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O Direito Urbanístico na sociedade de risco PDF

25 Pages·2016·0.5 MB·Portuguese
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O Direito Urbanístico na sociedade de risco Luciano de Faria Brasil Promotor de Justiça no Rio Grande do Sul, classificado na Promotoria de Justiça de Habitação e Defesa da Ordem Urbanística de Porto Alegre. Diretor do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (CEAF/MPRS). Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais (UFRGS). Mestre em Filosofia (PUCRS). Diplomado pelo “Curso Internacional de Planificación del Ordenamiento Territorial” (ILPES/CEPAL, Chile). RESUMO: O presente texto tem caráter exploratório e analisa as possibilidades de articulação entre conceitos provenientes de tradições teóricas distintas, para ponderar as relações entre a “sociedade de risco” e o Direito Urbanístico. Assim, o texto examina os conceitos de risco e a antifragilidade, a partir de uma perspectiva epistemológica cética. O Direito Urbanístico é analisado como instrumento essencial de ordenamento do território, sendo fator importante para a constituição e o desenvolvimento das cidades. No exame do Direito Urbanístico, identifica-se o planejamento como elemento central. O texto aponta a ligação existente entre os conceitos de antifragilidade e sustentabilidade, assinalando também a centralidade da noção de cidades sustentáveis no Direito Urbanístico brasileiro. Algumas iniciativas práticas são indicadas como passíveis de contribuição para uma maior resiliência do espaço urbano, a saber: fortalecimento da gestão democrática, valorização da autonomia local e ênfase na prevenção de desastres. As providências sugeridas mostram um caminho para a obtenção de um grau maior de resiliência no ambiente urbano, ou até mesmo de antifragilidade, respondendo de forma setorial aos desafios postos pela sociedade de risco. Palavras-chave: Sociedade de risco. Antifragilidade. Princípio de precaução. Direito Urbanístico. Sustentabilidade. Sumário: 1 Introdução - 2 Sociedade de risco - 2.1 Risco e antifragilidade - 2.2 Direito, risco e precaução - 3 Direito Urbanístico: linhas fundamentais - 3.1 Planejamento como elemento central do Direito Urbanístico - 4 Cidades sustentáveis: medidas para a antifragilidade - 4.1 Fortalecimento da gestão democrática - 4.2 Valorização da autonomia local - 4.3 Ênfase na prevenção de catástrofes - 5 Conclusão – Referências 1 Introdução O presente texto tem por objetivo promover a articulação de conceitos oriundos de matrizes distintas. Pretende-se explorar a relação entre o tema da sociedade de risco, o tema da antifragilidade e as possibilidades oferecidas pelo Direito Urbanístico brasileiro. O interesse por esses temas e a tentativa de encontrar conexões teóricas e práticas entre assuntos tão diversos decorre da constatação empírica dos crescentes problemas urbanos na realidade contemporânea, e, da mesma forma, da necessidade de promover normas e comportamentos sociais que possam fazer frente aos desafios trazidos pelo advento da sociedade de risco. Por isso, o texto apresenta R. Bras. de Dir. Urbanístico – RBDU | Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 39-63, jan./jul. 2016 39 LUCIANO DE FARIA BRASIL um caráter interdisciplinar, transitando entre a sociologia do direito, a filosofia do direito e o exame da dogmática jurídica, para, com isso, formular a hipótese de que o Direito Urbanístico possui instrumentos capazes de reforçar a antifragilidade das cidades brasileiras. A partir do estabelecimento dessa hipótese de trabalho, algumas medidas de natureza prática são sugeridas em caráter prospectivo, como corolário lógico, no âmbito normativo, das premissas sociológicas e epistemológicas adotadas. O percurso metodológico seguido no texto atende exatamente a essa característica de “laboratório conceitual” que é inerente à filosofia do direito.1 Assim, a metodologia parte necessariamente de uma base expositiva, com esclarecimento mínimo dos conceitos sociológicos (sociedade de risco) e filosóficos (risco e antifragilidade) utilizados como fundamentos da análise. Na sequência, o texto avança no campo da análise interna da normatividade e de seus conceitos, apresentando algumas definições de Direito Urbanístico na tradição jurídica nacional e no direito comparado, com o propósito de elucidar alguns traços constitutivos mínimos. Por fim, algumas possibilidades de atuação prática são enunciadas com base na hipótese de que o Direito Urbanístico possui instrumentos capazes de reforçar a antifragilidade das cidades brasileiras. Registra-se que a perspectiva hermenêutica comparece como pressuposto orientador do trajeto metódico percorrido.2 Ao assim proceder, busca- se o diálogo permanente com os diversos horizontes de racionalidade presentes na metodologia jurídica: teorética, tecnológico-social e prático-jurisprudencial.3 Assentado o objetivo do texto e definida a questão do método, restava a questão da forma a ser empregada. O caráter experimental do texto demandava um formato mais livre do que os austeros contornos de um artigo cientifico. É por isso que, em face da natureza dos temas abordados, das dimensões necessariamente exíguas do presente escrito e, também, do caráter exploratório do texto, abandonou-se, de antemão, qualquer pretensão de completude ou tratamento exaustivo dos assuntos examinados. Ao contrário, o texto assumiu forma de ensaio, com uma aproximação mais fluida e livre às temáticas tratadas. Como antes destacado, a abordagem é predominantemente teórica, mas sem descurar de eventuais referências aos aspectos práticos das questões envolvidas, quando necessário. Trata-se, em última instância, de um convite à reflexão sobre o papel do Direito Urbanístico na sociedade de risco, formulado em breves linhas, sem maiores aspirações. 1 GUASTINI, Riccardo. La sintassi del diritto. 2. ed. Torino: G. Giappichelli Editore, 2014. p. 9-11. 2 Com a menção à perspectiva hermenêutica, o que se pretende destacar no percurso comparativo entre aportes doutrinários e textos legislativos é o papel constitutivo da linguagem na formação do horizonte de compreensão do intérprete, demandando especial atenção às formulações conceituais presentes na tradição jurídica. Sobre o tema da linguagem na hermenêutica: SCHMIDT, Lawrence K. Hermenêutica. Trad. Fábio Ribeiro. 2. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2013. p. 165-188. 3 CASTANHEIRA NEVES, A. Metodologia jurídica. Problemas fundamentais. Stvdia Ivridica, I. Coimbra: Coimbra Editora, Universidade de Coimbra, Boletim da Faculdade de Direito, 2013 [reimpressão]. p. 34-81. 40 R. Bras. de Dir. Urbanístico – RBDU | Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 39-63, jan./jul. 2016 O DIREITO URBANíSTICO NA SOCIEDADE DE RISCO 2 Sociedade de risco O tema da “sociedade de risco” (Risikogesellschaft) vem sendo discutido extensamente desde a publicação da obra homônima, em 1986, de autoria de Ulrich Beck. O fato de que a publicação veio a ocorrer justamente no ano em que eclodiu a tragédia do acidente nuclear de Chernobyl não é simples coincidência. De fato, o eixo temático da pesquisa desenvolvida sobre a sociedade de risco gira em torno da descoberta de uma circunstância inarredável: a ubiquidade do perigo, que transcende barreiras geográficas, étnicas, econômicas ou mesmo de classes sociais. Nesse contexto, o acidente de Chernobyl tornava claro aquilo que se punha como pressuposto existencial das sociedades industriais ou pós-industriais em que vivemos. Beck apanhou o caráter simbólico do evento, destacando-o logo no início de seu texto: É o fim dos “outros”, o fim de todas as nossas bem cultivadas possi- bilidades de distanciamento, algo que se tornou palpável com a conta- minação nuclear. A miséria pode ser segregada, mas não os perigos da era nuclear. E aí reside a novidade de sua força cultural e política. Sua violência é a violência do perigo, que suprime todas as zonas de proteção e todas as diferenciações da modernidade.4 (Grifos no original). Na sociedade de risco, o indivíduo está desprotegido. Como na fábula, o rei está nu, despido do aparato de proteção conceitual e físico proporcionado pelas múltiplas camadas existentes em formações sociais complexas. O perigo representado pelo uso descontrolado da energia nuclear é apenas um emblema, pois o risco está em todos os campos perceptíveis de interação humana, em especial nas hipóteses ligadas à produção e à distribuição em massa de bens de consumo. Pense-se, por exemplo, na possibilidade de contaminação alimentar, ou mesmo nos riscos ocultos (ou seja, ainda não mapeados ou mesmo imaginados) que estão presentes na manipulação genética de espécies animais ou vegetais destinadas ao consumo.5 O perigo que ronda o sistema financeiro internacional é sempre lembrado, com a possibilidade destrutiva do aparecimento de “cisnes negros” para os quais não há uma defesa ou preparação adequada.6 Há, ainda, o perigo físico, cristalizado não apenas na violência 4 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 7. 5 A recente descoberta de adulteração na cadeia de produção do leite no Rio Grande do Sul, após investigação conduzida pelo Ministério Público, mostra o caráter universalizado do risco, na medida em que o dano atingiu pessoas das mais diferentes condições econômicas e sociais, em caráter verdadeiramente difuso. Sobre o tema da precaução do risco alimentar na perspectiva do direito do consumidor, confira-se: VAZ, Caroline. Direito do consumidor à segurança alimentar e responsabilidade civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015. 6 Expressão popularizada por Nassim Taleb, um “cisne negro” (black swan) é um outlier (“dados espúrios em uma amostra estatística”), um fato extraordinário e imprevisível, estando fora do âmbito das expectativas R. Bras. de Dir. Urbanístico – RBDU | Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 39-63, jan./jul. 2016 41 LUCIANO DE FARIA BRASIL banal e estúpida do cotidiano das grandes cidades, mas também na existência das muitas organizações terroristas em atividade, acenando frequentemente com delírios apocalípticos e pesadelos de destruição em massa.7 Todas essas situações rompem com modelos interpretativos herdados do passado. Quanto a isso, ressalta-se que Beck é enfático ao afirmar que situações de risco não são situações de classe, expressando uma nova dinâmica social.8 Embora a expressão “sociedade de risco” tenha sido popularizada por Beck, o tema não surgiu abruptamente. Ao contrário, a preocupação com a centralidade do risco nas formações sociais contemporâneas emergiu no contexto de estudos sociológicos que principiam bem antes. Além disso, o background sociopolítico representado pela emergência da luta ambiental e pacifista na Alemanha dos anos setenta (culminando com o surgimento do movimento Die Grünen em 1980) não pode ser desprezado como elemento de deflagração da percepção do fenômeno do risco, funcionando como um estímulo à pesquisa. Da mesma forma, no outro lado do Atlântico, a luta pela segurança dos consumidores nos Estados Unidos (como a luta de Ralph Nader contra as montadoras automobilísticas, nos anos sessenta) apontava para problemas sociais análogos. É nessa conjuntura que, até o final do século XX, se desenvolvem distintas abordagens sobre a temática da sociedade de risco, elaboradas por diversos autores.9 O primeiro e mais conhecido modelo de sociedade de risco é exatamente aquele concebido por Ulrich Beck, que pode ser considerado um modelo objetivo. Como a linha argumentativa de Beck será utilizada como base teórica no presente texto, merecendo uma exposição mais pormenorizada de seus pressupostos logo adiante, não há necessidade de descer a minúcias neste momento. Basta apenas enfatizar que a reflexão de Beck acontece no âmbito da análise da sociedade industrial e seus desdobramentos. O risco é potencializado pela tecnologia, com a possibilidade de danos sem precedentes, seja pela magnitude, seja pela extensão de seus efeitos, comuns. Além disso, exerce um impacto extremo e sujeita-se, em regra, apenas a explicações ex post facto (TALEB, Nassim Nicholas. A lógica do cisne negro: o impacto do altamente improvável. 3. ed. Tradução de Marcelo Schild. Rio de Janeiro: Best Seller, 2009. p. 16 e nota nº 1). 7 Em outro texto, Beck alude expressamente aos três riscos acima mencionados, no contexto de uma sociedade mundial de risco: “We can differentiate between at least three diferente axes of conflict in world risk society. The first axis is that of ecological conflicts, which are by their very essence global. The second is global financial crises, which, in a first stage, can be individualized and nationalized. And the third, which suddenly broke upon us on September 11th, is the threat of global terror networks, which empower governments and states”. (BECK, Ulrich. The terrorist threat: world risk society revisited. In: Theory, culture & society. vol. 19 (4). London, Thousand Oaks and New Delhi: SAGE, 2002. p. 41. No mesmo texto, Beck destaca que os três riscos estão conectados entre si (“also interact”), apesar de suas diferenças (p. 45). 8 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 47-48. 9 Na apresentação dos modelos teóricos de sociedade de risco, segue-se a linha de exposição realizada pela professora Chiara Perini em sua obra sobre o conceito de risco no Direito Penal (PERINI, Chiara. Il concetto di rischio nel diritto penale moderno. Milano: Giuffrè, 2010). 42 R. Bras. de Dir. Urbanístico – RBDU | Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 39-63, jan./jul. 2016 O DIREITO URBANíSTICO NA SOCIEDADE DE RISCO conduzindo, inclusive, à hipótese de autodestruição da espécie. Como externado pelo autor, trata-se da “socialização dos danos à natureza” e “sua transformação em ameaças sociais, econômicas e políticas sistêmicas da sociedade mundial altamente industrializada”.10 Ao lado do modelo desenvolvido por Beck existem outros modelos interpretativos sobre a sociedade de risco. Há, por exemplo, um modelo sociológico (em sentido estrito), centrado na pesquisa sobre uma sociedade potencialmente segura. O foco da abordagem divide-se entre os planos da segurança objetiva (com a eliminação ou a neutralização dos fatores materiais de risco) e da segurança subjetiva (com o compartilhamento público das escolhas inerentes aos riscos para a coletividade).11 Da mesma forma, há um modelo subjetivo, que explora o contraste entre a segurança objetiva e o sentimento (individual e coletivo) de insegurança. A própria condição existencial do indivíduo, marcada por desorientação valorativa e pela precarização do trabalho, conduz a demandas sociais de maior segurança, o que leva ao aumento da complexidade das interações sociais. Com o atendimento a essas demandas e a introdução de novas medidas, o senso de insegurança tende a aumentar de forma paradoxal.12 O modelo subjetivo indica um dado essencial na abordagem do assunto, isto é, que o risco existe como tema social (não apenas como realidade objetiva, mas como realidade percebida). Nesse contexto, a percepção do risco é influenciada pelo eventual sentimento de insegurança que atravessa a coletividade, conformando decisivamente as escolhas das políticas públicas. A extrema complexidade dos temas debatidos, a prevalência de abordagens técnico-analíticas (e.g.: risk analysis e risk management) e um grau variável de disseminação e assimilação de informação pública levam muitas vezes a enfrentamentos inadequados das questões envolvendo riscos coletivos. Nesse ponto, é importante retomar o exame dos pressupostos da sociedade de risco, tal como expostos por Beck, bem como sua relação com as noções de robustez e antifragilidade, cunhadas por Taleb, para, em seguida, examinar as respostas que o Direito Urbanístico pode oferecer aos desafios que estão postos em seu domínio de incidência. 2.1 Risco e antifragilidade Em sua obra sobre a sociedade de risco, Beck ressalta a inovação radical do tipo de risco trazido pela modernidade, isto é, do risco que é fruto do processo de 10 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 10. 11 EVERS, Adalbert; NOWOTNY, Helga. Über den Umgang mit Unsicherheit. Die Entdeckung der Gestaltbarkeit von Gesellschaft. Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1987. 12 KAUFMANN, Franz-Xaver. Sicherheit als soziologisches und sozialpolitisches Problem. Untersuchungen zu einer Wertidee hochdifferenzierter Gesellschaften. 2. Auf. Stuttgart: Enke, 1973. R. Bras. de Dir. Urbanístico – RBDU | Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 39-63, jan./jul. 2016 43 LUCIANO DE FARIA BRASIL industrialização avançada. Ao contrário do risco em épocas passadas, que contava com um caráter individual (o exemplo dado em seu texto é o de Colombo partindo para o desconhecido), o risco moderno assume feições tendentes a ameaçar a própria civilização em que vivemos.13 Para esclarecer a qualidade específica assumida pelo risco na sociedade contemporânea, que se encontra no pleno desenvolvimento das forças produtivas, Beck enuncia cinco teses sobre a sociedade de risco. A primeira tese esclarece como os riscos se diferenciam das riquezas. Os riscos podem desencadear danos irreversíveis, mas permanecem invisíveis, pois apresentam-se apenas no âmbito do conhecimento. Como tal, estão “abertos a processos sociais de definição” (ou seja, sua percepção é um processo social com elementos sociais e políticos). Por sua vez, a segunda tese diz respeito à distribuição dos riscos e à formação de “situações sociais de ameaça”. Beck menciona o “efeito bumerangue”, em que os riscos alcançam até mesmo aqueles que os produziram, ou que lucram com sua existência. Além de tornar obsoletas as análises fundadas na divisão de classes, a distribuição global dos riscos também vulnera a “estrutura de competências” dos Estados-Nações, tomando um caráter de universalidade e supranacionalidade.14 A terceira tese aborda “a expansão e a mercantilização” dos riscos, em conformidade com a lógica de desenvolvimento do sistema capitalista. Beck destaca o caráter “autorreferencial” da economia capitalista, que vai muito além da simples satisfação das necessidades humanas. Em uma frase contundente, o autor afirma que “os riscos civilizatórios são um barril de necessidades sem fundo, interminável, infinito, autoproduzível”. Na mesma linha, afirma que os riscos da modernização “são big business”. A quarta tese enuncia outro aspecto da relação entre riquezas e riscos. Enquanto as riquezas podem ser possuídas, somos afetados pelos riscos. Segundo Beck, os riscos “são atribuídos em termos civilizatórios”. O autor alude à peculiaridade da teoria do conhecimento associada à sociedade de risco. Em situações relativas a classes sociais, “a consciência é determinada pela existência, enquanto, nas situações de ameaça, é a consciência que determina a existência”. Por fim, a quinta tese ressalta o aspecto político dos riscos socialmente reconhecidos. Conforme Beck, “aquilo que até há pouco era tido por apolítico torna-se político”. Com isso, deve-se acrescentar, até a estrutura organizacional das empresas passa a ser objeto de discussão pública, na medida em que participa do processo de produção industrial. Da mesma forma, a discussão sobre os efeitos colaterais deixa claro o “potencial político das catástrofes”.15 13 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 25. 14 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 27. 15 BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 28. 44 R. Bras. de Dir. Urbanístico – RBDU | Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 39-63, jan./jul. 2016 O DIREITO URBANíSTICO NA SOCIEDADE DE RISCO Diante das características do risco na modernidade tardia, é preciso questionar sobre o caminho a tomar. A complexa interação entre os aspectos objetivos do risco e a percepção subjetiva pelos agentes sociais descarta soluções ingênuas. Há uma economia política do risco, que conjuga o mapeamento e a crítica dos processos produtivos massificados (destinados a abastecer uma sociedade centrada no consumo) com o ideal iluminista do esclarecimento (Aufklärung), tendo por objetivo um processo de tomada de decisão pelo público interessado em condições ideais, de forma democrática, informada e consciente. É com base nessas considerações que o presente texto propõe o uso das categorias da robustez e da antifragilidade, cunhadas por Nassim N. Taleb, como instrumentos para a formulação de eventuais soluções jurídico-conceituais adequadas ao enfrentamento dos desafios postos pela sociedade de risco. O labor teórico de Taleb tem abordado consistentemente o problema do risco, não apenas nos mercados financeiros, mas para a formulação de uma aproximação filosófica para a questão estudada. Um dos pontos centrais de sua obra é a distinção entre eventos “medíocres”, que seguem uma distribuição estatística na forma de uma “curva de Gauss” (distribuição normal ou Gaussiana), e os eventos “extremos”, que assumem outra forma de distribuição estatística (“fat tails”). Os eventos extremos, justamente por sua natureza não linear, têm a capacidade de gerar danos muito maiores. Quando o evento extremo é de baixa ou baixíssima previsibilidade (o que geralmente ocorre, em razão da inadequação dos modelos analíticos utilizados com finalidade preditiva), acontecem os chamados “cisnes negros” (“black swans”): eventos inesperados com o potencial de causar enormes danos em progressão não linear. Na sociedade de risco, com a globalização das ameaças e o aumento de sua escala, os cisnes negros são invariavelmente catástrofes. Na sociedade industrial avançada, o risco difuso é sempre o risco de desastres ou de catástrofes (ambientais, econômicas, militares, urbanas, etc.) e a ameaça de aniquilação ou autodestruição. Não por acaso, nosso período histórico é pensado justamente como o “tempo das catástrofes”.16 A resposta filosófica de Taleb ao problema do risco está na categoria da antifragilidade. Ao contrário do frágil, que sofre com a volatilidade, e do robusto (que poderíamos também denominar resiliente, na medida em que diz com a capacidade de adaptação e recuperação), que é indiferente à incerteza, o antifrágil beneficia-se do risco, tornando-se mais forte. Ao invés de tentar prever o desconhecido, é preferível preparar-se para um cenário de “tomada de decisões não preditiva”, adaptando-se a situações de opacidade e aleatoriedade.17A partir do reconhecimento do caráter não linear dos eventos extremos, que exatamente pela raridade faz com que tenhamos 16 DUPUY, Jean-Pierre. O tempo das catástrofes: quando o impossível é uma certeza. Tradução de Lilia Ledon da Silva. São Paulo: É Realizações Editora, 2011. 17 TALEB, Nassim Nicholas. Antifrágil. Tradução de Eduardo Rieche. Rio de Janeiro: Best Seller, 2014. p. 22. R. Bras. de Dir. Urbanístico – RBDU | Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 39-63, jan./jul. 2016 45 LUCIANO DE FARIA BRASIL pouca informação sobre como lidar com eles, Taleb propõe simplificar. Em suas palavras, “menos é mais e, geralmente, mais eficaz”.18 A ideia é eficaz, na medida em que previne a formação de efeitos multiplicadores colaterais negativos, advindos quase sempre de decisões bem-intencionadas, tomadas em um ambiente de gigantismo organizacional. Como corolário da simplificação, o autor sugere abandonar o “intervencionismo ingênuo”, ou seja, a ilusão de controlar variáveis sociais pouco conhecidas ou insuficientemente compreendidas. Taleb ilustra seu conselho com vários exemplos de ações desastradas em muitos campos do conhecimento, por subestimarem o papel da aleatoriedade e a mensuração dos potenciais danos. Na dúvida, o melhor (principalmente para os policy makers) é agir com prudência.19 No cerne da obra de Taleb encontra-se uma determinada perspectiva episte- mológica, por ele denominada “via negativa” (ou de “conhecimento subtrativo”), enfatizando a precedência do conhecimento negativo sobre o positivo: Assim, o princípio central da epistemologia que defendo é o seguinte: nós conhecemos muito mais o que está errado do que o que está certo, ou, formulando de acordo com a classificação frágil/robusto, o conheci- mento negativo (o que é errado, o que não funciona) é mais robusto a erros do que o conhecimento positivo (o que é certo, o que funciona). Assim, o conhecimento cresce por subtração, muito mais do que pelo acréscimo – considerando-se que o que conhecemos hoje pode vir a se mostrar errado, mas o que sabemos ser errado não pode se revelar certo, pelo menos não com tanta facilidade. Se eu detectar um cisne negro (com letras minúsculas), posso estar praticamente certo de que a afirmação “todos os cisnes são brancos” está errada. Mas, mesmo que eu nunca tenha visto um cisne negro, nunca poderei assegurar que tal afirmação é verdadeira. Reformulando novamente: desde o momento em que uma pequena observação pode refutar uma afirmação, enquanto mi- lhões de outras dificilmente conseguirão confirmá-la, a desconfirmação é mais exata do que a confirmação.20 O autor revisita as teses de seu livro nos apêndices ao fim do volume, com demonstrações matemáticas e exposições em forma de gráficos. Quanto ao aspecto filosófico, a perspectiva epistemológica tem suas raízes mais remotas na tradição cética e nos desdobramentos mais recentes da filosofia da ciência (no capítulo sobre 18 TALEB, Nassim Nicholas. Antifrágil. Tradução de Eduardo Rieche. Rio de Janeiro: Best Seller, 2014. p. 31. Em passagem correlata, afirma o autor: “Quanto mais simples, melhor. As complicações levam a cadeias multiplicativas de efeitos inesperados. Em função da opacidade, uma intervenção leva a consequências imprevisíveis, que são acompanhadas por pedidos de desculpas pelo aspecto “imprevisível” das consequências, e, em seguida, para outra intervenção destinada a corrigir os efeitos secundários, conduzindo a uma explosiva série de respostas “imprevisíveis” ramificadas, cada uma pior do que a precedente”. (p. 30-31). 19 TALEB, Nassim Nicholas. Antifrágil. Tradução de Eduardo Rieche. Rio de Janeiro: Best Seller, 2014. p. 145- 175. 20 TALEB, Nassim Nicholas. Antifrágil. Tradução de Eduardo Rieche. Rio de Janeiro: Best Seller, 2014. p. 386. 46 R. Bras. de Dir. Urbanístico – RBDU | Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 39-63, jan./jul. 2016 O DIREITO URBANíSTICO NA SOCIEDADE DE RISCO a “via negativa”, o autor aborda algumas similaridades entre suas próprias reflexões e o pensamento de Karl Popper, mas enfatiza também as respectivas diferenças). 2.2 Direito, risco e precaução A noção de prudência (conceito ou ideia da razão prática) serve justamente como uma ponte para ligar a categoria da antifragilidade com o mundo do direito. No plano jurídico, boa parte das providências necessárias para reforçar a antifragilidade está expressa no assim chamado “princípio de precaução” (precautionary principle).21 Existem outras medidas e diretrizes, que serão exploradas mais adiante, mas o princípio de precaução traduz uma atitude antifrágil para o campo jurídico: um comportamento social e jurídico apropriado para a prevenção das catástrofes inerentes à sociedade de risco. Antes, porém, de examinar mais detidamente o princípio de precaução, parece interessante abordar alguns aspectos sobre a relação entre risco e direito. Conforme lição de Chiara Perini, em sua extensão e fundamentada monografia sobre o risco no direito penal moderno, o conceito de risco mostra-se passível de desdobramento em duas dimensões. A primeira dimensão seria a de servir como um instrumento hermenêutico, possibilitando a criação de um verdadeiro direito jurisprudencial, e, também, permitindo a avaliação de categorias jurídicas diretamente ligadas ao risco (como é o caso dos danos causados por exposição a substâncias tóxicas ou, também, dos danos conexos com a gestão de calamidades naturais).22 A outra dimensão consistiria em sua utilização como critério de política legislativa, com o reforço do caráter dirigístico de alguns ramos ou sub-ramos do direito e a correlata afirmação e fortalecimento do já mencionado princípio de precaução.23 Ainda no âmbito da avaliação do risco como critério de política legislativa, é preciso ressaltar a emergência do Estado Regulador como elemento importante no enfrentamento da questão. De fato, a atividade de regulação surge como um caminho para um quadro institucional em que o Estado deixa progressivamente de prestar, de modo direto, determinadas atividades ou serviços (intervenção direta), sem por isso passar a ser um ente passivo em face da ação do mercado. Por isso, 21 “Why is political prudence closely related to the precautionary principle? Because the later presupposes situations where the policy maker must take decisions about specific products or activities when there is a serious suspicion that they may be potentially dangerous for the public but when, at the same time, the hazard is not well understood yet. Faced with uncertain risks, the wisdom of political autorithies consists in finding na adequate balance between two extreme positions: on the one hand, an irrational fear of new technologies for the solely reason that they are new and, on the other hand, na irresponsible, passive atitude towards products or activities that could be really harmful” (ANDORNO, Roberto. The precautionary principle: a new legal standard for a technological age. Journal of International Biotechnology Law. vol. 1, Issue 1. p. 11–19, ISSN (Print) 1612-6068, DOI: 10.1515/jibl.2004.1.1.11, July 2005. p. 11. Disponível em: <www.degruyter. com/view/j/jibl.2004.1.issue-1/jibl.2004.1.1.11/jibl.2004.1.1.11.xml>. Acesso em: 3 jan. 2016. 22 PERINI, Chiara. Il concetto di rischio nel diritto penale moderno. Milano: Giuffrè, 2010. p. 367 e seguintes. 23 PERINI, Chiara. Il concetto di rischio nel diritto penale moderno. Milano: Giuffrè, 2010. p. 422 e seguintes. R. Bras. de Dir. Urbanístico – RBDU | Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 39-63, jan./jul. 2016 47 LUCIANO DE FARIA BRASIL a teoria jurídica da regulação tem por centro o exame do papel do Estado diante da atividade econômica.24 O crescimento da atividade regulatória trouxe consigo o desenvolvimento de um “direito regulativo”, portador de instrumental necessário para o tratamento dos riscos: O direito regulativo, por sua vez, traz uma preocupação maior com a pre- venção dos riscos sociais, estabelecendo uma postura de antecipação frente a estes e um consequente esforço com a previsão e a extensão dos mecanismos de controle social, não se satisfazendo com as normas meramente punitivas.25 Além do já mencionado princípio de precaução, fala-se também em um princípio de prevenção, amplamente tratado na doutrina. Ambos são importantes no enfrentamento das questões inerentes à sociedade contemporânea, especialmente em problemas relativos a interesses difusos, como as violações ao meio ambiente ou a outras classes de interesses metaindividuais. No entanto, existe uma importante diferença no escopo de aplicação de cada um dos princípios em questão. Conforme o magistério de Teresa Ancona Lopez, o “princípio da prevenção vai ser aplicado quando o risco de dano for concreto e real”, pois nessa situação “estamos diante do perigo, que é o risco conhecido”.26 Por seu turno, o princípio de precaução tem outro fundamento, tendo por centro o risco propriamente dito. Nesse sentido: Já o princípio de precaução deve ser aplicado no caso de riscos poten- ciais ou hipotéticos, abstratos, e que possam levar aos chamados danos graves e irreversíveis. É o “risco do risco”. Neste caso, não há dúvida que os atores desse momento devem identificar e construir esse risco (os atores são o poder público, as empresas, a mídia, a sociedade civil, os profissionais liberais e o próprio indivíduo) com base nas estatísticas, perícias, probabilidades, pesquisas de opinião e auxílio da mídia.27 24 Assim: “[...] a acepção que se pretende atribuir ao termo “regulação”, a fim de estudar as concepções a seu respeito que têm influenciado o sistema brasileiro, é bastante e propositadamente ampla. Engloba toda forma de organização da atividade econômica através do Estado, seja a intervenção através da concessão de serviço público ou o exercício de poder de polícia”. (SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da atividade econômica: princípios e fundamentos jurídicos. São Paulo: Malheiros Editores, 2001. p. 15). 25 VAZ, Caroline. Direito do consumidor à segurança alimentar e responsabilidade civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2015. p. 43. 26 LOPEZ, Teresa Ancona. Responsabilidade civil na sociedade de risco. Revista da Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo, [S.l.], v. 105. p. 1223-1234, jan. 2010. ISSN 2318-8235. Doi: <http://dx.doi. org/10.11606/issn.2318-8235.v105i0p1223-1234>. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/ article/view/67932/70540>. Acesso em: 03 jan. 2016. p. 1225, grifos em negrito no original (convertidos para itálico no presente texto). 27 LOPEZ, Teresa Ancona. Responsabilidade civil na sociedade de risco. Revista da Faculdade de Direito. Universidade de São Paulo, [S.l.], v. 105. p. 1223-1234, jan. 2010. ISSN 2318-8235. Doi: <http://dx.doi. org/10.11606/issn.2318-8235.v105i0p1223-1234>. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/rfdusp/ article/view/67932/70540>. Acesso em: 03 jan. 2016. p. 1226, grifos em negrito no original (convertidos para itálico no presente texto). 48 R. Bras. de Dir. Urbanístico – RBDU | Belo Horizonte, ano 2, n. 2, p. 39-63, jan./jul. 2016

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fim, a quinta tese ressalta o aspecto político dos riscos socialmente reconhecidos. de adaptação e recuperação), que é indiferente à incerteza, o antifrágil beneficia-se do .. 7. ed., revista e atualizada, São Paulo: Malheiros, 2012.
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