Universidade de Lisboa Faculdade de Letras Departamento de História O municipalismo no pensamento de Alexandre Herculano (1834-1859) João Pedro Branco Orientador: Prof. Doutor Sérgio Campos Matos Mestrado em Cultura e Formação Autárquica 2007 Agradecimentos Uma primeira palavra para o Professor Sérgio Campos Matos, pela disponibilidade que sempre demonstrou, tanto ao longo do Mestrado como da própria Licenciatura, pelo incentivo permanente e pelas várias sugestões que foi lançando ao longo da elaboração da tese. Foi um verdadeiro Orientador, na real acepção da palavra. Aos meus pais, aos quais devo todo o meu percurso (académico e não só), e à minha irmã, sem os quais não seria possível todo este trabalho. E, por fim (os últimos são sempre os primeiros), em especial à Paula. 2 Resumo Num contexto de redefinição da importância dos poderes locais e regionais, e particularmente numa altura em que a própria noção de poder central se encontra em fase de reajustamento a realidades supranacionais, importa não esquecer que estas mesmas problemáticas têm sido alvo de abordagens várias ao longo da História contemporânea. Uma dessas abordagens, justamente, foi feita por Alexandre Herculano (1810--1877), em meados do século XIX Incidindo em temas como a descentralização administrativa (de forma mais abrangente) e a proposta de organização dos poderes municipais apresentada por Alexandre Herculano (de forma mais específica), o presente trabalho pretende tentar contribuir para a compreensão do debate centralização-descentralização, no contexto da consolidação do regime liberal em Portugal. Partindo da análise dos modelos administrativos em confronto em Portugal, no período em estudo (1834-1859), analisámos o contributo do pensamento social e político de Alexandre Herculano e das suas ideias de municipalismo neste processo, a forma como o historiador oitocentista fundamenta a sua proposta em termos históricos e políticos, e qual o seu impacto público. As conclusões a que chegámos mostram que Herculano, liberal que vê a centralização e qualquer modelo uniformizador como sinónimos de tirania, propõe uma solução apoiada nos concelhos enquanto núcleos descentralizados. Estes seriam a base para um primeiro desenvolvimento moral dos cidadãos, precursor do necessário desenvolvimento material. Neste aspecto, as suas concepções chocam com as de uma geração mais pragmática, que vê o desenvolvimento material imediato como indispensável, dando origem a um debate público em meados de 1853, com a oposição mais visível de António Pedro Lopes de Mendonça (1826-1865). Não obstante a aplicação política do modelo defendido pela corrente apoiante deste último, as ideias municipalistas do historiador oitocentista terão ainda assim impacto na definição de posíções de vários intelectuais contemporâneos. Palavras-chave: Alexandre Herculano; poder local; descentralização administrativa; municipalismo; centralização-descentralização. 3 Abstract In a time of redefinition of the importance of the local and regional powers, and particularly in a circumstance in which the notion itself of central power is readjusting itself to a supranational reality, it’s important not to forget that these same topics have been an object of different approaches along the most recent History. One of these approaches is offered by Alexandre Herculano (1810-1877), in the middle of the Portuguese XIX century. The present work intends to contribute to the understanding of the debate which opposed the supporters of centralization and those of decentralization, during the consolidation of the liberal regime in Portugal. Starting from a brief analysis of the administrative models in confrontation in Portugal, in the above period (1834-1859), we analysed the contributions of the political and social thought of Alexandre Herculano and of his municipalist thesis to the ongoing debate, the historical and political grounds of that proposal, and its public impact. The conclusions that we reached show that Herculano suggested municipalities as the foundations for a moral development of citizens, which he saw as a necessary basis for the indispensable material development. In this aspect, his conceptions clashed with those of a more pragmatic generation that saw immediate material development as essential, originating a public discussion during 1853, lead by António Pedro Lopes de Mendonça (1826-1865). Even though it was the political model that Mendonça defended which succeeded, the municipalist thesis of the XIX century Portuguese historian still had an important influence in the administrative thought of several other contemporary intellectuals. Keywords: Alexandre Herculano; local power; administrative decentralization; municipalism; centralization-decentralization. 4 Índice I. Introdução 7 II. Contexto histórico 2.1 O período de 1834-1859 11 2.2 A evolução administrativa até à Regeneração: oscilação de modelos 18 2.3 Centralizar ou descentralizar? 23 2.4 Da Regeneração a Vale e Lobos: ilusão e desencanto de Alexandre Herculano 27 III. O municipalismo no pensamento de Alexandre Herculano 3.1 O debate em torno das origens do município medieval 31 3.1.1 A posição de Herculano e o estado actual da questão 31 3.1.2 Especificidades da organização concelhia medieval 37 3.2 Liberalismo e História em Alexandre Herculano 41 3.2.1 História e municipalismo 42 3.2.2 As fontes de Herculano para o municipalismo 44 3.3. A fundamentação histórica do municipalismo na História de Portugal (1849-1853) 60 3.4 Princípios políticos: a Carta aos eleitores do círculo de Sintra (1858) 66 IV. A polémica com Lopes de Mendonça e os seus prolongamentos (1853) 4.1 Argumentos de Herculano e de Lopes de Mendonça 72 4.1.1 Primeira fase da polémica: os caminhos-de-ferro e a autonomia nacional 72 4.1.2 Centralização vs. descentralização 76 4.2 Ecos da polémica na imprensa contemporânea 80 4.3 Reflexões posteriores 93 4.4 A «contradição» política dos modelos opostos: centralização «progressista» vs. descentralização «conservadora» 101 V. Notas finais 105 VI. Fontes e Bibliografia 111 5 «Em nosso entender, a história dos concelhos é em Portugal, bem como no resto da Espanha, um estudo importante, uma lição altamente profícua para o futuro (…).» Alexandre Herculano, História de Portugal (ed. e notas de José Mattoso), vol. III, Lisboa, 1980, p. 314. 6 I. Introdução A problemática da organização dos poderes a nível local em Portugal tem sido foco de várias abordagens ao longo da História mais recente, com especial incidência em momentos de reformulação dos princípios políticos vigentes, como o foi a instauração do Liberalismo, em meados do século XIX, ou a primeira experiência republicana em inícios do século XX. Na actualidade, reavivado pelo período do pós- -25 de Abril e pela experiência da integração na União Europeia, verificamos que ressurge o debate sobre a descentralização administrativa, em geral, e sobre o poder local, em particular. Questões mais transversais como a da regionalização, preconizada na Constituição de 1976 mas nunca aplicada (apesar de equivocadamente debatida em 1998), ou mais estruturais, como a discussão sobre o reforço dos poderes dos executivos camarários de finais de 2007, mostram que este é um tema que se mantém em aberto. Em meados do século XIX, a definição do modelo de organização administrativa entronca-se com a própria aplicação dos novos princípios políticos do Estado Liberal. O modo como este regula os poderes a nível regional e local é demonstrativo não só de uma necessidade de mudança em relação ao modelo absolutista de finais do século XVIII e princípios de XIX que o precede, mas também das próprias dificuldades que essa mesma mudança levanta às tentativas de impor uma dinâmica de enquadramento social, político e económico, radicalmente diferente daqueles existentes no Antigo Regime. Fazendo uma abordagem geral das reformas levadas a cabo durante o Liberalismo português, numa perspectiva problematizante, é notória uma oscilação entre momentos de maior abertura política e outros mais próximos do conservadorismo. As primeiras grandes questões com que nos deparámos na organização deste estudo dizem respeito às formas de que se revestiriam estas oscilações, articuladas com o debate sempre presente entre centralização e descentralização. Que respostas possíveis teriam sido avançadas pelos principais intervenientes? Várias soluções foram propostas durante este período político. Na flutuação entre momentos de maior ou menor centralização estatal, diferentes modelos ganham adeptos, sendo que vários tendem a sustentar a necessidade de uma maior autonomia 7 local. A ligação, em especial a ideológica, da centralização com o Antigo Regime, dificultou a necessidade de uniformização levada a cabo pelo Liberalismo, surgindo em diversas propostas o aumento do grau de autonomia do poder local como uma das bases para a desejada descentralização administrativa. É neste contexto que deve ser encarado o conceito de «municipalismo». Mas qual o sentido – político, essencialmente – do termo no século XIX? São praticamente inexistentes as definições encontradas, reduzindo-se, em geral, a uma identificação com uma tipologia de sistema administrativo. Pinheiro Chagas, por exemplo, no seu Dicionário popular histórico, geográfico, mitológico, biográfico, artístico, bibliográfico e literário (1876-1886) não apresenta qualquer entrada para o conceito (acontecendo o mesmo, aliás, para os termos «concelho» e «município»). A primeira definição mais fundamentada surgirá apenas em 1910, num estudo administrativo de António Lino Neto1. Historiador, jornalista, poeta, romancista e, na última fase da sua vida, agricultor voltado para a inovação, Alexandre Herculano de Carvalho Araújo (1810-1877) integrará este debate de forma viva, no seu pensamento histórico e político. Nos anos que balizam este estudo (1834 a 1859), correspondentes sensivelmente ao período do seu maior envolvimento político até à saída de Lisboa para Vale de Lobos e (embora de forma menos marcada), até ao final da sua vida, problematizará de forma crítica a centralização político-administrativa e apresentará propostas para a obstar. Quase sempre inconformado com o rumo do regime liberal, intervirá na vida política de forma marcante entre o final da Guerra Civil e os primeiros anos da Regeneração. Nesse período, tentará sempre conciliar essa sua insatisfação com uma postura de respeito pelas instituições e pelo poder. Tal verifica-se, por exemplo, nos moldes das suas críticas ao Setembrismo, em 1836, quando este recusa a Carta e retoma a Constituição de 1822, ou na forma como, mais tarde, apoiará a Constituição de 1838 por achar que a mesma era importante para a pacificação política do país. O mesmo se 1 «Por municipalismo entendemos nós o conjunto de todas as organizações locais que têm como função administrar os interesses das respectivas circunscrições territoriais, mais ou menos determinadas, e segundo formas de indicação dos seus próprios habitantes. De municipalismo costuma igualmente designar-se a tendência para reconhecer ou instituir aquelas organizações.», António Lino Neto, A questão administrativa (o municipalismo em Portugal), Lisboa, 1910. p. 48. 8 pode dizer do seu alheamento da Revolução de 1846, por se considerar sob a alçada da Casa Real. Durante os anos que delimitam este estudo publica obras tão importantes como A Voz do Profeta (1836), O Bobo (1843), ou o Eurico (1844); edita, dirige ou colabora em periódicos como O Panorama (1837), O País (1851) ou O Português (1853); produz estudos marcantes como as Cartas para a História de Portugal (1842) a História de Portugal (1846-1853) e a História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1853- 1859), e inicia a publicação dos Portugaliae Monumenta Histórica (1854), sem esquecer os inúmeros artigos dispersos por vários periódicos seus contemporâneos. A maioria destes estudos, especialmente os de pendor historiográfico e político, deixam entrever essa mesma insatisfação, quer através de lúcidas críticas às condições políticas, económicas e sociais do país, quer pela análise, em alguns pontos mitificada, que fará do passado nacional, por oposição ao presente. Coincide com essa decepção face à direcção seguida pelo Liberalismo português (mais distante ainda, após a Regeneração, do que idealizara) o seu primeiro retiro para Vale de Lobos em 1859, marcando um afastamento progressivo da vida política, limite cronológico final do nosso trabalho. Como integrar então o pensamento de Alexandre Herculano no contexto acima referido? Alguns estudos serviram de ponto de partida para a nossa tentativa de análise, no sentido em que, não existindo um trabalho de fundo sobre o municipalismo, existem, todavia, boas sínteses sobre o debate administrativo que decorre durante o período em estudo.2 2 Em primeiro lugar é de salientar o estudo de Maria Manuela Tavares Ribeiro, «Centralização- Descentralização. Uma polémica nos meados do século XIX» (1990), pela síntese da questão que envolve Herculano e Lopes de Mendonça em 1853 e pelas várias perspectivas que abre em relação a esta problemática. A um nível mais geral, sobretudo em termos de análise da concepção administrativa liberal, modelos de organização e de funcionamento, são também de referir os estudos da autoria de António Pedro Manique sobre a implementação das reformas administrativas de Mouzinho da Silveira (dos quais salientamos Mouzinho da Silveira: Reforma e Administração Pública, 1989), Luís Espinha da Silveira («Estado liberal e centralização: reexame de um tema» e Território e Poder. Nas origens do Estado contemporâneo em Portugal, ambos de 1997) e, numa perspectiva mais global, a síntese de César Oliveira na História dos Municípios e do Poder Local (1996). Em termos de contexto político-administrativo partimos, por ordem cronológica de publicação, dos estudos de Maria Manuela Tavares Ribeiro, «A nova ordem liberal (1834-1851): reformas, dificuldades e sobressaltos político-militares» e António José Telo, «O modelo político e económico da Regeneração e do Fontismo (1851-1890)», na História de Portugal dirigida por João Medina (1993); Estudos de História da Administração Pública, de Marcelo Caetano (1994; org. e pref. de Diogo Freitas do Amaral); 9 Face a este enquadramento, a questão inicial que se nos coloca será tentar compreender que soluções propõe um dos grandes teóricos do Liberalismo português, no período em causa, para o debate acima referido entre centralização e descentralização. E, mais especificamente, qual o lugar de Alexandre Herculano e da sua proposta municipalista nesse contexto? De que forma fundamenta o autor, histórica e politicamente, essa sua concepção político-administrativa? Que recepção terá essa formulação nos seus contemporâneos? Para tentar responder a estas questões tentaremos sistematizar o pensamento de Herculano na sua dimensão municipalista, contextualizando-o no momento histórico específico em que é desenvolvido, recorrendo aos textos por ele produzidos durante esse período e procurando, igualmente, perceber que influências se fizeram sentir na sua formulação. Finalmente, dentro do horizonte temporal estabelecido, analisaremos com mais detalhe três momentos concretos, directamente ligados com o debate acerca da descentralização e com a definição de municipalismo: a fundamentação histórica do conceito levada a cabo no volume IV da História de Portugal (1853); a argumentação política, aprofundada entre 1851 e 1858, que culminará na Carta aos eleitores do círculo de Sintra (1858); e, finalmente, a polémica jornalística com Lopes de Mendonça, em 1853 nas páginas d’O Português, aplicação prática do seu ideário político-administrativo, por oposição ao da nova geração Regeneradora. Mário Reis Marques, «A evolução da organização administrativa no Estado Liberal», na História de Portugal dirigida por José Mattoso (1994); e de A.H de Oliveira Marques, «Organização administrativa e política», na Nova História de Portugal (2001), como fontes iniciais para estudos mais específicos. Sobre o municipalismo em si, como já referimos, poucos estudos de fundo existem, especialmente para o período em estudo. São de referenciar, de qualquer forma, em primeiro lugar os artigos «Concelhos», do Dicionário de História de Portugal, de Torquato Sousa Soares (1963) e «O municipalismo em Portugal: perspectiva histórica» da autoria de Humberto Baquero Moreno (1983); os vários estudos do congresso O município português (sécs. XIX-XX), organizado por Aires de Jesus Ferreira Pinto (1996); e os artigos de Fernando Catroga, «O poder político-administrativo das paróquias em Portugal» (2004) e «Natureza e História na fundamentação do municipalismo. Da revolução liberal ao Estado Novo – uma síntese» (2005). Finalmente, sobre a figura de Alexandre Herculano, inúmeras obras foram escritas desde a sua morte, em 1877. Como ponto de partida para o aprofundamento das várias questões a tratar neste trabalho, privilegiámos quatro obras fundamentais: para a síntese dos principais temas do seu pensamento social e político, os estudos As ideias políticas e sociais de Alexandre Herculano de Joaquim Barradas de Carvalho (1971; 1.ªed. 1949), Herculano e o Liberalismo em Portugal de António José Saraiva (1977; 1.ª ed. 1949) e Alexandre Herculano: polémica e mensagem, de Jorge Borges de Macedo (1980); e, para a compreensão da recepção e influência dessas mesmas ideias na geração que se lhe segue, a obra Herculano e a Geração de 70 de João Medina (1977). 10
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