O coração irritável nos discursos médicos anglo-americanos no fim do século XIX VILARINHO, Yuri C. O coração irritável nos discursos médicos anglo-americanos no fim do século XIX. História, Ciências, Saúde – Manguinhos. Rio de Janeiro, v.21, n.4, out.-dez. 2014, p.1151-1177. Resumo Investiga o estatuto e as condições de emergência da categoria nosológica de síndrome do coração irritável presente O coração irritável nos nos discursos médicos anglo-americanos na segunda metade do século XIX. No discursos médicos contexto da Guerra Civil Americana, examina elementos sócio-históricos que anglo-americanos no fim configuraram a atenção médica sobre os sintomas de ordem cardíaca de soldados. do século XIX* Destacam-se os valores morais de médicos-militares frente aos sintomas de medo em combatentes, assim como as hipóteses etiológicas britânicas e norte- Irritable heart syndrome in americanas que consolidaram o estatuto nosológico do sofrimento dos soldados Anglo-American medical com palpitações. Propõe análise da especificidade da síndrome do coração thought at the end of the irritável frente às categorias nosológicas do medo descritas pela nosologia nineteenth century psiquiátrica atual. Palavras-chave: síndrome do coração irritável; palpitações; medo; discursos médicos; século XIX. Abstract This paper examines the characteristics and the conditions for the emergence of the nosological category known as irritable heart syndrome to be found in Anglo-American medical literature in the second half of the nineteenth century. In the context of the American Civil War, it looks at some of the socio-historical elements, which comprised the medical care given to certain cardiac symptoms shown by soldiers. It emphasizes the moral values influencing the medical attitudes of military physicians towards symptoms of fear experienced by combatants, as well as the British and American etiological theories, which contributed to the nosological Yuri C. Vilarinho characterization of the suffering of soldiers Mestre em Saúde Coletiva, Instituto de Medicina Social/ afflicted with palpitations. Finally, it offers Universidade do Estado do Rio de Janeiro. a brief analysis of the specific nature of the Rua Corrêa Dutra, 39/408 medical category known as irritable heart 22210-050 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil syndrome in the light of the categories of fear [email protected] described by current psychiatric nosology. Keywords: irritable heart syndrome; Recebido para publicação em abril de 2012. palpitations; fear; medical literature; Aprovado para publicação em março de 2013. nineteenth century. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-59702014000400005 vv ..2201,, nn..24,, aoburt..--jduenz. .2 2001134, ,p p.6.15135-16-7131 77 111111555111 Yuri C. Vilarinho Encontramos alguns casos que podem ser considerados ótimos exemplos de histeria masculina. O caso, por exemplo, de um homem que se havia dedicado com demasiada intensidade aos seus estudos ... Depois de conduzir uma vida de grande retiro em Oxford, e em oposição ao seu temperamento de estrita castidade, sua mente tornou-se irritável e ele não pôde mais ter sonos revigoradores. Por diversas vezes, ele foi presa de súbito e violento soluço, ... [e] medo de morte imediata por sufocação. Durante tais ataques, seu rosto avermelhava-se, as carótidas pulsavam intensamente, e o coração ficava muito perturbado. Ficamos familiarizados também, há alguns anos, com dois senhores que eram notavelmente excessivos com as bebidas e que, às vezes, a ambos tal excesso induzia a soluços e choro, acompanhados de palpitação, pulso fraco, perda de poder muscular, forte dispneia, constrição dolorosa do peito e medo de morte iminente. Connoly (1833, p.565)1 A história médica está repleta de quadros clínicos como o descrito por John Connoly. Pouco antes, em 1829, Peter Mere Latham (1789-1875) investigara o problema. Sua preocupação era saber se tais perturbações nervosas ou paixões do espírito poderiam redundar em males do coração (Latham, 1829). Ora, o que estava em questão nesse período não era ainda a concepção de psicogênese das doenças, ideia que só surgiria décadas depois. Naquela altura, ressaltava-se o aspecto ético-moral do esforço. Assim, o mal cardíaco era visto como uma consequência da transgressão do código moral vitoriano. Tanto para Latham quanto para Connoly, a investigação médica deveria responder à seguinte pergunta: poderiam as paixões e as chamadas ações imorais produzir males do peito? Três décadas depois, surgiu uma síndrome que, aparentemente, era composta pelos mesmos sintomas, mas cujo sentido foi bastante distinto dos males do tempo de Latham. O mal cardíaco passou a ser chamado de síndrome do coração irritável, sendo ligado a outras questões, tais como descritas no seguinte caso anedótico. Após alistar-se como voluntário no Exército da União, em 27 de agosto de 1862, William C., um jovem de 21 anos de idade, sofreu de diarreia durante três meses. Durante a marcha ao longo da linha férrea que liga as cidades de Harper e Fredericksburg, ele começou a apresentar sintomas de palpitação e dores no peito, além de um estado ofegante durante as noites. William C. permaneceu em serviço até 24 de dezembro daquele ano, quando perdeu a voz em consequência de um frio rigoroso. Como as crises de palpitação persistiram, ele foi retirado do front. Em junho de 1863, após vagar de um hospital a outro desde a dispensa, William C. chegou finalmente ao Turner’s Lane Hospital, na Filadélfia. Ali, o famoso médico Jacob Mendez Da Costa (1833-1900) tratou-o com uma série de drogas que, no entanto, surtiram pouco resultado (Da Costa, 1871, p.20). A essa altura, Da Costa havia atendido 260 homens no Turner’s Lane, hospital pelo qual era um dos responsáveis, e, justamente por ter sido encarregado do estudo dos casos de “exaustão cardíaca”, já havia conseguido formar um quadro homogêneo a respeito do mal cardíaco que assolava as tropas envolvidas na guerra civil, como assinala Wooley (2002). 11115522 HHiissttóórriiaa,, CCiiêênncciiaass,, SSaaúúddee –– MMaanngguuiinnhhooss,, RRiioo ddee JJaanneeiirroo O coração irritável nos discursos médicos anglo-americanos no fim do século XIX Um ano após o início das crises de palpitação e falta de ar, em 16 de novembro de 1863, William C. apresentava o seguinte quadro clínico. O seu pulso marcava 98 batimentos por minuto e persistiam as palpitações. O mal-estar tirava-lhe o descanso principalmente à noite. Em maio de 1864, ele ainda exibia alguma “dor cardíaca e ocasionalmente tinha palpitações. Estas, entretanto, raramente ocorriam, exceto sob esforço” (Da Costa, 1871, p.20). Seria incorreto enquadrar as descrições clínicas de Latham e de Da Costa como pertencentes à disciplina médica que mais tarde se tornaria a cardiologia, já que ela, conforme destaca Lawrence (1985), só passaria a existir como a entendemos hoje a partir de longo processo ocorrido no século XX. Assim, ainda que possamos encontrar na literatura historiográfica títulos como os de Wooley (2002), em que a designação “cardiologia” se refere às práticas e ao campo de estudos médicos do fim do século XIX, objeto de análise do presente artigo, é importante salientar que, a rigor, nesse período, tal campo enquanto disciplina médica específica ainda é incipiente. Os estudos de Lawrence mostram que a consolidação desse campo especializado só ganhou contorno mais nítido ao longo do século XX, com o paulatino processo de criação das diferentes especialidades médicas. Uma passagem que corrobora essa tese é a do médico inglês John Parkinson (1885-1976): “Lembro bem do tempo em que a medicina era indivisível ... a palavra cardiologia não estava em uso ou era utilizada de forma não amigável” (citado em Lawrence, 1985, p.8). Por outro lado, é importante notar que, a essa altura do século, embora a cardiologia não constituísse uma profissão institucionalizada, já havia um esboço da estrutura que se consolidaria posteriormente. Verifica-se isso pelo já existente reconhecimento mútuo entre os praticantes da medicina – situados em contexto europeu e norte-americano – acerca de um conjunto específico de saberes, bem como pelas concordâncias e divergências inseridas em debates considerados relevantes por esses membros, tão bem detalhadas no minucioso trabalho historiográfico de Wooley (2002). Destacam-se alguns nomes importantes para a clínica médica, em geral, e em especial para o tema do coração irritável, seja no campo da medicina militar, como William Campbell Maclean (1811-1898), Arthur Myers (1838-1921) e James Mackenzie (1853-1925), ou no estudo da casuística dessa síndrome encontrada na população civil, como Austin Flint (1812-1886), Clifford Allbutt (1836-1925), William Osler (1849-1919) e o próprio Da Costa. É fundamental aludir ao constante diálogo entre esses eminentes médicos, assim como a sua não restrição ao campo da medicina militar, ainda que, por motivos óbvios, grande parte da literatura sobre o coração irritável tenha sua origem, de fato, na casuística oriunda de situações de guerra. Outros exemplos do intercâmbio entre o contexto britânico e o norte-americano é a terminologia comum (que inclui publicações de livros e os jornais especializados), assim como a utilização de tecnologias emergentes, como o estetoscópio, que impactaram a prática médica norte-americana a partir dos anos 1850 (Reiser, 1978; cf. detalhes adiante). Esses fatores, tomados em conjunto, autorizam-nos a abordar esse campo de práticas médicas como “medicina anglo-americana”, a despeito das especificidades locais, possivelmente existentes. Simultaneamente a esse processo ocorreram, nos dois lados do Atlântico, transformações sociais, políticas e culturais. A implantação das fábricas modernas e a brusca transformação nos métodos de exploração da força de trabalho produziram não somente novos tipos de vv ..2201,, nn..24,, aoburt..--jduenz. .2 2001134, ,p p.6.15135-16-7131 77 111111555333 Yuri C. Vilarinho organização social, mas modalidades de sofrimento antes não encontradas. Em âmbito urbano, as longas horas de trabalho dos operários, na linguagem da época, exauriam-lhe os nervos ao extremo e suprimiam o arranjo natural dos músculos.2 A máquina – que surgia para libertar o trabalhador do esforço árduo – transformou-o, gradualmente, em peça automática na grande maquinaria do fim dos Novecentos. Assim, não era incomum que o cansaço fosse assunto de interesse de trabalhadores e de soldados. A fadiga estava por todo o lado. Foi assim que, no último terço do século XIX, o esgotamento do corpo e do espírito tornou-se objeto de preocupação em campos diversos. Rabinbach (1990) registra que os discursos sobre as perturbações derivadas do esforço ganharam espaço em obras literárias, jornalísticas, acadêmicas e médicas. Como analisa Sturdy (2003), o desenvolvimento das fábricas e dos novos meios de exploração do homem pelo homem catalisou um crescente interesse sobre o próprio corpo dos trabalhadores. Os pontos de vista industrial e médico se atrelavam, segundo esse autor, uma vez que o entendimento do modo de funcionamento desse corpo acarretaria um manejo mais efetivo e, como consequência, maior produtividade. Vale dizer que, nas análises médicas sobre os trabalhadores, em especial, os sintomas eram descritos como “fraqueza” ou “esgotamento nervoso”. Não havia menção às condições laborais, confundindo-se, frequentemente, as causas com os sintomas apresentados pelos ope- rários. Isso fica evidente na palestra de Clifford Allbutt, médico que atendeu a muitos operários do distrito britânico de Lancashire, berço da Revolução Industrial. Na Clinical Society of London, em 1873, ele se dedicou a pontuar as questões fundamentais de seu livro Overwork and strain of the great vessels (1871). O que chamou a atenção de Allbutt foi a irritabilidade do coração que, segundo ele, é uma consequência do trabalho feito “sem amor”. Ora, segundo esse médico, “a despeito da fadiga, da saúde diminuída e da alimentação imperfeita”, acima de qualquer coisa, o mais importante é que “o trabalho feito con amore é menos exaustivo do que os trabalhos mais sombrios” (Hewett, 1873, p.299; destaques no original). Desconsideravam-se as desu- manas condições de vida e de trabalho dos operários. Análises como a de Allbutt, em que não se dava importância aos fatores extremamente adversos da condição das fábricas, tiveram sua versão também em textos produzidos a partir de casos militares. Na literatura médico- militar inglesa, produzida a partir da casuística de soldados britânicos que lutaram na Guerra da Crimeia, tratada adiante, descreve-se, por exemplo, a “ação desordenada do coração” dos soldados, sem abordar o ambiente de guerra no qual o combatente havia estado. Observações sobre as narrativas médicas na Guerra Civil Americana Em território americano, esse “estilo” médico era semelhante, mesmo em meio à onda macabra que atravessou os EUA no período 1861-1865. A Guerra Civil foi marcada por níveis de atrocidade jamais verificados. Em solo americano, mais de um milhão de homens morreram nesse curto período. Entretanto, mesmo sendo a realidade brutal e apavoradora, ela não foi motivo para que os médicos mudassem o tom de suas análises, como veremos. Esse conflito foi o primeiro a receber os avanços da era industrial, pois as locomotivas estavam a pleno vapor, e os rifles modernos constituíam a última novidade. Paradoxalmente, 11115544 HHiissttóórriiaa,, CCiiêênncciiaass,, SSaaúúddee –– MMaanngguuiinnhhooss,, RRiioo ddee JJaanneeiirroo O coração irritável nos discursos médicos anglo-americanos no fim do século XIX o transporte das tropas não era feito por trem ou cavalo. E, pior, os soldados marchavam descalços. As distâncias eram assustadoras: de dez a vinte milhas percorridas diariamente. Em casos de urgência, quando se impunha a chegada rápida à frente de combate, os soldados eram obrigados a percorrer distâncias ainda maiores em marcha forçada. Por exemplo, a 11ª Divisão de Infantaria de Indiana marchou o total de 9.318 milhas, enquanto o 44º Regimento percorreu 725 milhas (Terrel, 1865).3 Agravando o desconforto dos soldados, havia os pesos de mochilas lotadas com uniformes, mantas, ração para vários dias, armas, munições. A extensa pesquisa de Dean (1997, p.47) nos oferece uma perspectiva (através de registros deixados principalmente em cartas, em primeira pessoa) do que consistia a vivência dos soldados. Por exemplo, um soldado que, ao lembrar-se da dureza das marchas, teve de parar e vomitar várias vezes; sua cabeça doía. Ele vomitou de oito a dez vezes até vomitar sangue. Outro soldado, numa carta à mãe: “Eu não estou muito bem dessa vez. ... Estou tão perto da morte que não posso mais escrever com qualquer nível de inteligência”. Outro, à sua esposa: “Estou bem …, exceto pelo frio e pela marcha em direção à morte ... minha querida esposa [,] eu quero que você ore por mim ... eu irei vê-la novamente ... Guerra civil constitui-se numa espécie de “guerra biológica”. Não no sentido con- temporâneo, nos moldes do que ocorreu no conflito do Golfo, por exemplo, mas no sentido de Steiner (1968, p.10-11), segundo o qual, na Guerra de Secessão, milhares de homens morreram de doenças infectocontagiosas. Embora não existam estatísticas precisas sobre a totalidade de pais e filhos mortos por tais males, segundo o mesmo autor, estima-se que 164 mil confederados e 250 mil federais morreram dessas doenças, aí incluídas cólera, febre tifoide, malária, varíola, sarampo, caxumba, tuberculose, além de uma variedade grande das denominadas “febres de trincheira”. O quadro das doenças infectocontagiosas, representado pelo arsenal de vírus e bactérias, produz uma série de perturbações que passam a assolar as tropas, desafiando o conhecimento médico da época. Além dessas, outras síndromes estranhas chegam à cena. Em fevereiro de 1863, o cirurgião James Theodore Calhoun (1864) observou o crescente número de baixas provocadas por uma doença sobre a qual não havia nenhuma explicação plausível. Os métodos tradicionais não conseguiam identificar a natureza do mal dos voluntários do 120º Regimento de Nova York. Todos recebiam o mesmo tratamento, mas enquanto uns melhoravam, a maior parte sucumbia. Do que, então, sofriam esses homens? Calhoun especula: A “causa não pode estar no camping ou nos seus arredores ...” Diz ele: “[os soldados] beberam a mesma água, comeram a mesma comida, assim como os outros regimentos; estavam muito mais protegidos, tinham um excelente comandante e o melhor dos oficiais médicos” (p.130). Esses homens padeciam de uma doença a que ele chamou “nostalgia”; um termo técnico para o que era conhecido no vocabulário popular como homesickness. Em sua opinião, esses combatentes eram vítimas de suas reminiscências, de uma memória mórbida que mantinha vívidas as cenas familiares e o lar deixados para trás. Outro militar muito preocupado com essa questão foi o general William Hammond (1828- 1900), grande nome da cirurgia nos tempos da Guerra Civil. Para Hammond, a nostalgia era uma “monomania emocional”, em cujo estado “nada desvia os pensamentos de casa e de suas lembranças” (Hammond, 1863, p.127). Já o cirurgião assistente Witt C. Peters (1863, p.75) vv ..2201,, nn..24,, aoburt..--jduenz. .2 2001134, ,p p.6.15135-16-7131 77 111111555555 Yuri C. Vilarinho descreve a melancolia caracterizada por ser um “tipo médio de insanidade causada pelo desapontamento e pela contínua distância de casa”. Segundo Roberts Bartholow, especialista em doenças simuladas, esses estados mentais “obscuros” deveriam ser observados atentamente pelo médico. Segundo ele, já havia um conhecimento acurado sobre “mania aguda”, “monomania” e “melancolia”. Já se sabia que a idiotia, o cretinismo, a imbecilidade e a demência desqualificavam um homem para o serviço militar (Bartholow, 1863, p.16). Mas havia uma série de outras condições nas quais não era possível confiar. Não se sabia até que ponto os soldados estavam fingindo ou não. As doenças “simuladas” mais comuns nesse tempo eram, segundo Dean (1997, p.115), “insanidade”, “nostalgia”, “sunstroke” e síndrome do coração irritável. Todas elas tinham em comum o fato de que sua descrição não dispunha de uma base orgânica clara. Além dessa nosografia, também segundo o mesmo autor, eram muito comuns expressões mais corriqueiras na referência aos diferentes estados de perturbação do espírito, a saber: “the blues”, “lonesome”, “played out”, “used up”, “demoralized”, “nervous”, “dispirited”, “sad”. Outros termos também faziam menção direta ao coração: “disheartened” e “downhearted”. Contrastando os medos De forma geral, a investigação da problemática nosografia desse período divide-se, grosso modo, em dois grupos. O primeiro deles privilegia uma abordagem continuísta, em que os diagnósticos da segunda metade do século XIX remeteriam aos mesmos fenômenos descritos pela nosologia médica atual, em especial, a psiquiátrica. Já o segundo grupo remete às possíveis seriações com o intuito “inicial” de compará-las, mas com a principal tarefa de averiguar as descontinuidades, isto é, a especificidade histórico-cultural de cada época, salientando as rupturas de sentido entre as diferentes síndromes. Estudos como o de John Talbott (1996), professor de história da Universidade da Califórnia, enquadram-se no primeiro grupo, já que tencionam traçar uma linha ininterrupta entre a síndrome do coração irritável e categorias nosológicas atuais, tomando como denominador comum a especificidade biológica presente em todas elas. Em seu artigo de 1996, em outros termos, ele questiona: Shell-shocked – por que essa expressão também foi uma realidade nos campos mortais da Virgínia há 150 anos? (p.41). Assim, é fundamental notar a mensagem implícita nessa questão, de uma suposta continuidade entre a categoria de “shell-shock”, criada na Primeira Guerra Mundial, a síndrome do coração irritável e a denominada síndrome de estresse pós-traumático, categoria contemporânea e que, segundo a tese central do artigo, seria essencialmente o mesmo fenômeno enquadrado nas outras duas categorias (coração irritável e “shell-shock”). Ainda nessa linha investigativa, encontram-se outros trabalhos, seja no campo da histo- riografia das guerras, como os de Dean (1991, 1997), ou no campo eminentemente clínico. Assim, na literatura atual, há diversos artigos e manuais (Hendin, Haas, 1984; Engel, 2004; Noyes, Hoehn-Saric, 1998; Saigh, Bremmer, 1999) nos quais fica evidente a abordagem continuísta e biologicista em relação às referidas doenças. Em comum, esses estudos apresentam o seguinte questionamento: os combatentes catego- rizados com a síndrome do coração irritável receberam outro nome para o que é atualmente 11115566 HHiissttóórriiaa,, CCiiêênncciiaass,, SSaaúúddee –– MMaanngguuiinnhhooss,, RRiioo ddee JJaanneeiirroo O coração irritável nos discursos médicos anglo-americanos no fim do século XIX conhecido como “síndrome do estresse pós-traumático”? Ou, na esteira de Barlow (2002) e Katsching (1999), a irritabilidade cardíaca seria um equivalente do transtorno do pânico? As respostas a essas questões não são de fácil acesso. Quando acessamos a literatura primária do coração irritável, o que vemos, deve-se salientar, não são vestígios de traumas nem de pavor (como no caso da síndrome do pânico) dos combatentes. Ao menos no vocabulário dos médicos da época, as palavras “medo” e “trauma” não estavam sequer presentes. “Fatores psicológicos” não entram no rol das causas das doenças cardíacas (já que se trata de uma síndrome do coração irritável). Ela não era uma doença psicológica ou psiquiátrica. Tratava-se de uma doença do coração. Não era um mal do espírito nem, muito menos, provocada pelas condições sociais adversas. Era um mal da maquinaria muscular cardíaca. Assim, aqueles que padeciam de seus sintomas (palpitação súbita, crises de falta de ar, tonteiras e cansaço intermitentes) não “lembravam”, não foram “traumatizados” nem sofriam de “saudades” (como os acometidos de nostalgia). Eles tinham medo de desenvolver um problema orgânico cardíaco. O distúrbio era irregularidade, excitabilidade, irritação e fraqueza do coração. O que motivou, então, os autores atuais aqui citados a correlacionar as síndromes do estresse pós-traumático, do pânico e do coração irritável? Esses autores contemporâneos abordam o “coração irritável” segundo o viés neuroquímico, e, a despeito das especificidades salientadas por cada um deles, todos concordam com a ideia de que foi o avanço da ciência que possibilitou um melhor entendimento da natureza do fenômeno. A medicina teria caminhado, então, inequivocamente, da ignorância à verdade sobre tais condições humanas. Certamente, a ciência, em geral, e as ciências que tratam das questões mentais, em parti- cular, avançaram. Aqui, entretanto, não nos caberia dizer em quais aspectos a ciência avançou. O problema em questão tem mais relação com o que Hacking (1999) levanta. Ele propõe: tomando-se um dado objeto “x” – no nosso caso, o “coração irritável” –, faria sentido dizer se “x” é construído ou real? A solução, segundo ele, não estaria em apontar nem para uma, nem para outra opção, “exclusivamente”. Ora, o coração irritável foi simultaneamente construído e real. Ele tanto foi uma construção – sua “descoberta-construção” só ocorreu por contingências sócio-históricas específicas – quanto um fenômeno muito real para os que sofreram e para os que trataram. Assim, Hacking diz que o debate (“construção versus real”) não é adequado. A questão que se deve observar quanto ao objeto tem de derivar, portanto, do uso prag- mático que o “analisador” terá em relação ao fenômeno; ou seja, dependerá da dimensão a qual se está referindo do objeto (histórica, em primeira pessoa, em terceira pessoa, biológica, literária etc.). Em outro livro, encontramos Hacking (1998) afirmando que os debates sobre a “realidade” ou sobre a “construção sócio-histórica” das “doenças mentais transitórias”, como ele as denomina – nas quais podemos inserir as síndromes aqui examinadas – chegam a ser mesmo banais.4 Em sintonia com tais ideias está o argumento de Howell (1985), autor voltado especifica- mente para a historiografia da cardiologia, segundo o qual não é somente difícil, mas mesmo impossível saber “o que foi” o coração irritável. Em vez de responder a tal questionamento, Howell mostrou de que forma o diagnóstico “coração de soldado”, criado na Primeira Guerra Mundial, estava relacionado a processos de ordem social mais ampla e de que modo a própria estrutura de pesquisa médica formada nesses anos possibilitou um novo olhar sobre as condições dos acometidos de pavor e de males do coração. Em especial, Howell argumenta vv ..2201,, nn..24,, aoburt..--jduenz. .2 2001134, ,p p.6.15135-16-7131 77 111111555777 Yuri C. Vilarinho que, pelo fato de o coração de soldado ter sido a terceira maior causa de dispensa entre os soldados britânicos, um acalorado e politizado debate foi configurado. Como consequência, o próprio estatuto da doença foi afetado, alterando políticas de pensões, formas de tratamento e, também, a possibilidade de um soldado ser levado ao paredão de fuzilamento. Na mesma linha de Howell, portanto, importa-nos menos saber da realidade intrínseca da dita síndrome (se é que ela existe), do que da forma como determinados vetores socioculturais foram mobilizados, possibilitando a sua emergência, tanto no contexto americano como no europeu na segunda metade do século XIX. Ainda que não possamos conhecer a natureza das patologias citadas, a afirmação de que o coração irritável foi “outro nome” para o estresse pós-traumático é difícil de ser mantida à luz da análise do que estava em questão nos anos 1860. Preliminarmente, destacamos duas características desse período. A primeira se refere ao fato de que não existia o referente “trauma” na guerra civil. O uso da palavra começou a ser utilizado, com mais frequência, dos anos 1870 em diante, devido à publicação do livro de John Eric Erichsen (1818-1896), em 1866.5 A despeito do sofrimento que possa ter existido na mente do soldado padecido de palpitações, não havia referência alguma ao que hoje conhecemos como “trauma”. O outro aspecto a ser apontado segue-se a partir do próprio entendimento de trauma. O que está em questão no trauma é, necessariamente, uma sequela vivida “posteriormente” ao horror vivenciado de forma impactante por uma pessoa. Assim, o problema que pode ser levantado é o seguinte: como saber se os soldados que desenvolveram palpitações e toda sintomatologia rica que as acompanha sofreram um choque anterior como combatentes? Segundo Sheffer (2009), a historiografia das doenças mentais produzidas em períodos de guerra parece partir do a priori de que existiu em todos os conflitos o que é conhecido hoje como “transtorno de estresse pós-traumático”. Discordando de tal ideia, ele chama atenção para o fato de que não há, no caso da Guerra Civil Americana, argumentos convincentes ou documentos que provem uma relação de igualdade entre a síndrome do coração irritável e a do estresse pós-traumático. Aliás, os médicos da época não deixaram registros de nada que pudesse ser minimamente semelhante ao estresse pós-traumático (p.4). Sheffer pondera que tal ausência de documentos dá margem a outra hipótese, bastante plausível: a de que, na verdade, tal doença pós-trauma nem mesmo existiu entre 1861 e 1865. Sheffer (2009) não discorda da ideia generalizada de que todo conflito de guerra é “essencialmente” terrível; a realidade é brutal para todos aqueles que dela participam, e os danos físicos e morais fazem parte das guerras em todas as eras. No entanto, desenvolve a tese de que os soldados americanos da Guerra Civil viviam em um tempo bastante peculiar no que se refere às crenças sobre, em primeiro lugar, honra, e, em segundo lugar, morte. Dessa forma, seria justamente por essa “cultura da honra”, nos termos do autor, que teria havido uma prevenção ou, no mínimo, uma razoável redução no número de casos médicos cuja sintomatologia psicológica teria surgido como consequência de conflitos graves vivenciados em combate. A despeito de a referida tese salientar a importância dos fatores culturais na causação das doenças, certas distinções em relação ao que aqui se desenvolve devem ser destacadas. Consideramos razoável a hipótese de que os soldados não tenham desenvolvido sintomas 11115588 HHiissttóórriiaa,, CCiiêênncciiaass,, SSaaúúddee –– MMaanngguuiinnhhooss,, RRiioo ddee JJaanneeiirroo O coração irritável nos discursos médicos anglo-americanos no fim do século XIX psicológicos pós-trauma por estarem inseridos num ambiente culturalmente distinto do atual e por terem enraizado em seu arcabouço identitário valores como honra, patriotismo e uma posição positiva frente à morte. Aliás, tal argumento se coaduna com a linha que seguimos, pois considera a “historicidade” das patologias desenvolvidas pelos soldados da Guerra Civil Americana. No entanto, discordamos da ideia de que os soldados não desenvolveram “neurose de batalha” ou “síndrome pós-traumática” unicamente por terem lidado com a morte de forma positiva ou por terem sido mais patriotas do que, por exemplo, os combatentes envolvidos na Primeira Guerra Mundial. Sim, é possível que tais valores tenham prevenido os soldados americanos – de forma semelhante como alemães, de um lado, e soviéticos, de outro, nos anos 1940 – de sofrer prejuízos psicológicos em vista de sua fortes motivações ideológicas durante a guerra. Entretanto, se concordássemos com a tese de que o “patriotismo” foi uma espécie de antídoto, simplesmente, teríamos de entender aqueles soldados que entraram na casuística médica com sintomas de palpitação, falta de ar e sensação de morte iminente, como portadores, de fato, de uma doença psiquiátrica, isto é, portadores do “transtorno de estresse pós-traumático”. Diferentemente da abordagem de Sheffer, entendemos que o que faz com que uma pessoa, seja combatente ou não, fique doente por essa ou por outra síndrome, é a experiência de estar doente, de tal modo que essa experiência é fruto de uma coemergência de múltiplos fatores, os quais incluem certamente os fatores biológicos (feridas, coagulação sanguínea, pulsação, batimento cardíaco, traumas físicos e psicológicos etc.), mas a eles não se reduzem. Tal experiência emerge de uma rede de valores que se entrelaçam e possibilitam, enfim, a vivência de estar doente de uma forma, e não de outra. O fato de não ter existido a “síndrome do estresse pós-traumático” no período da Guerra Civil Americana deriva, sim, de “fatores culturais”, mas segundo a ideia de que o que não possibilitou sua existência foi a coemergência dos múltiplos fatores citados. Para entender tal rede complexa e mostrar que a “síndrome” desenvolvida pelos soldados da guerra dos anos 1860 não é sinônimo do “transtorno de estresse pós-traumático” da atualidade faz-se indispensável, portanto, destacar e analisar alguns de seus emaranhamentos. O exercício de contrastar o “medo” da Guerra Civil com o de outros contextos torna-se importante. Moran (1967, p.61), importante estudioso das “neuroses traumáticas” da Primeira Guerra Mundial, afirma que “quase todos os homens sentiram medo” nesse período. Para Dollard (1943), que analisou a experiência fóbica de trezentos militantes da brigada comunista Abraham Lincoln na Guerra Civil Espanhola (1936-1939), 3/4 dos veteranos sentiram medo “enquanto” iam para o combate pela primeira vez. Após a primeira exposição à batalha, 36% confessaram ter medo “sempre” (antes, durante e após a batalha), e 55% sentiram medo apenas em algumas ocasiões. Ainda mais significativo foi o fato de que oito em cada dez pensaram ser melhor admitir seus medos em público, discutindo-os junto aos seus camaradas, do que guardá-los para si. Essa atitude era entendida como o primeiro passo no controle individual e coletivo do medo. “Coragem não é ‘não sentir medo’ (fearlessness)”, escreve Dollard, mas é “ser capaz de fazer o trabalho mesmo quando amedrontado” (p.9). vv ..2201,, nn..24,, aoburt..--jduenz. .2 2001134, ,p p.6.15135-16-7131 77 111111555999 Yuri C. Vilarinho O fearlessness dos anos 1860 As circunstâncias da Guerra Civil são distintas. Em seu estudo seminal, Linderman (1987) analisou as narrativas em primeira pessoa de soldados e militares médicos das tropas do Sul e do Norte. Segundo ele, na guerra americana não havia espaço para medo, mas somente para ações heroicas, coragem e “fearlessness”.6 Na verdade, não houve somente “falta de medo” nessa época, pois coexistiam, de fato, dois grandes grupos de narrativas em primeira pessoa: um em que o medo não está presente (mas a coragem), e outro em que ele está explícito. Nesse quadro, um dado que nos salta aos olhos é a grande preocupação em ocultar o referente medo, diferentemente das guerras seguintes, como veremos. Se os escritos dos soldados se subdividem em dois grupos (os que explicitam o seu pavor e aqueles que tentam ocultá-lo), por outro lado, as narrativas em “terceira pessoa”, isto é, realizadas pelos médicos militares, são marcadas “exclusivamente” pela ausência de referências ao medo. É nesse sentido, então, que se pode falar em “fearlessness” na guerra americana. Tal falta de medo pode ser flagrada no artigo de Henry Hartshorne (1823-1897), publicado em um jornal médico em 3 de junho de 1863. Após a pavorosa batalha de Antietam, Hartshorne escreve um artigo clínico sobre os seus pacientes. Por mais que tal batalha tenha sido caracteriza como o dia mais sangrento da história americana – mais de 23 mil mortos (McPherson, 1988) –, Hartshorne avisa a comunidade médica sobre a “exaustão muscular do coração” de seus soldados. Além disso, enfatiza quais seriam as consequências do esforço prolongado no funcionamento cardíaco dos combatentes: pericardite, dilatação ou hipertrofia do coração, doença das válvulas cardíacas. Tal inquietude não era associada a inflamações. Hartshorne (1863) não cita o horror que os soldadeos atravessaram. A rigor, a palavra “nervosidade” aparece uma única vez e sem ênfase. Ora, então o que estava em questão? A resposta é clara: fraqueza do coração não associada aos “distúrbios funcionais da ação cardíaca” ou do abuso de tabaco e à masturbação (p.89). Os sintomas incluíam um pulso rápido enquanto o paciente descansava, além do aumento anormal da taxa cardíaca, mesmo quando era feito um esforço mais sutil. O soldado não parecia saudável, embora o pulso, a percussão do peito e o uso do estetoscópio confirmassem que esses homens não sofriam de alterações orgânicas do coração. Hartshorne não pensava que tal doença era “palpitação nervosa ou simpática”. As causas eram “esforço prolongado” e “falta de descanso”. As narrativas dos que atendiam e daqueles que eram tratados não eram uníssonas. Mas por que, de um lado, a arte da cura aproximada da própria arte da guerra e, do outro, as vozes apavoradas daqueles que testemunharam a barbárie do front? No tópico a seguir, nos deterem- os mais atentamente nos ideais de valores que se relacionavam a essa postura médica frente ao mal-estar de seus pacientes. Hipóteses médicas: masculinidade, coragem, fingimento e doença O quadro que estamos querendo delinear é complexo. Por parte da classe médica, o amplo espectro de reações que os combatentes exibiram em face da guerra foi objeto de análises nas quais ora estavam ausentes referências às condições da batalha, ora banalizava-se o sofrimento dos soldados. Tal cultura foi pautada pela erosão de ideais éticos, como também por estereótipos de raça. Vejamos alguns exemplos. 11116600 HHiissttóórriiaa,, CCiiêênncciiaass,, SSaaúúddee –– MMaanngguuiinnhhooss,, RRiioo ddee JJaanneeiirroo
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