O livro de Tiradentes KENNETH MAXWELL fundou o Programa de Estudos Brasileiros da Universidade Harvard, onde leciona história. Anteriormente, foi diretor do Programa para a América Latina no Conselho de Relações Internacionais em Nova York e editor de assuntos latino-americanos da Foreign Affairs Magazine. Lecionou na Universidade Columbia e é autor, entre outras obras, de A devassa da Devassa, Brazil e Portugal 1750-1808 e Pombal: Paradoxo do Iluminismo. GABRIEL DE AVILEZ ROCHA é bacharel em letras pela Universidade Harvard e doutorando em história na Universidade de Nova York, especialista em história do direito do período colonial ibero-americano e em história ecológica. Sua tese investiga os sistemas de escravidão e as economias de subsistência das ilhas atlânticas nos séculos XV e XVI, no contexto geopolítico da consolidação dos impérios português e espanhol. BRUNO CARVALHO é professor assistente no departamento de Espanhol e Português da Universidade Princeton e ph.D. pela Universidade Harvard. É autor de Porous City: A Cultural History of Rio de Janeiro (2013), escreve artigos sobre literatura, estudos urbanos, cinema e outros assuntos. Atualmente prepara um livro sobre poesia, raça e cidades brasileiras no século XVIII. JOHN HUFFMAN é doutor em história da América do Norte durante o século XVIII na Universidade Harvard e editor assistente da revista The Papers of Benjamin Franklin da Universidade Yale. Sua dissertação, sob orientação do professor Joyce Chaplin, trata da história de documentos de identificação e identidade na Revolução Americana. HELOÍSA MURGEL STARLING é professora titular de história do Brasil da Universidade Federal de Minas Gerais. Autora dos livros Os senhores das gerais: Os novos inconfidentes e o golpe de 1964, Lembranças do Brasil — Teoria política, história e ficção em Grande sertão: veredas e Uma pátria paratodos: Chico Buarque e as raízes do Brasil. Foi vice-reitora da UFMG (2006-10), é coordenadora do Projeto República: núcleo de pesquisa, documentação e memória (UFMG) e assessora da Comissão Nacional da Verdade. JÚNIA FERREIRA FURTADO graduou-se pela UFMG, onde é professora titular de história moderna. É mestre e doutora pela USP e pós-doutora pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e pela Universidade Princeton, da qual foi professora visitante em 2001. Tem vários artigos e livros publicados, entre eles o premiado Chica da Silva e o contratador dos diamantes: O outro lado do mito, publicado pela Companhia das Letras. Sumário Uma história atlântica — Kenneth Maxwell O conteúdo do Recueil: problemas de tradução e representação — Bruno Carvalho, John Huffman e Gabriel de Avilez Rocha República e sedição na Inconfidência Mineira: leituras do Recueil por uma sociedade de pensamento — Júnia Ferreira Furtado e Heloísa Murgel Starling RECUEIL — COLETÂNEA DAS LEIS CONSTITUTIVAS DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA Notas Bibliografia Cronologia Créditos das imagens Praça principal de Vila Rica no século XVIII, com o Palácio do Governo e uma companhia de milícias apresentando armas. Uma história atlântica* KENNETH MAXWELL Introdução Esta é a história de um livro. É a história de uma malograda rebelião republicana e anticolonialista em Minas Gerais. É a história de como os conspiradores de Minas se inspiraram na bem-sucedida guerra americana de independência da Grã-Bretanha e nos primeiros documentos constitucionais dos Estados Unidos da América. É a história do fracasso da tentativa, por parte dos conspiradores, de acabar com o domínio português no Brasil. É uma história atlântica, que envolve o Brasil, a América do Norte, a Europa e sua interação, entre 1776-8 e 1789-92. É uma história de representações intelectuais e também de realidade histórica. É uma história da complexa interação transatlântica de representações intelectuais e realidade e suas consequências para o desenvolvimento histórico do Brasil. O livro em questão, que constitui também o cerne desta história, é a coletânea de leis constitucionais “das colônias inglesas confederadas sob o nome de Estados Unidos da América Setentrional” publicada em Paris, em francês, em 1778, e dedicada a Benjamin Franklin. O Recueil des loix constitutives des États- Unis de l’Amérique continha os documentos constitucionais fundadores dos Estados Unidos da América: a Declaração de Independência, uma primeira redação dos Artigos de Confederação, um censo das colônias inglesas de 1775, uma lei de navegação, o grau de doutor honoris causa concedido ao general George Washington pela Universidade Harvard e as Constituições de seis dos treze Estados originais americanos: Pensilvânia, Nova Jersey, Delaware, Maryland, Virgínia e Carolina do Sul; traz ainda documentos relativos à Carolina do Sul e Boston. Esta é uma história atlântica porque o Recueil foi usado pelos conspiradores de Minas quando tramavam um levante armado contra Portugal em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Os conspiradores viram a bem-sucedida Revolução Americana e os textos constitucionais norte-americanos como modelos do que eles queriam realizar no Brasil. Foi essa conexão que enervou as autoridades portuguesas quando a conspiração foi descoberta em 1789, principalmente quando se revelou que os revoltosos dispunham dos textos constitucionais norte- americanos reunidos no Recueil e os discutiam entre si. Em 10 de maio de 1789, Joaquim José da Silva Xavier, oficial de baixa patente das forças armadas regulares de Minas Gerais, alferes do regimento militar dos Dragões de Minas, foi preso no Rio de Janeiro, por ordem do vice-rei, por soldados portugueses. O alferes Silva Xavier é mais conhecido pela alcunha de Tiradentes. Em 12 de junho de 1789, em Vila Rica, atualmente Ouro Preto, então capital da capitania de Minas Gerais, o desembargador Tomás Antônio Gonzaga, o tenente-coronel Inácio José de Alvarenga Peixoto e o padre Carlos Correa de Toledo — todos líderes importantes da conspiração de Minas — também foram presos por ordem do visconde de Barbacena, governador de Minas Gerais. Eles foram imediatamente enviados para o Rio de Janeiro, sob escolta armada. Dois meses antes, em 14 de março de 1789, o coronel Silvério dos Reis denunciara a conspiração mineira. Ele fez a denúncia pessoalmente ao visconde de Barbacena, em Cachoeira do Campo, no sítio do governador, situado quatro léguas a nordeste de Vila Rica. Em 25 de março, Barbacena escreveu secretamente ao vice-rei do Brasil, Luís de Vasconcelos e Sousa, informando-o da conspiração. Barbacena se sentiu perigosamente exposto, principalmente por causa do envolvimento de oficiais de alta patente dos Dragões de Minas no movimento. Ele aproveitou o mês entre a prisão de Tiradentes no Rio de Janeiro, em 10 de maio, e a prisão dos líderes da conspiração em Minas Gerais, em 12 de junho, para fortalecer o destacamento português em Minas, e ganhar tempo para o silencioso deslocamento do Rio de Janeiro para Vila Rica de um esquadrão de trezentos cavalarianos da guarda pessoal do vice-rei, que chegou em 24 de junho, e duzentos membros da infantaria dos regimentos portugueses de Moura e Bragança, que chegaram a 3 de julho de 1789. Realizaram-se no Brasil, em 1789 e 1790, duas “devassas”, tribunais especiais secretos de inquirição, para investigar a conspiração de Minas. Essas devassas eram uma série de interrogatórios judiciais conduzidos por diferentes magistrados indicados pelo vice-rei do Brasil e pelo governador de Minas. Em 1791, mais uma devassa foi conduzida no Rio de Janeiro por juízes designados para um tribunal coletivo e ambulante, ou alçada, enviado de Lisboa. A primeira devassa foi ordenada pelo vice-rei no Rio de Janeiro em 7 de maio, quando ele indicou o desembargador José Pedro Machado Coelho Torres, da alta corte do Rio de Janeiro, para conduzir a investigação, e o ouvidor do Rio de Janeiro, Marcelo Pereira Cleto, para atuar como escrivão. A carta de denúncia que Silvério dos Reis escrevera dois dias antes por recomendação do vice-rei constituía o corpus delicti. Uma segunda devassa foi instituída por Barbacena em 12 de junho de 1789 em Vila Rica, usando como seu corpus delicti a carta de denúncia escrita para ele em Minas Gerais por Silvério dos Reis antes da partida deste para o Rio de Janeiro. Barbacena nomeou o ouvidor de Vila Rica, Pedro José de Araújo Saldanha, para conduzir a devassa de Minas, e o ouvidor de Sabará, José Caetano César Manitti, para atuar como escrivão. Fez isso depois de saber da decisão do vice- rei de ordenar uma devassa no Rio de Janeiro. Anteriormente, ele recomendara que o assunto fosse tratado sem uma investigação legal formal e que os implicados na conspiração de Minas fossem expulsos de Minas Gerais e do Brasil “sem grande publicidade […], dando a entender cauza ou culpa diversa, ou não dizendo o porquê”. Mas Barbacena enganou-se no que diz respeito à reação de seu tio. O vice-rei fora membro da Casa de Suplicação em Lisboa, um dos tribunais mais importantes de Portugal. À diferença da maioria dos vice-reis do Brasil colonial, ele era um ex-desembargador. As autoridades portuguesas puderam esconder a conspiração de Minas da atenção internacional porque em 1789 o mundo acompanhava os dramáticos acontecimentos de Paris, onde a Revolução Francesa acabara de começar. Em 1789 a Grã-Bretanha e os Estados Unidos desejavam negociar um novo tratado comercial com Portugal. Por essa época os Estados Unidos já tinham rasgado os Artigos de Confederação. Uma nova Constituição foi proposta em 1787 e ratificada no ano seguinte depois de debates realizados em todo o país sobre poderes constitucionais, e de forma mais persistente e emblemática na coletânea de artigos O federalista, favorável à Constituição, publicada em meio aos debates de Nova York sobre a ratificação. Em 25 de setembro de 1789 aprovou-se uma Declaração de Direitos proposta por James Madison na Câmara dos Deputados. Essas emendas à Constituição dos Estados Unidos foram então enviadas aos Estados para ratificação, e o processo se encerrou em 15 de dezembro de 1791. Em 26 de agosto de 1789, a Assembleia Nacional da França aprovou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Esses acontecimentos nos Estados Unidos e na França tornaram obsoletos os Artigos de Confederação, o texto constitucional fundamental publicado no Recueil. Em 1791, a grande rebelião dos escravos, que terminou por triunfar, começou na colônia francesa de Santo Domingo (posteriormente nomeada de Haiti), tornando-se modelo e inspiração para escravos de outros lugares e uma ameaça à ordem estabelecida nas sociedades escravagistas em todas as Américas. Pouco antes de ser preso em 10 de maio de 1789 no Rio de Janeiro, ciente de que estava sendo seguido, Tiradentes entregou seu exemplar do Recueil a Francisco Xavier Machado, porta-estandarte dos Dragões de Minas, para que este o levasse de volta a Minas Gerais. Em Vila Rica, Xavier Machado entregou o Recueil aos agentes do governador de Minas. O exemplar constituiu a base para uma urgente investigação separada da devassa de Minas. Foi esse exemplar do Recueil que se tornou conhecido como o “Livro de Tiradentes”. Atualmente é um dos documentos mais importantes constantes da coleção do Museu da Inconfidência, em Ouro Preto. É o texto aqui traduzido para o português. Mas como o Recueil, nessas circunstâncias, chegou ao Brasil? Como foi a história de sua publicação na França em 1778? Que papel teve entre os conspiradores de Minas em 1788 e início de 1789? De que maneira os textos constitucionais norte-americanos influenciaram os conspiradores de Minas? Por que os Estados Unidos não apoiaram a conspiração de Minas? Como a Revolução Francesa e a rebelião dos escravos de Santo Domingo, a ela relacionada, influenciaram o Brasil? O que aconteceu com o Recueil depois da execução por enforcamento de Tiradentes no Rio de Janeiro em 21 de abril de 1792? O Recueil na França Apesar da afirmação que se lê na folha de rosto de que o Recueil foi publicado na Filadélfia, na verdade foi publicado em Paris, com o apoio clandestino do governo francês. Foi dedicado a Benjamin Franklin, que chegara a Paris a 21 de dezembro de 1776 para representar o Congresso Continental e para conseguir o apoio da França em sua guerra de independência da Grã-Bretanha. A atribuição de nomes falsos para os lugares de publicação, e especialmente o da Filadélfia, quando se tratava de obras controversas, subversivas ou pirateadas, era prática comum entre editores ligados ao comércio de livros franceses no século XVIII, que visavam com isso ter alguma chance de fugir à responsabilidade e proteger-se da perseguição por parte do governo ou do detentor dos direitos autorais. Essa prática era bem conhecida, e um lugar de publicação no exterior normalmente era considerado falso. No caso do Recueil, isso ajudou o governo francês a evitar qualquer reconhecimento formal da
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