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O Homem-Mulher PDF

153 Pages·2014·0.84 MB·Portuguese
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SÉRGIO SANT’ANNA O homem-mulher Contos Sumário 1. O homem-mulher 2. Lencinhos 3. Um retrato 4. Madonna 5. O conto maldito e o conto benfazejo 6. O rigor formal 7. As antenas da raça 8. Melancolia 9. Tubarões 10. Eles dois 11. Este quadro 12. História de amor 13. Clandestinos 14. Prosa 15. O corpo 16. O torcedor e a bailarina 17. Amor a Buda 18. Heavy metal 19. O homem-mulher II 1. O homem-mulher O nome dele era Adamastor Magalhães, mas ele preferia ser chamado de Fred Wilson, que era o nome que usava no grupo amador de teatro em que era ator, em Belém do Pará, cidade onde nascera e vivia. Para simplificar, as pessoas passaram a chamá-lo de Fred. Pode-se dizer que tudo começou quando ele fez o papel de Claire, em As criadas, de Jean Genet, em que, naturalmente, usava uma roupa feminina. E foi com o figurino de Claire que, num Carnaval, saiu num bloco de sujos. Mas é de supor que, morando numa família com mais duas irmãs, tenha experimentado vestidos escondido. E também é provável que, estando na adolescência, tenha sentido um verdadeiro frisson com o ventinho nas pernas e uma calcinha envolvendo seu pau, quando experimentou uma roupa da irmã pela primeira vez. Ele sentiu esse corpo feminino em si ou contra o seu. Teve de ajudar-se com a mão para gozar, mas a marca era indelével: homem e mulher num corpo só, que sente prazer. Talvez, se Adamastor tivesse o pai vivo, levasse uma tremenda bronca ou até uma surra ao ser flagrado usando um vestido. Mas não tinha mais esse pai e talvez o caso de Fred não se deva explicar pela psicologia: é a sua história, um modo de ser. Depois, havia esse lance mais livre dos blocos de Carnaval, e isso era mais do que comum em todas as cidades brasileiras, homens vestidos de mulher, caricaturalmente ou não, em grupos, blocos ou até sozinhos, e não havia quem os chamasse de veados por causa disso. Divertiam-se para valer, Adamastor e seus amigos. Mas uma experiência verdadeiramente significativa se deu numa segunda- feira de Carnaval em que Adamastor, de vestido, agora da irmã, pois suara no figurino, e uma garota fantasiada de odalisca, se enrabicharam, entrando num bloco de mãos dadas, relando aqui e ali e trocando beijos furtivos, procurando não ser vistos pelos pais da garota, de dezesseis anos (ele tinha vinte e cinco), que eram turistas de Goiânia, gente severa, tanto é que às dez horas levaram a mocinha para casa. Na terça-feira gorda, última noite dela na cidade, Adamastor voltou a sair de Claire, pois a roupa fora lavada e passada, comprou de um amigo um quarto de um frasco de lança-perfume e ele e a menina resolveram escapulir de toda a vigilância. Às oito horas foram seguindo um bloco, comportadinhos, até que passaram por uma rua mal iluminada, transversal à avenida em que o bloco desfilava, e que ia dar no cemitério menor da cidade. Aí, começaram a correr para conseguir chegar a um lugar ermo e poder cheirar o éter em paz. Mas, ao passar em frente ao cemitério, viram que havia um portão entreaberto e Adamastor puxou pela mão a garota, Dalva, e logo já estavam lá dentro, junto ao muro que cercava os túmulos, a capela e o resto todo. Medo só um pouquinho, de encontrar alguém que tivera a mesma ideia ou gente de algum velório. Mas não encontraram ninguém, nem o vigia, que devia estar misturado aos foliões, mesmo que fosse só para assistir. Porém, mais do que depressa se esconderam à entrada de um túmulo grande, desses de família rica. Ofegavam e a garota, safadinha, pegou a mão direita dele e a encostou no seio esquerdo dela. “Olha como meu coração está batendo.” Adamastor aproveitou a deixa e abriu dois botões da blusa da fantasia dela, afastou o sutiã e lançou ali um jato de éter. Ela se contraiu toda e disse “Que geladinho”, mas ele já estava aspirando entre os seios de Dalva e depois chupou um dos mamilos dela. Com o éter, Adamastor sentiu um zunido nos ouvidos e o mundo era aquela alucinação cheia de túmulos, estátuas e cruzes, tudo muito nítido e com sombras, porque era noite de lua cheia, e aquela garota vivinha da silva. “Agora é sua vez”, ele disse e levantou sua saia de Claire. Com a mão esquerda, encharcou a calcinha de lança-perfume. Puxando a cabeça da menina para baixo, fez com que ela se ajoelhasse aos seus pés e disse: “Cheira minha calcinha o mais forte que conseguir.” Dalva ficou doida demais, o mundo rodopiava e ela vendo a lua, os túmulos e os vaga-lumes e ouvindo o barulho dos grilos, ao mesmo tempo que tinha certo medo de estar perto dos mortos. Mas nem teve tempo direito de sentir esse medo, pois Adamastor baixou a calcinha que estava usando, enfiou o pau muito duro na boca da garota e falou “Chupa maciozinho”, e a menina fez direitinho, por pura intuição, porque era a primeira vez e, ainda doidona, excitadíssima com um pau aparecendo sob um vestido e uma calcinha, engoliu a porra e gostou, porque vinha dele e era assim um pecado imenso no cemitério. Não restava muito do lança e Adamastor olhou ao redor e puxou Dalva pelo braço até um túmulo branquinho e cheio de flores, com uma estátua que parecia vestida com roupa de santa, mártir, muito bonita. Dalva acomodou-se na estátua, que era inclinada, e ele levantou a saia dela, que já estava sem calcinha, e depois tirou a sua e foi lambendo a xoxota da menina, depois cheirou éter na barriga de Dalva, para não arder na boceta, e Dalva continuava doidaça, apesar de o efeito do lança-perfume já ter quase passado, mas ser lambida na boceta era melhor ainda, e ele, Adamastor, o danadinho, quando chegou ao clitóris de Dalva, só roçava com a ponta da língua, como as putas lhe haviam ensinado. Adamastor jogou lança de novo nas duas calcinhas fora dos corpos, mantendo a dele no rosto de Dalva, e tinha o controle de tudo e, tendo cheirado mais na calcinha dela, levantou o vestido da garota e entrou com tudo nela, que gritou de dor, abafada pela calcinha que ele pressionava contra seu rosto. Enquanto isso, lá embaixo, saía o sangue de virgem. Ela não chegou a gozar, por causa da dor, mas estava preenchida e exaltada. E ele, apesar de já ter gozado uma vez, gozou outra, e depois caiu para o lado, juntinho de Dalva sobre a santa, as respirações voltando ao normal. Em silêncio, eles ouviam o barulho dos grilos e do piar de corujas e viam os vaga-lumes e até as estrelas, e ouviam a banda tocando músicas de Carnaval, lá para os lados da praça: Quanto riso, oh, quanta alegria, mais de mil palhaços no salão, Arlequim está chorando pelo amor da Colombina, no meio da multidão… Adamastor tentou esguichar mais um pouco de éter na barriga de Dalva, para depois cheirar ali, quando viu que o frasco de lança-perfume estava completamente vazio. “É melhor a gente ir”, disse Dalva, recompondo-se. “Meus pais devem estar me procurando; eu vou na frente, você vai depois.” “Espera aí, vem cá só um minutinho.” Adamastor a puxou pelo braço, também já se recompondo com o vestido de Claire. Iam limpando as roupas como podiam e chegaram, conduzidos por ele, até um canto do cemitério, onde havia um pequeno trecho de terra solta e duas pás, com toda certeza para cavar uma nova sepultura. “Essa aí está aguardando um novo morador.” Ele fez Dalva rir. Como as calcinhas estavam com sangue, eles não as vestiram e Adamastor, com uma das pás, abriu facilmente um buraco, jogou a sua lá dentro e falou para Dalva imitá-lo, o que ela fez sem hesitação. Adamastor então jogou o frasco dourado de lança-perfume, que brilhou à luz da lua. Ele abençoou com a mão direita aquele conjunto, pegou a pá e jogou terra por cima, depois fez o sinal da cruz. Dalva, rindo, segurou o braço dele e disse: “Eu te amo, Fred.” “Eu também te amo, Dalva.” Adamastor beijou fundo e longamente a boca de Dalva e foi correspondido com ardor. “Mas eu te amo é para sempre”, disse Dalva. “Eu também, queridinha.” Primeiro saiu ela, depois saiu ele. E nunca mais se viram. 2. Lencinhos Ao completar cinquenta anos, sentime mais à vontade dentro do meu nome um tanto antigo, circunspecto: Teóphilo. Com ele, meu pai quisera homenagear seu avô, um desembargador. Disse-me minha mãe que ele quis ainda passar-me o modelo de um vencedor, só que eu, apesar de formado em direito, contentei-me com um emprego na Justiça do Trabalho, onde não cheguei a subir, pois jamais tolerei a burocracia e a linguagem jurídicas e em meu rosto estava estampada a desambição. E, assim que atingi o tempo de serviço requerido para a aposentadoria proporcional, aposentei-me aos cinquenta e três anos. Para uma criança, o nome Teóphilo não tem nada a ver; ele cai mesmo como uma luva é num jurista ou político conservador, mas desde que nasci havia um diminutivo prontinho e carinhoso à minha espera: Téo. Porém, nas chamadas nas aulas do colégio, eu não podia escapar do peso e da estranheza do meu nome, para mim mesmo e para os outros meninos, sempre prontos a gozar um colega. E eu ansiava pela volta para casa, onde me aguardavam os carinhos de minha mãe e o diminutivo em que eu me sentia confortável e mais eu mesmo. Até meu pai, o culpado de tudo, terminou por chamar-me de Téo, o que acabou acontecendo também no colégio, à medida que fui me tornando um veterano. E o fato de eu, ao completar cinquenta anos, reconciliar-me com Teóphilo, não me tornava menos gauche e singular na vida, pois, em meu íntimo, sentia aquela falta dos que não amadureceram. Tanto é que, depois de um primeiro casamento desfeito, quando eu tinha trinta e três anos, com o legado de uma filha, não voltei a casar-me. Tudo isso, porém, não passa de um preâmbulo àquele final de ano de 2008, quando eu acabara de completar cinquenta e cinco anos. Com a proximidade do Natal e do Ano-Novo, a cidade vivia um clima de excitação e expectativa, embora, pessoalmente, eu seja daqueles que se angustiam em épocas de festas. Entrando nos acontecimentos propriamente ditos, eu voltava do consultório da dra. Lisete, com a boca parcialmente anestesiada, o que me deixava bastante aborrecido. Já não bastasse o calor, depois de ter saído de um consultório refrigerado, eu lamentava não poder comer um pastel, acompanhado de um caldo de cana. Eram quase seis e meia da tarde, no horário de verão, e pensei que em vez de jantar, nas condições em que estava, o melhor seria tomar apenas uma sopa. Mas eu temia derramá-la com minha boca provisoriamente torta. E onde achar uma boa sopa naquelas imediações? Então minha história verdadeiramente se inicia no largo do Machado, eu indo a pé do consultório no Catete rumo ao meu velho edifício na rua Senador Vergueiro. Ia com uma sensação de abandono, como se a dra. Lisete devesse tomar conta de mim após o tratamento, quando seu corpo estivera tão próximo do meu. E ela se despediu tratando-me de querido, com sua voz meiga, o que dispensava o Teóphilo. Já Conceição, sua assistente, provavelmente crente, não dispensava o “Fica com Deus”. Mas ainda era cedo para jantar, uma sopa ou não, e eu pensava se devia aproveitar o comércio aberto para escolher presentes de Natal para minha filha, minha mãe e minha ex-mulher, mas logo desisti, para não ter de falar com os vendedores e vendedoras com a boca torta. E também, olhando para o céu, percebi as nuvens negras que pairavam sobre a cidade. Foi quando um vulto aproximou-se muito silenciosamente das minhas costas, e uma voz feminina, muito suave, sussurrou-me: “Não quer ver uns lencinhos, senhor?” Normalmente, eu teria dado uma resposta seca ou apenas me afastado depressa, naquela área cheia de camelôs, pivetes, quando não ladrões, mas eu tinha de ver direito a quem pertencia aquela voz. E não me decepcionei, pois me vi diante de uma mulher que parecia ter uma distinção inata, certa elegância, apesar de suas roupas simples, que nem novas eram. Usava uma saia xadrez e uma blusa branca, feitas de tecidos apropriados ao verão, e calçava sandálias prateadas, com pequenos saltos. Não deixei de notar, também, que ela usava uma aliança dourada no anelar esquerdo. No ombro trazia uma sacola, com uma imagem estilizada de montanhas do Rio de Janeiro. Tive um primeiro impulso de responder negativamente, como sempre faço com vendedores ambulantes, e agora tinha um motivo a mais para recusar: minha dificuldade com a fala. Mas também tinha um bom motivo para aceitar, que era minha simpatia, para não dizer atração, por aquela mulher que devia ter seus trinta e cinco anos. Não encontrei nada melhor a fazer do que apontar para a parte direita da minha boca, paralisada pela anestesia. E fiz o gesto de uma injeção sendo aplicada. “Ah, o senhor está com a boca magoada”, ela disse de um modo encantador. “Os lencinhos podem distraí-lo. Mas não quero insistir.” Fiz um sinal com a mão querendo dizer que ela não era insistente e falei, estranhando minha própria voz, que me pareceu ridícula com a boca torta: “Não, eu quero vê-los.” “Ah, que bom”, ela disse. “Mas, por favor, vamos ao café ali dentro da galeria e nos sentemos, pois não é fácil mostrar os lencinhos na rua e sempre tenho receio dos fiscais da prefeitura.” No café, ela sugeriu que eu pedisse um coco gelado, pois com um canudinho ficaria fácil eu tomá-lo. “Vou pedir um também”, ela disse. Depois de pedir dois cocos ao garçom, que chamou pelo nome, Olímpio, ela tirou um primeiro pacotinho da sacola, embrulhado com papel grená, desembrulhou-o, pegou uma caixinha azul lá de dentro e passou-a para mim. Eram três lenços dentro da caixa, que em si mesma era um mimo. Peguei um primeiro lenço e nele havia uma moça à janela de uma casa, olhando, pensativa, a rua, onde havia um desses postes antigos, com a lâmpada acesa. No segundo lenço, a moça e a casa estavam mais afastadas e entrava em cena um jovem com um violão nas mãos. E, no terceiro, ao redor do violão e do moço, que estava tocando, próximo à janela e também à luz, pairavam insetos que, reparando bem, eram notas musicais iluminadas pelo lampião. Tudo era de uma singeleza incomum e não resisti à tentação de perguntar,

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Novo e antológico livro de um dos maiores autores da literatura brasileira A obra de Sérgio Sant’Anna é de difícil classificação. Transgressor contumaz, ele vem desde a década de 1960 testando os limites da prosa, dos gêneros — e da própria ideia de literatura.
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