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O caminho da porta / O protocolo PDF

68 Pages·2003·0.23 MB·Portuguese
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O caminho da porta O protocolo Texto-fonte: Teatro de Machado de Assis, org. de João Roberto Faria, São Paulo: Martins Fontes, 2003. Publicada originalmente Teatro de Macaho de Assis v.I, Rio de Janeiro, Tipografia do Diário do RJ, 1863. Encenadas pela primeira vez no Ateneu Dramático do Rio de Janeiro, em setembro e novembro de 1862, respectivamente. * CARTA A QUINTINO BOCAIÚNA Meu amigo, Vou publicar as minhas duas comédias de estréia; e não quero fazê-lo sem conselho da tua competência. Já uma crítica benévola e carinhosa, em que tomaste parte, consagrou a estas duas composições palavras de louvor e animação. Sou imensamente reconhecido, por tal, aos meus colegas da imprensa. Mas o que recebeu na cena o batismo do aplauso pode, sem inconveniente, ser trasladado para o papel? A diferença entre os dois meios de publicação não modifica o juízo, não altera o valor da obra? É para a solução destas dúvidas que recorro à tua autoridade literária. O juízo da imprensa viu nestas duas comédias — simples tentativas de autor tímido e receoso. Se a minha afirmação não envolve suspeita de vaidade disfarçada e mal cabida, declaro que nenhuma outra solução leva nesses trabalhos. Tenho o teatro por coisa muito séria, e as minhas forças por coisa muito insuficiente; penso que as qualidades necessárias ao autor dramático desenvolvem-se e apuram-se com o tempo e o trabalho; cuido que é melhor tatear para achar; é o que procurei e procuro fazer. Caminhar destes simples grupos de cenas — à comédia de maior alcance, onde o estudo dos caracteres seja consciencioso e acurado, onde a observação da sociedade se case ao conhecimento prático das condições do gênero — eis uma ambição própria de ânimo juvenil, e que eu tenho a imodéstia de confessar. E, tão certo estou da magnitude da conquista, que me não dissimulo o longo estádio que há percorrer para alcançá-la. E mais. Tão difícil me parece este gênero literário, que, sob as dificuldades aparentes, se me afigura que outras haverá menos superáveis e tão sutis, que ainda as não posso ver. Até onde vai a ilusão dos meus desejos? Confio demasiado na minha perseverança? Eis o que espero saber de ti. E dirijo-me a ti, entre outras razões, por mais duas, que me parecem excelente: razão de estima literária e razão de estima pessoal. Em respeito à tua modéstia, calo o que te devo de admiração e reconhecimento. O que nos honra, a mim e a ti, é que a tua imparcialidade e a minha submissão ficam salvas da mínima suspeita. Serás justo e eu dócil; terá ainda por isso o meu reconhecimento; e eu escapo a esta terrível sentença de um escritor: "Les amitiés qui ne résistent pas à la franchise, valent-elles un regret?" Teu amigo e colega, Machado de Assis. CARTA AO AUTOR Machado de Assis, Respondo à tua carta. Pouco preciso dizer-te. Fazes bem em dar ao prelo os teus primeiros ensaios dramáticos. Fazes bem, porque essa publicação envolve uma promessa e acarreta sobre ti uma responsabilidade para com o público. E o público tem o direito de ser exigente contigo. É moço, e foste dotado pela Providência com um belo talento. Ora, o talento é uma arma divina que Deus concede aos homens para que estes a empreguem no melhor serviço dos seus semelhantes. A idéia é uma força. Inoculá-la no seio das massas é inocular-lhe o sangue puro da regeneração moral. O homem que se civiliza, cristianiza-se. Quem se ilustra, edifica-se. Porque a luz que nos esclarece a razão é a que nos alumiam a consciência. Quem aspira a ser grande, não pode deixar de aspirar a ser bom. A virtude é a primeira grandeza deste mundo. O grande homem é o homem de bem. Repito, pois, nessa obra de cultivo literário há uma obra de edificação moral. Das muitas e variadas formas literárias que existem e que se prestam ao conseguimento desse fim escolheste a forma dramática. Acertaste. O drama é a forma mais popular, a que mais se nivela com a alma do povo, a que mais recursos possui para atuar sobre o seu espírito, a que mais facilmente o comove e exalta; em resumo, a que tem meios mais poderosos para influir sobre o seu coração. Quando assim me exprimo, é claro que me refiro às tuas comédias, aceitando-as como elas devem ser aceitas por mim e por todos, isto é, como um ensaio, como uma experiência, e, se podes admitir a frase, como uma ginástica de estilo. A minha franqueza e a lealdade que devo à estima que me confessas obrigam-me a dizer-te em público o que já te disse em particular. As tuas duas comédias, modeladas ao gosto dos provérbios franceses, não revelam nada mais do que a maravilhosa aptidão do teu espírito, a profusa riqueza do teu estilo. Não inspiram nada mais do que simpatia e consideração por um talento que se amaneira a todas as formas da concepção. Como lhes falta a idéia, falta-lhes a base. São belas, porque são bem escritas. São valiosas, como artefatos literários, mas até onde a minha vaidosa presunção crítica pode ser tolerada, devo declarar-te que elas são frias e insensíveis, como todo o sujeito sem alma. Debaixo deste ponto de vista, e respondendo a uma interrogação direta que me diriges, devo dizer-te que havia mais perigo em apresentá-las ao público sobre a rampa da cena do que há em oferecê-las à leitura calma e refletida. O que no teatro podia servir de obstáculo à apreciação da tua obra, favorece-a no gabinete. As tuas comédias são para serem lidas e não representadas. Como elas são um brinco de espírito podem distrair o espírito. Como não têm coração não podem pretender sensibilizar a ninguém. Tu mesmo assim as consideras, e reconhecer isso é dar prova de bom critério consigo mesmo, qualidade rara de encontrar-se entre os autores. O que desejo o que te peço, é que apresente nesse mesmo gênero algum trabalho mais sério, mais novo, mais original e mais completo. Já fizeste esboços, atira-te à grande pintura. Posso garantir-te que conquistarás aplausos mais convencidos e mais duradouros. Em todo caso, repito-te que fazes bem. Sujeita-te à crítica de todos, para que possas corrigir-te a ti mesmo. Como te mostras despretensioso, colherás o fruto são da tua modéstia não fingida. Pela minha parte estou sempre disposto a acompanhar-te, retribuindo-te em simpatia toda a consideração que me impõe a tua jovem e vigorosa inteligência. Teu Q. Bocaiúva. O CAMINHO DA PORTA Comédia em um ato Representada pela primeira vez no Ateneu Dramático do Rio de Janeiro em setembro de 1862. PERSONAGENS DOUTOR CORNÉLIO VALENTIM INOCÊNCIO CARLOTA Atualidade. Em casa de Carlota (Sala elegante. — Duas portas no fundo, portas laterais, consolos, piano, divã, poltronas, cadeiras, mesa, tapete, espelhos, quadros; figuras sobre os consolos; álbum, alguns livros, lápis, etc. sobre a mesa.) Cena I VALENTIM (assentado à esquerda alta); o DOUTOR (entrando) VALENTIM Ah! És tu? DOUTOR Oh! Hoje é o dia das surpresas. Acordo, leio os jornais e vejo anunciado para hoje o Trovador. Primeira surpresa. Lembro-me de passar por aqui para saber se D. Carlota queria ir ouvir a ópera de Verdi, e vinha pensando na triste figura que devia fazer em casa de uma moça do tom às 10 horas da manhã quando te encontro firme como uma sentinela no posto. Duas surpresas. VALENTIM A triste figura sou eu? DOUTOR Acertaste. Lúcido como uma sibila. Fazes uma triste figura, não te deve ocultar. VALENTIM (irônico) Ah! DOUTOR Tens ar de não dar crédito ao que digo! Pois olha, tens diante de ti a verdade em pessoa, com a diferença de não sair de um poço, mas da cama, e de vir em traje menos primitivo. Quanto ao espelho, se o não trago comigo, há nesta sala um que nos serve com a mesma sinceridade. Mira-te ali. Estás ou não uma triste figura? VALENTIM Não me aborreças. DOUTOR Confessas então? VALENTIM És divertido como os teus protestos de virtuoso! Aposto que me queres fazer crer no desinteresse das tuas visitas a D. Carlota? DOUTOR Não. VALENTIM Ah! DOUTOR Sou hoje mais assíduo do que era há um mês, e a razão é que há um mês que começaste a fazer-lhe corte. VALENTIM Já sei: não me queres perder de vista. DOUTOR Presumido! Eu sou lá inspetor dessas coisas? Ou antes, sou; mas o sentimento que me leva a estar presente a essa batalha pausada e paciente está muito longe do que pensas; estudo o amor. VALENTIM Somos então os teus compêndios? DOUTOR É verdade. VALENTIM E o que tens aprendido? DOUTOR Descobri que o amor é uma pescaria... VALENTIM Queres saber de uma coisa? Estão prosaicos como os teus libelos. DOUTOR Descobri que o amor é uma pescaria... VALENTIM Vai-te com os diabos! DOUTOR Descobri que o amor é uma pescaria. O pescador senta-se sobre um penedo, à beira do mar. Tem ao lado uma cesta com iscas; vai pondo uma por uma no anzol, e atira às águas a pérfida linha. Assim gasta horas e dias até que o descuidado filho das águas agarra no anzol, ou não agarra e... VALENTIM És um tolo. DOUTOR Não contesto; pelo interesse que tomo por ti. Realmente dói-me ver-te há tantos dias exposto ao sol, sobre o penedo, com o caniço na mão, a gastar as tuas iscas e a tua saúde quero dizer, a tua honra. VALENTIM A minha honra? DOUTOR A tua honra, sim. Pois para um homem de senso e um tanto sério o ridículo não é uma desonra? Tu estás ridículo. Não há um dia em que não venhas gastar quatro, cinco horas a cercar esta viúva de galanteios e atenções, acreditando talvez tiver adiantado muito, mas estando ainda hoje como quando começaste. Olha, há Penélopes da virtude e Penélopes do galanteio. Umas fazem e desmancham teias por terem muito juízo; outras as fazem e desmancham por não terem nenhum. VALENTIM Não deixas de ter tal ou qual razão. DOUTOR Ora, graças a Deus! VALENTIM Devo, porém prevenir-te de uma coisa: é que ponho nesta conquista a minha honra. Jurei aos meus deuses casar-me com ela e hei de manter o meu juramento. DOUTOR Virtuoso romano! VALENTIM Faço o papel de Sísifo. Rolo a minha pedra pela montanha; quase a chegar com ela ao cimo, uma mão invisível fá-la despenhar de novo, e aí volto a repetir o mesmo trabalho. Se isto é um infortúnio, não deixa de ser uma virtude. DOUTOR A virtude da paciência. Empregavas melhor essa virtude em fazer palitos do que em fazer a roda a esta namoradeira. Sabes o que aconteceu aos companheiros de Ulisses passando pela ilha de Circe? Ficaram transformados em porcos. Melhor sorte teve Actéon que por espreitar Diana no banho passou de homem a veado. Prova evidente de que é melhor pilhá-las no banho do que lhes andar a roda nos tapetes da sala. VALENTIM Passas de prosaico a cínico. DOUTOR É uma modificação. Tu estás sempre o mesmo ridículo. Cena II OS MESMOS, INOCÊNCIO (trazido por um criado) INOCÊNCIO Oh! DOUTOR (baixo a Valentim) Chega o teu competidor. VALENTIM (baixo) Não me vexes. INOCÊNCIO Meus senhores! Já por cá? Madrugaram hoje! DOUTOR É verdade. E V. S.? INOCÊNCIO Como está vendo. Levanto-me sempre com o sol. DOUTOR Se V. S. é outro. INOCÊNCIO (não compreendendo) Outro quê? Ah! Outro sol! Este doutor tem umas expressões tão... fora do vulgar! Ora veja; a mim ainda ninguém se lembrou de dizer isto. Sr. Doutor, V. S. há de tratar de um negócio que trago pendente no foro. Quem fala assim é capaz de seduzir a própria lei! DOUTOR Obrigado! INOCÊNCIO Onde está a encantadora D. Carlota? Trago-lhe este ramalhete que eu próprio colhi e arranjei. Olhem como estas flores estão bem combinadas: rosas, paixão; açucenas, candura. Que tal? DOUTOR Engenhoso! INOCÊNCIO (dando-lhe o braço) Agora ouça, Sr. Doutor. Decorei umas quatro palavras para dizer ao entregar-lhe estas flores. Veja se condizem com o assunto. DOUTOR Sou todo ouvidos. INOCÊNCIO "Estas flores são um presente que a primavera faz à sua irmã por intermédio do mais ardente admirador de ambas." Que tal? DOUTOR Sublime! (Inocêncio ri-se à socapa) Não é da mesma opinião? INOCÊNCIO Pudera não ser sublime: se eu próprio copiei isto de um Secretário dos Amantes! DOUTOR Ah! VALENTIM (baixo ao Doutor) Gabo-te a paciência! DOUTOR (dando-lhe o braço) Pois que tem! É miraculosamente tolo. Não é da mesma espécie que tu... VALENTIM Cornélio! DOUTOR Descansa; é de outra muito pior. Cena III OS MESMOS, CARLOTA CARLOTA Perdão, meus senhores, de havê-los feito esperar... (distribui apertos de mão) VALENTIM Nós é que lhe pedimos desculpa de havermos madrugado deste modo... DOUTOR A mim, traz-me um motivo justificável. CARLOTA (rindo) Ver-me? (vai sentar-se) DOUTOR Não. CARLOTA Não é um motivo justificável, esse? DOUTOR Sem dúvida; incomodá-la é que o não é. Ah! Minha senhora, eu aprecio mais do que nenhum outro o despeito que deve causar a uma moça uma interrupção no serviço da toilette. Creio que é coisa tão séria como uma quebra de relações diplomáticas. CARLOTA O Sr. Doutor graceja e exagera. Mas qual é esse motivo que justifica a sua entrada em minha casa, há esta hora? DOUTOR Venho receber as suas ordens acerca da representação desta noite. CARLOTA Que representação? DOUTOR Canta-se o Trovador. INOCÊNCIO Bonita peça! DOUTOR Não pensa que deve ir? CARLOTA Sim, e agradeço-lhe a sua amável lembrança. Já sei que vem oferecer-me o seu camarote. Olhe, há de desculpar-me este descuido, mas prometo que vou quanto antes tomar uma assinatura. INOCÊNCIO (a Valentim) Ando desconfiado do Doutor! VALENTIM Por quê? INOCÊNCIO Veja como ela o trata! Mas eu vou desbancá-lo, com minha frase do Secretário dos Amantes... (indo a Carlota) Minha senhora, estas flores são um presente que a primavera faz à sua irmã... DOUTOR (completando a frase) Por intermédio do mais ardente admirador de ambas. INOCÊNCIO Sr. Doutor! CARLOTA O que é? INOCÊNCIO (baixo) Isto não se faz! (a Carlota) Aqui tem minha senhora... CARLOTA Agradecida. Por que se retirou ontem tão cedo? Não lho quis perguntar... de boca; mas creio que o interroguei com o olhar. INOCÊNCIO (no cúmulo da satisfação) De boca?... Com o olhar?... Ah! Queira perdoar minha senhora... mas um motivo imperioso... DOUTOR Imperioso... não é delicado. CARLOTA Não exijo saber o motivo; supus que se houvesse passado alguma coisa que o desgostasse... INOCÊNCIO Qual, minha senhora; o que se poderia passar? Não estava eu diante de V. Exa. para consolar-me com seus olhares de algum desgosto que houvesse? E não houve nenhum. CARLOTA (ergue-se e bate-lhe com o leque no ombro) Lisonjeiro! DOUTOR (descendo entre ambos) V. Exa. há de desculpar-me se interrompo uma espécie de idílio com uma coisa prosaica, ou antes, com outro idílio, de outro gênero, um idílio do estômago; o almoço... CARLOTA Almoça conosco? DOUTOR

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