DADOS DE COPYRIGHT Sobre a obra: A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura. É expressamente proibida e totalmente repudiável a venda, aluguel, ou quaisquer uso comercial do presente conteúdo Sobre nós: O Le Livros e seus parceiros disponibilizam conteúdo de dominio publico e propriedade intelectual de forma totalmente gratuita, por acreditar que o conhecimento e a educação devem ser acessíveis e livres a toda e qualquer pessoa. Você pode encontrar mais obras em nosso site: LeLivros.site ou em qualquer um dos sites parceiros apresentados neste link. "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível." Copyright © Guilherme Fiuza, 2016 Copyright © Editora Planeta do Brasil, 2016 Todos os direitos reservados. Preparação: Maria Aiko Nishijima Revisão: Clara Diament e Huendel Viana Diagramação: Futura Capa: Mateus Valadares Imagem de capa: Rubens Chaves/Getty Imagens Adaptação para eBook: Hondana CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ F585i Fiuza, Guilherme O império do oprimido / Guilherme Fiuza. – 1. ed. – São Paulo : Planeta, 2016. ISBN 978-85-422-0842-9 1. Ficção brasileira. I. Título. CDD: 16- 869.3 36227 CDU: 821.134.3(81)-3 2016 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA PLANETA DO BRASIL LTDA. Rua Padre João Manuel, 100 – 21o andar Ed. Horsa II – Cerqueira César 01411-000 – São Paulo-SP www.planetadelivros.com.br [email protected] O príncipe e o ácaro O novo governo vai acabar com o fosso entre o palácio e o povo, declarou o presidente eleito, em seu primeiro pronunciamento após o resultado das urnas. Com número recorde de aparelhos de TV ligados, o país assistia à consagração do primeiro candidato de origem humilde a chegar ao poder. — Podem me cobrar: os pobres vão ter acesso ao palácio. Essa vai ser a cara do meu governo. No momento em que disse isso, o rosto do presidente eleito, que enchia a tela, transformou-se numa figura monstruosa. Luana deu um grito. Ouviu uma risada e virou-se: de pé, atrás do sofá, seu pai estava com o controle remoto na mão. — Essa vai ser a cara do governo dele? Que cara horrível, né? – disse o pai, ainda rindo. Ele tinha trocado o canal de notícias por um de ciência. O close do candidato vitorioso tinha dado lugar ao de um ácaro – que, ampliado dezenas de milhares de vezes, se tornava um monstro pré-histórico. Hipnotizada pelo noticiário e pela virada política do país, Luana não notara seu pai na sala. Primeiro se assustou, depois se revoltou: — Que brincadeira estúpida, pai! Que falta de respeito. No meio da entrevista... Volta pro meu canal! — Ah, Luana, que exagero... Essa entrevista vai ser repetida duzentas vezes. O jantar tá na mesa, estamos te chamando há dez minutos. — Não tô com fome. Depois de ver esse monstro asqueroso, então... Me dá o controle, por favor. O ácaro gigante – com falsas antenas brotando irregularmente de um casco sustentado por patas longas e cabeludas, em contraste com uma cabeça desproporcionalmente pequena e assemelhada a uma pinça de caranguejo – enfim sumiu. Mas o presidente eleito não reapareceu. O pai de Luana desligou a televisão. Aos vinte e cinco anos, ela estava cursando mestrado em Direito e tentando furar a redoma familiar. Dono do Maxwell Plaza, a maior rede hoteleira do país, Roberto Maxwell – ou Bob, apelido dado pelos adversários nacionalistas e incorporado pelo próprio – criara a filha única como uma aristocrata. Hora de jantar era hora de jantar. E naquela noite a TV lhe oferecia um menu indigesto: a cobertura ao vivo da sua própria derrota. Ele era o único grande empresário que não contribuíra para a campanha do candidato progressista – que agora ia mandar no país. Bob Maxwell não estava achando graça na ideia de jantar ouvindo a voz triunfal do seu adversário, que além de ganhar a eleição estava roubando sua filha da mesa. Luana acompanhou o pai à sala de jantar, segundo o jogo de sempre: ele ponderou que ela poderia assistir à cobertura após o jantar, pelas várias mídias disponíveis – e ela fora criada para acatar ponderações sensatas (ou que soassem sensatas). O fato era que seu príncipe tinha virado ácaro e ela tinha engolido um sapo. Mais um. Tomou seu lugar à mesa e vingou-se com seu silêncio – que costumava atingir os pais como uma arma paralisante. Ela sabia transformar o jantar da família em velório. Pelo menos isso. Bob tentou em vão puxar assuntos triviais. Lutava para que a sinfonia fúnebre dos talheres não se impusesse na vasta sala da mansão nos Jardins. A mãe de Luana ficava visivelmente perturbada quando a filha entrava em modo múmia. Isadora Maxwell era uma decoradora elegante que transmitira à filha sua beleza nórdica, mas quase desaparecia ao lado de Luana: a desvantagem em termos de personalidade e carisma era gritante, ainda que ambas tivessem um temperamento contido. Vendo que o marido não ia conseguir quebrar o gelo, Isadora fez sua tentativa, um tanto desajeitada pela falta de espontaneidade: — Luana, meu bem, o que você acha que vai mudar com o novo governo? — Tudo, mãe — desembuchou a filha, mais por irritação com a pergunta burocrática do que por vontade de respondê-la. — Vai mudar tudo, mesmo que nada disso te interesse realmente. Isadora fez menção de repreendê-la pela agressividade, mas Bob se antecipou, aproveitando a quebra do silêncio: — Certamente, filha. Toda mudança de governo traz mudanças para o país. Luana estava menos contida do que o normal, talvez porque o nível de irritação também estivesse acima do normal. — Só a sua hipocrisia não muda nunca, né, pai? Isadora começou a dizer que ela não podia se dirigir assim ao pai, mas Bob a conteve, e a filha prosseguiu: — Você sabe que não estou falando de mudança de governo. Estou falando de uma revolução! Luana não costumava ser tão incisiva com o pai. E a reação dele foi quase rude para os padrões da família. — Ok. Então é uma revolução. Me fale dessa revolução. Me explique o que é uma revolução! Havia uma carga inédita de agressividade na voz de Bob Maxwell, sempre polido. Devia ter a ver com o resultado da eleição, mas Luana sentiu o golpe. Em geral, o pai se impunha com firmeza e suavidade – e ela recuava. Agora a suavidade tinha desaparecido. E Luana não recuou: — Não preciso te explicar nada. Você vai ver. Ao vivo. A revolução tá na cara. Pela primeira vez não vão governar pra meia dúzia. Acabou. Foi a vez de os pais de Luana silenciarem. O discurso não combinava com a filha, que raramente falava de política – muito menos para afrontá-los. Isadora receou repreendê-la e perder de vez o controle da situação. Tentou um armistício: — Filha, seu pai só quer saber a sua opinião sobre a mudança de governo. Isso é uma conversa familiar, não um debate eleitoral. Luana manteve o dedo no gatilho: — Ok. Minha opinião é que o país vai se libertar. Já se libertou. Acabou a ditadura dos egoístas. Melhor mesmo deixar a TV no Discovery Channel, senão vocês vão ter que ver os catadores de papel no palácio. Foi interrompida por uma gargalhada do pai – desconcertante como toda gargalhada de alguém que não está achando graça: — Minha filha, o palácio é a sede do governo. E a única forma de um governo ajudar os pobres é governando direito, não promovendo desfile de bondade. — Entendo que isso não te comova, pai. Já entrou algum pobre nos seus hotéis? A provocação foi demais para Isadora, que desistiu da fachada conciliadora: — Chega, Luana! O que deu em você? Não estou te reconhecendo! — Normal, mãe. A gente só pode reconhecer quem a gente conhece. A estocada calou Isadora de vez. O golpe foi certeiro, bem no meio do seu maior medo: o de não saber se sabia quem era a filha. Luana não era uma rebelde, nem uma revoltada. Ia bem na formação em advocacia – carreira que casava com seu claro senso de justiça. Daí vinha também a sua lealdade aos pais, que sempre tinham feito o melhor por ela, com todas as facilidades que uma família rica pode proporcionar. Isadora começou a se preocupar quando leu num perfil da filha na internet o lema “facilidade não traz felicidade”. Na ocasião, perguntou-lhe de onde tirara a frase. — Da minha cabeça — respondeu Luana. — Da sua cabeça? Tem certeza?! — Não, não tenho. Talvez tenha sido do meu coração. Sei lá, foi de um dos dois. Luana ia cada vez menos às festas de seus amigos milionários. Recusara dois convites seguidos do namorado para viajar para Miami e Caribe. Formava com ele um casal vistoso, e o noivado já estava marcado – para grande excitação das duas famílias tradicionais paulistanas. Uma semana antes da data, a noiva cancelou tudo. Não falou com ninguém, apenas pediu à secretária da mãe para desmarcar com os trezentos convidados. A secretária comunicou o pedido a Isadora, que com o coração na boca foi interpelar a filha. Luana estava triste e tranquila. Sustentou sua decisão, para a perplexidade da mãe. — Mas o que aconteceu? Não é possível que você tenha deixado de gostar do seu namorado do dia pra noite! — Não deixei de gostar. Só não quero ficar noiva. — Mas que loucura! O que você quer da vida, Luana?! — Ah, mãe... Não faz pergunta difícil. Foi Bob quem tranquilizou a esposa. Liberal convicto, disse que Luana tinha direito de escolher. E que seria pior se arrepender mais tarde de não ter se arrependido a tempo – uma de suas frases de efeito.