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o desenvolvimento do psiquismo na vida cotidiana: aproximações entre a psicologia de alexis n PDF

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O desenvolvimento do psiquismo na vida cotidiana... O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO NA VIDA COTIDIANA: APROXIMAÇÕES ENTRE A PSICOLOGIA DE ALEXIS N. LEONTIEV E A TEORIA DA VIDA COTIDIANA DE AGNES HELLER JOÃO HENRIQUE ROSSLER* RESUMO: Este trabalho pretende apontar algumas aproximações entre a psicologia de Leontiev e a teoria da vida cotidiana de Agnes Heller, mais precisamente aquilo que a filósofa húngara denomina como formas de pensamento, sentimento e ação típicas da cotidiani- dade. Nossa hipótese é a de que esse estudo pode trazer contribui- ções para a psicologia sócio-histórica, especialmente no que se refere à compreensão das características do psiquismo humano numa socie- dade marcada por processos de alienação, isto é, quando a estrutura da vida cotidiana cerceia o desenvolvimento intelectual, afetivo e moral dos indivíduos. Pretendemos, assim, contribuir para o enten- dimento daquilo que denominamos de “psiquismo cotidiano”. Palavras-chave: A. N. Leontiev. Agnes Heller. Teoria da vida cotidia- na. Alienação. Psiquismo cotidiano. THE DEVELOPMENT OF THE PSYCHE IN EVERYDAY LIFE: ESTABLISHING LINKS BETWEEN THE PSYCHOLOGY OF ALEXIS N. LEONTYEV AND AGNES HELLER’S THEORY OF EVERYDAY LIFE ABSTRACT: This work proposes to highlight some links between the psychology of A. N. Leontyev and the philosophical theory of everyday life of Agnes Heller – more precisely what she called the forms of thought, feeling and action that are typical of everyday life. Our hypothesis is that this kind of analysis should contribute to a social-historical psychology, especially when it comes to understand- ing certain features of the human psyche within an alienating soci- ety, that is, when the structure of everyday life limits the individual’s * Formado em psicologia pela UNESP, campus de Bauru, e doutor em educação pela UNESP, campus de Araraquara; membro do Grupo de Pesquisa “Estudos Marxistas em Educação”. E-mail: [email protected] 100 Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 100-116, abril 2004 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> João Henrique Rossler intellectual, affective and moral development. Through this paper, the author strives to contribute to an understanding of what could be called an “everyday psyche”. Key words: A. N. Leontyev. Agnes Heller. Theory of everyday life. Alienation. Everyday psyche. 1. A formação do psiquismo humano no interior da cotidianidade o campo dos estudos educacionais no Brasil, os livros A indi- vidualidade para-si (Duarte, 1993) e Educação escolar, teoria do cotidiano e a Escola de Vigotski (Duarte, 1996) foram os pri- meiros a buscar uma articulação entre a teoria psicológica da assim cha- mada “Escola de Vigotski” e a teoria filosófica, da assim chamada “Es- cola de Budapeste”, especialmente a teoria da vida cotidiana de Agnes Heller. Aos citados livros sucederam-se dissertações de mestrado e teses de doutorado orientadas por Duarte, as quais analisam questões no campo educacional tendo como referencial teórico ora a psicologia só- cio-histórica, ora a teoria da vida cotidiana, ora ambas (Handam, 1997; Facci, 1998; Gonçalves, 1998; Vieira, 2000; Martins, 2001; Coelho, 2002; Rossler, 2003; Facci, 2003; Hollanda, 2003). Procurando contribuir na direção da articulação das contribui- ções que essas duas escolas marxistas podem dar aos estudos educaci- onais, neste artigo procuraremos explorar algumas importantes apro- ximações entre a abordagem de Leontiev das relações entre a estrutura da atividade humana e a estrutura do psiquismo humano e a aborda- gem helleriana das relações entre estrutura da vida cotidiana e as for- mas cotidianas de pensamento e ação. Posto que o artigo de Duarte (2003) integrante deste número dos Cadernos CEDES aborda a questão das relações entre a estrutura da atividade e a estrutura da consciência na psicologia de Leontiev, será suficiente mencionarmos aqui aqueles aspectos que dizem respeito mais diretamente ao tema deste artigo. Conforme o psicólogo soviético Alexis N. Leontiev (1978), o psiquismo humano estrutura-se a partir da atividade social e históri- ca dos indivíduos, ou seja, pela apropriação da cultura humana ma- terial e simbólica, produzida e acumulada objetivamente ao longo da história da humanidade. Os objetos desse processo de apropriação, a saber, as objetivações produzidas pelo gênero humano, condensam Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 100-116, abril 2004 101 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> O desenvolvimento do psiquismo na vida cotidiana... em si, isto é, materializam trabalho humano, faculdades e aptidões humanas desenvolvidas ao longo da história da humanidade, e cons- tituem-se em uma síntese dessa própria história. A uma determinada estrutura objetiva da atividade do ser soci- al corresponde, assim, uma dada estrutura subjetiva. Em outras pala- vras, a uma determinada realidade social, tanto material quanto sim- bólica, corresponde uma dada forma de consciência e personalidade. Desse modo, atividade, consciência e personalidade relacionam-se sempre dialeticamente. Leontiev diferencia atividade, ação e operação quando analisa a estrutura da atividade especificamente humana. Da mesma forma, ele diferencia sentido e significado ao analisar a estru- tura da consciência humana. Em seus estudos, o referido autor deixa claro que o processo de constituição do psiquismo humano, pela apro- priação dos bens culturais produzidos pela humanidade, consiste num processo mediado por outros indivíduos. Sendo assim, trata-se sempre e necessariamente de um processo educativo. Heller (1989, 1994) divide a vida social humana em dois gran- des âmbitos: o da vida cotidiana e o âmbito das esferas não-cotidia- nas da atividade social, sendo que o segundo tem sua gênese histórica no primeiro e sua existência já caracteriza um certo estágio de desen- volvimento da sociedade. A vida cotidiana é constituída a partir de três tipos de objetivações do gênero humano (objetivações genéricas em-si), que constituem a matéria-prima para a formação elementar dos indivíduos: a linguagem, os objetos (utensílios, instrumentos) e os usos (costumes) de uma dada sociedade. Já as esferas não-cotidia- nas se constituem a partir de objetivações humanas superiores (objetivações genéricas para-si), isto é, mais complexas, como as ciên- cias, a filosofia, a arte, a moral e a política. Estes níveis qualitativamente distintos de objetivações se en- contram em constante processo de transformação, na medida em que a atividade humana que produz e reproduz essas objetivações ten- de, ao longo da história, a um grau de complexidade cada vez mai- or. Na medida em que se desenvolvem qualitativamente as ativida- des humanas, aprimoram-se os produtos materiais e simbólicos dessas atividades. Esses produtos, por sua vez, irão determinar um grau superior de desenvolvimento humano tanto material quanto psíquico, ou seja, tanto no que se refere aos aspectos objetivos da existência social humana quanto no que diz respeito às aptidões e 102 Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 100-116, abril 2004 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> João Henrique Rossler funções psíquicas dos indivíduos. Portanto, essas objetivações repre- sentam o próprio desenvolvimento histórico da humanidade, isto é, as marcas de sua evolução. Por sua vez, a existência das objetivações genéricas que compõem as esferas não-cotidianas da vida social in- dica o grau máximo de desenvolvimento alcançado pela humanida- de, num dado momento histórico, ou seja, apontam para o que há de mais desenvolvido numa dada sociedade, em termos de suas pro- duções socioculturais. Neste sentido, constituem-se naquilo que de- fine o grau máximo que pode alcançar o desenvolvimento dos indi- víduos naquela sociedade. Para Heller, a formação dos indivíduos começa sempre nas esferas da vida cotidiana. Esse processo de formação se inicia já no momento de seu nascimento e inserção no universo cultural humano e se estende por toda a vida. E, como lembra Leontiev, trata-se, necessariamente, de um processo mediado, direta ou indiretamente, por outros indivíduos. Segundo Heller, a vida cotidiana é parte inerente à existência de todo e qualquer indivíduo. Nessa esfera do ser social, o indivíduo apropria-se da linguagem, dos objetos e instrumentos culturais, bem como dos usos e costumes de sua sociedade. Sem a apropriação dessas objetivações se- ria impossível a sua existência e convivência em qualquer sociedade hu- mana, independentemente do nível de desenvolvimento dessa mesma so- ciedade. Na verdade, seria inviável a existência do indivíduo como ser humano. Neste sentido, a filósofa húngara afirma que a vida cotidiana é composta pelo conjunto das atividades voltadas para a reprodução da existência do indivíduo e a vida não-cotidiana é composta por aquelas atividades voltadas para a reprodução da sociedade. Assim, a cotidia- nidade consiste no espaço de satisfação das necessidades essenciais do indivíduo e, portanto, as atividades cotidianas são basicamente deter- minadas por motivações de caráter particular. Por sua vez, as atividades não-cotidianas são determinadas por motivações genéricas, isto é, que aludem à universalidade do gênero humano, a qual também não pode ser considerada um dado natural já existente no início da história hu- mana, devendo ser vista como um dos resultados possíveis do processo. Como a própria Heller menciona em vários momentos, há uma grande variabilidade no grau real de universalidade das motivações genéricas do comportamento individual, em especial se levarmos em conta o fato de que as objetivações genéricas para-si (ciência, arte, filosofia, moral e po- lítica) trazem as marcas da contraditoriedade de sua gênese histórica, a Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 100-116, abril 2004 103 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> O desenvolvimento do psiquismo na vida cotidiana... qual tem ocorrido até o presente em meio à divisão social do trabalho, à propriedade privada, enfim, em meio à luta de classes. Segundo Heller, o indivíduo que vive a sua cotidianidade deve aprender a manipular os objetos, os instrumentos e utensílios de sua cultura. Deve se apropriar, por exemplo, do uso e do significado soci- al do garfo, da faca, de um lápis, de um relógio etc. E como não exis- te apropriação que não seja mediada, direta ou indiretamente, por um outro indivíduo, esse processo pressupõe, por sua vez, a apropria- ção de certas relações sociais, bem como a apropriação da linguagem como forma básica de comunicação ou intercâmbio entre os indiví- duos de um determinado grupo. Ao longo desse processo formativo, ocorrem ainda as apropriações das leis fundamentais da natureza. Todo ser humano virá a se apropriar, em algum momento de sua vida, da noção de que, ao se soltar um objeto no espaço, este cairá em di- reção ao chão, ainda que o indivíduo possa não saber explicar por que isso ocorre. Trata-se, nesse caso, de uma forma de conhecimento es- pontâneo, sem uma reflexão consciente, ainda não problematizado te- oricamente. Em contrapartida, sabemos que qualquer existência em grupo, por mais primitiva que seja, pressupõe o estabelecimento de um certo conjunto de normas de convivência, isto é, pressupõe a exis- tência de certos usos e costumes, ou seja, de certas normas explícitas ou tácitas de comportamento. Todo e qualquer indivíduo deve neces- sariamente se apropriar dessas regras de conduta social. É o caso, por exemplo, do vestuário, das normas que regem nosso comportamento sexual, das regras de conduta interpessoal em geral etc. A autora ainda destaca que, ao longo da formação dos indiví- duos em sua vida cotidiana, estruturam-se determinadas formas de pensamento, de sentimento e de ação típicas dessa esfera da vida so- cial e necessárias para a própria reprodução da existência do indiví- duo. Assim, podemos concluir que a formação dos indivíduos no âm- bito da vida cotidiana determina a estruturação daquilo que poderíamos denominar de psiquismo cotidiano. 2. As características do psiquismo cotidiano Dissemos anteriormente que para Leontiev o psiquismo huma- no, com suas faculdades e aptidões, estrutura-se a partir da atividade 104 Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 100-116, abril 2004 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> João Henrique Rossler humana, isto é, das apropriações sócio-históricas da cultura humana e que, portanto, a estrutura da consciência humana é diretamente con- dicionada pela estrutura da atividade social. O pensamento humano, por exemplo, é considerado por Leontiev como sendo sempre e essen- cialmente social, pois apóia-se em conceitos, generalizações e operações lógicas socialmente estabelecidas. Ou seja, o pensamento dá-se a partir de determinadas operações que estão objetivadas na linguagem, nos co- nhecimentos humanos, nos objetos, enfim, que estão sintetizadas nas objetivações genéricas das quais os indivíduos se apropriam no seu pro- cesso de formação. Assim, se a atividade humana material é mediada por instrumentos sociais, a atividade mental intelectual também o é. Em outras palavras, para Leontiev, o psiquismo é um produto da experiência sócio-histórica humana. Sintetiza a história e a experiência humanas acumuladas. Está, assim, determinado pelas condições sociais nas quais vivem os indivíduos concretos, isto é, reproduz certas carac- terísticas da realidade material e social com a qual esses indivíduos interagem. Como a vida cotidiana se constitui numa esfera do ser soci- al, poderíamos dizer que o psiquismo humano, de forma geral, sinteti- za ou reproduz certas características da cotidianidade. O que significa dizer que, à estrutura material (objetiva) da vida cotidiana, correspon- deria uma dada estrutura psíquica (subjetiva) com seus respectivos me- canismos psíquicos afetivos, intelectuais e comportamentais, isto é, com suas formas-padrão de pensamento, sentimento e ação. Portanto, a uma dada esfera da realidade social humana, qual seja, a vida cotidia- na, corresponderia um determinado modo de funcionamento psíquico. Poderíamos falar, então, em um modo de funcionamento psíquico co- tidiano, que envolveria formas típicas de perceber o mundo, raciocinar, sentir, comportar-se etc. Em suma, poderíamos então falar em deter- minadas formas de pensamento, sentimento e ação tipicamente cotidi- anas (Rossler, 2003, p. 54-55). Mas quais seriam essas formas típicas do pensar, sentir e agir cotidiano? Em outras palavras, quais são as características dos pensa- mentos, sentimentos e ações dos indivíduos no seu cotidiano e quais suas implicações para a vida dos indivíduos? É justamente nesse pon- to que a teoria da vida cotidiana, tal qual formulada por Heller, pode fornecer valiosas contribuições teóricas para a psicologia sócio-histó- rica, mais especificamente para a compreensão da estrutura e do fun- cionamento daquilo que aqui denominamos de psiquismo cotidiano. Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 100-116, abril 2004 105 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> O desenvolvimento do psiquismo na vida cotidiana... Ao analisar a estrutura da vida cotidiana, a autora elabora de- terminados conceitos que podem explicar certos padrões de funcio- namento psíquico, de natureza cognitiva, afetiva e comportamental. Em outras palavras, explicita determinados modos de pensar, sentir e agir típicos da vida cotidiana. Segundo a autora, a espontaneidade – ou o pensar e agir sem uma reflexão consciente e crítica – seria a característica dominante da vida cotidiana. A espontaneidade constitui-se em uma tendência de toda e qualquer atividade cotidiana. É necessário que atividades, pen- samentos e ações dos indivíduos sejam espontâneos nessa esfera de sua vida, pois senão se tornaria inviável a produção e reprodução da sua existência social. Imaginem se os seres humanos se dispusessem a re- fletir sobre a forma e o conteúdo de todas as suas atividades, de todas as suas ações. Não conseguiriam realizar nem uma pequena parcela de suas atividades cotidianas e, assim, garantir sua reprodução como indivíduos. Se uma pessoa que vai atravessar uma rua se dispusesse a refletir e a considerar todas as variáveis físicas e matemáticas em jogo nesse seu comportamento, levaria um bom tempo fazendo cálculos sem sair do lugar. Assim, na vida cotidiana, as interações sociais, o trabalho, o lazer, a formação dos hábitos e costumes, o uso da lin- guagem, a assimilação de certas idéias e de certas normas consuetudi- nárias de comportamento dão-se de forma essencialmente espontânea, não refletida, sem que se mantenha uma relação consciente para com todos esses elementos da vida humana. Na vida cotidiana o indivíduo age, além de espontaneamente, a partir da probabilidade, isto é, da possibilidade. No cotidiano, en- tre a ação das pessoas e as suas conseqüências, estabelece-se sempre uma relação objetiva de probabilidade. Não seria viável para os indi- víduos pretender, perante a heterogeneidade das atividades cotidia- nas, estabelecer com certeza científica as conseqüências de todas as suas ações. Além de inviabilizar a vida isso seria desnecessário. É pos- sível para os indivíduos alcançar muito bem seus objetivos simples- mente a partir de ações determinadas por avaliações probabilísticas. Ao sair de casa para ir ao supermercado, por exemplo, o indivíduo não necessita determinar com rigor científico se chegará ao seu desti- no ou não e, na verdade, o indivíduo não dispõe de meios para tal cálculo. Existe já preestabelecida nesta ação ambas as possibilidades, e isso dentro de uma certa margem de erro, ou seja, de possibilidade 106 Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 100-116, abril 2004 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> João Henrique Rossler de que fracassem as previsões, ainda que o sujeito envolvido no caso não pare para “refletir” sobre a questão. Pode ser que ele chegue ao supermercado mas pode acontecer um acidente grave durante o tra- jeto, levando o indivíduo a ser hospitalizado em vez de fazer compras no supermercado (Heller designa esses casos como as catástrofes da vida cotidiana). A realização das atividades sobre a base da espontaneidade e da probabilidade aponta para o economicismo da vida cotidiana, isto é, a determinação dos pensamentos e das ações dos indivíduos a partir da “lei do menor esforço”: menor dispêndio de energia, de tempo e de pensamento. Na vida cotidiana, os pensamentos e as ações visam sem- pre a sua efetivação de forma rápida, segura, num menor tempo e com o menor esforço possível, tanto físico quanto intelectual. É ne- cessário que assim seja para que se viabilize o conjunto heterogêneo de atividades que compõem essa esfera da vida. Certos pensamentos, sentimentos e ações existem, manifestam-se e “funcionam” somente enquanto desempenham certa função na continuidade da vida coti- diana. Assim, não se manifestam com profundidade, amplitude e in- tensidade especiais, mas sempre de forma econômica. Outra característica da estrutura da vida cotidiana é o pragmatis- mo, isto é, a unidade imediata entre pensamento e ação. Trata-se do pensamento voltado para a realização de atividades cotidianas sem, no entanto, elevar-se ao nível da teoria. A teorização das atividades que os indivíduos realizam em sua vida cotidiana as tornaria complexas demais, demandando tempo e esforços desnecessários nesse âmbito da vida. En- tre o que se faz e se pensa na cotidianidade, não haveria uma mediação teórica, reflexiva, crítica e aprofundada, mas sim uma determinação uti- litária direta. Na vida cotidiana, os pensamentos e as ações são muito mais determinados por sua funcionalidade (viabilidade) imediata do que por razões de ordem teórica ou filosófica.1 O sentimento da confiança adquire um papel fundamental na vida cotidiana. Pelo fato de o pensamento cotidiano ser essencialmen- te espontâneo, probabilístico, “econômico”, pragmático, ele vem acompanhado de um certo sentimento de confiança que lhe serve de suporte. Essa confiança é fortalecida por processos de controle social, mas mesmo esses processos não fornecem cem por cento de seguran- ça. É o caso, por exemplo, da ação de tomar um táxi. Nós confiamos nas condições do veículo e do condutor deste. Tanto o veículo como Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 100-116, abril 2004 107 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> O desenvolvimento do psiquismo na vida cotidiana... o condutor são “avaliados” por meio de práticas institucionais, mas sempre restará uma margem de confiança pois nem o veículo nem o condutor são “checados” todos os dias. Isso não significa que a confi- ança seja um sentimento exclusivo da cotidianidade, mas sim que é indispensável nesse âmbito das atividades humanas.2 Outra característica marcante do pensamento cotidiano seria a ultrageneralização. Podemos perceber que, na vida cotidiana, os indi- víduos agem ou por meio de generalizações tradicionalmente aceitas e difundidas na sociedade ou segundo generalizações que eles mes- mos estabelecem a partir de suas próprias experiências particulares. Normalmente as pessoas não se orientam a partir de uma considera- ção mais precisa dos casos singulares que compõem a sua vida. Agem, isso sim, a partir de generalizações. Heller denomina este fenômeno de manejo grosseiro do singular. No cotidiano, não há como os indiví- duos examinarem detalhadamente e com precisão as situações singu- lares, isto é, os problemas particulares com os quais se deparam. De fato, tendem sempre a situá-los sob alguma ótica mais geral, ou seja, tendem com freqüência a generalizar o seu pensamento, consideran- do as situações particulares de sua existência a partir de certas experi- ências anteriores ou simplesmente de generalizações já existentes no seu meio social imediato. Em outras palavras, as pessoas recorrem à ajuda de vários tipos de ultrageneralização, isto é, de pensamentos ultrageneralizadores. São exemplos de ultrageneralizações: os juízos provisórios (juízos que se adquirem pela tradição coletiva ou pelas ex- periências individuais e que utilizamos de forma generalizada nas di- versas situações da vida cotidiana) e os preconceitos, que têm a mesma origem dos juízos provisórios mas que não se apóiam no sentimento da confiança e sim no sentimento da “fé”, e, por conseguinte, na par- ticularidade, sendo por isso muito mais rígidos e enraizados afetivamente. Cabe destacar que, segundo Heller, o preconceito é uma categoria fundamental do pensamento e do comportamento cotidia- no quando estes se alienam. Outro exemplo de ultrageneralização seria a analogia. É por meio da analogia que se dá no cotidiano o conhecimento e o reco- nhecimento dos indivíduos no interior do universo das interações so- ciais de caráter interpessoal. A partir dessa forma do pensar cotidia- no, as pessoas são classificadas em algum tipo já conhecido no decorrer das experiências anteriores dos indivíduos. Essa classificação 108 Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 100-116, abril 2004 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br> João Henrique Rossler “tipológica” ou por tipos permite aos indivíduos se orientarem no mundo das relações interpessoais que compõem a cotidianidade. Este é o caso também do uso dos precedentes. Cabe ressaltar que os precedentes são mais importantes para o conhecimento das situa- ções cotidianas que o das pessoas. Os indivíduos comportam-se de de- terminadas formas ou adotam algumas atitudes em certas situações porque já tinham como referenciais alguns exemplos prévios extraí- dos de situações similares vividas anteriormente. Segundo a autora, ainda, não há vida cotidiana sem imitação. Tanto na assimilação dos instrumentos e utensílios, dos hábitos, dos costumes e dos usos de uma sociedade como no trabalho e na comu- nicação entre os seus membros, a imitação desempenha um papel bas- tante importante. Na vida cotidiana os indivíduos utilizam a imita- ção como um modo de aprender a agir segundo formas socialmente adequadas. Não é nenhuma novidade o fato de que a imitação con- siste num elemento essencial dos processos de aprendizagem. Um último elemento do agir e pensar cotidianos seria a entonação, ou seja, uma espécie de tom afetivo que existe à volta de cada pessoa. Esse elemento desempenharia um papel importante principalmente no que diz respeito à avaliação dos outros e à comu- nicação. Heller afirma ser esta categoria da cotidianidade uma ultrageneralização emocional. Quando essa entonação se aliena, po- deríamos dizer, conforme a própria autora refere, que estamos diante de uma forma de “preconceito emocional”. Como podemos observar, estas categorias do pensar, do sentir e do agir cotidiano formam um conjunto articulado de processos psi- cológicos (afetivos, cognitivos e comportamentais) fundamentais para a existência e para a reprodução do indivíduo em sua vida cotidiana. Configuram, portanto, uma determinada estrutura psíquica inerente à vida de todo e qualquer indivíduo, uma vez que, como já dissemos, a cotidianidade é elemento constituinte da existência de todo e qual- quer indivíduo em qualquer sociedade. 3. A alienação da vida cotidiana Segundo Heller, na vida cotidiana, a presença de qualquer uma dessas formas de pensamento, sentimento e ação não é em si mesma Cad. Cedes, Campinas, vol. 24, n. 62, p. 100-116, abril 2004 109 Disponível em <http://www.cedes.unicamp.br>

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Conforme o psicólogo soviético Alexis N. Leontiev (1978), o psiquismo . Em outras palavras, explicita determinados modos de pensar, sentir e.
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