uma existência superindividual – a alma da cultura – como expressão de um tempo e de um lugar de civilização. É o que os norte- 202 americanos chamam o “foco cultural”, isto é, um processo psicossocial, de interinluência entre o indivíduo e o seu grupo de cultura. Interesses, atitudes, opiniões... só são compreendidos como expressão do indivíduo, dentro de uma área cultural. [...] O comportamento humano, em última análise, é um precipitado psicossocial, é a resultante da personalidade integrada na sua área cultural, sofrendo a inluência de seu foco de cultura, “penetrada” pela alma de cultura.56 A teoria de Frobenius consistia na delimitação de “círculos culturais” individuais e territorialmente localizados. Cada cultura neles inscrita se desenvolveria conforme seu ritmo e representaria um organismo absoluto semelhante aos seres vivos que atravessavam o nascimento, a idade infantil, viril e senil.57 Apesar de airmar a importância de Frobenius, por ter estabelecido as primeiras divisões territoriais das culturas africanas, Ramos buscou na “Ciência Social” (Psicologia Social e Antropologia) a superação do evolucionismo inscrito em certas noções de cultura. Em As Culturas Negras do Novo Mundoa, o lado de Lévy-Bruhl, os postulados de Frobenius são vistos como uma alternativa ao “evolucionismo clássico”, também denominado método histórico, que colocou numa só escala todas as culturas materiais e imateriais que explicariam a história da humanidade, iniciando pelos “primitivos” e culminando nas sociedades “civilizadas”.58 Os padrões modelares 54 RAMOS. O negro brasileiro, p. 236. 55 RAMOS. O negro brasileiro, p. 32. 56 RAMOS. “Culturas Negras: problemas de aculturação no Brasil”, p. 151. 57 RAMOS. As culturas negras no Novo Mundo, p. 46. 58 Ramos refere-se, especialmente, ao britânico Edward Tylor que, no inal do século XIX, concebeu o conceito de cultura, por considerá-lo uma palavra neutra que permitiria pensar a unidade dos seres humanos, rejeitada por vertentes da Antropologia Física. Em contrapartida, o conceito de Tylor fora elaborado tendo em vista a noção de civilização, cuja operacionalidade seria perdida se aplicada a “primitivos” não plenamente civilizados, incapazes de produzir culturas materiais soisticadas. As culturas produzidas por Revista Mundos do Trabalho | vol. 7 | n. 13 | janeiro-junho de 2015 | p. 193-214
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