DORIS MUNHOZ DE LIMA O APRENDIZ DE FEITICEIRO: realidade, imaginação e magia na obra de Mario Quintana. CURITIBA 2008 DORIS MUNHOZ DE LIMA O APRENDIZ DE FEITICEIRO: realidade, imaginação e magia na obra de Mario Quintana. Dissertação apresentada ao Curso de Pós- graduação em Letras da Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre na área de Estudos Literários. Orientador: Prof. Dr. Fernando Cerisara Gil. CURITIBA 2008 Agradeço Ao meu Deus, sempre. Ao professor Fernando C. Gil, pela orientação sensata e competente. Aos meus pais e ao Jean, porque demonstraram seu amor em forma de paciência incessante e apoio incondicional. “A vida só é possível reinventada.” (Cecília Meireles, em Reinvenção) RESUMO A imaginação é o centro de interesse da poética quintaneana, o que pode ser comprovado através da leitura dos muitos textos metalingüísticos nos quais Mario Quintana explicita o seu processo criativo e a sua concepção da própria poesia. Para ele, a criação poética está intrinsecamente ligada a essa capacidade naturalmente humana de criar imagens, mas também depende do trabalho racional do escritor com a palavra. A partir desses dois momentos, surge uma poesia que é, ao mesmo tempo, expressão da fantasia – para Quintana, a criação de uma supra-realidade, em que as imagens do mundo perceptível e do fantástico se misturam arbitrariamente – e do intelecto, da busca consciente pela magia da linguagem. O Aprendiz de Feiticeiro, obra de 1950, é um momento essencial para que possamos verificar como isso se manifesta. Na obra, têm sido freqüentemente apontadas características que revelam pontos de contato da poesia do autor gaúcho com a estética do surrealismo, as quais procuramos verificar, ressaltando o sentido relativo dessa aproximação, já que o poeta rejeita completamente o automatismo psíquico, princípio básico da vanguarda. Em seguida, consideramos a valorização da fantasia a partir de uma perspectiva sócio-histórica. Apontamos a tensão entre mundo real e mundo imaginário que se manifesta nas páginas dO Aprendiz como sinal do desajustamento do poeta aos valores da sociedade capitalista moderna. Segundo esse ponto de vista, procuramos demonstrar como o sujeito-lírico reage à consciência de que sua poesia deixa de ser, nesse momento, uma afirmação da voz da coletividade: de um lado, através da criação de imagens que expressam a face sombria e angustiante da realidade, revelando a sua solidão e um desejo obsessivo de morte; de outro, através de um completo mergulho no imaginário e de um abandono simbólico do mundo sensível. PALAVRAS-CHAVE: Poesia, Mario Quintana, Realidade, Imaginação. ABSTRACT The imagination is Mario Quintana’s poetic focus, what can be confirmed through the reading of several metalinguistic texts in which the poet explains his creative process and his conception of his own poetry. For him, the poetic creation is intrinsically linked to that naturally human capacity of creating images, but it also depends on the poet’s rational work with the language. A unique type of poetry arises from the merging of these two moments: at the same time, fantasy expression – according to Quintana, the creation of a supra-reality, in which the perceptible world images and the fantastic ones join arbitrarily – and intellect expression, which searches consciously the language magic. O Aprendiz de Feiticeiro, a work published in 1950, is an essential moment, in which we are able to verify this process. On that work, characteristics that reveal points of contact between Quintana’s poetry and the surrealistic esthetics have been frequently pointed out. We try to verify it, emphasizing the relative meaning of that approximation, once the poet rejects completely the psychic automatism, which is the vanguard essential principle. Furthermore, this dissertation analyses the fantasy valorization from a social-historical perspective. We point out the existing tension between the real world and the imaginary world that becomes manifest on O Aprendiz, as a sign of the poet’s disagreement with the values of the capitalistic society. According to this point of view, we try to demonstrate how the lyric subject reacts to the knowledge that his poetry is not the affirmation of his society voice: on the one hand, by creating images that express the shady and afflictive side of reality, bringing out his loneliness; on the other hand, through a plunge into the imagination and the symbolic abandonment of the perceptible world. KEY-WORDS: poetry, Mario Quintana, reality, imagination. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.........................................................................................................................1 CAPÍTULO I A INVENÇÃO DA VERDADE................................................................................................7 1.1 Poesia: imaginação e realidade............................................................... 7 1.2 A Busca da Pura Imagem..................................................................... 17 1.3 A Memória que Enlouqueceu............................................................... 23 1.4 Os Quintanares e o Surrealismo........................................................... 29 1.4.1 O Surrealismo como “Espírito de Época”......................................... 32 1.4.2 Algumas Aproximações ................................................................... 35 1.4.3 Entre o racional e o surreal............................................................... 42 CAPÍTULO II A REALIDADE SE IMPÕE...................................................................................................53 2.1 A Questão Social.................................................................................... 54 2.2 O Poeta Contra o Meio......................................................................... 61 2.3 A Poesia do Eu: Solidão e Individualismo........................................... 67 2.4 Um Mundo Sem Mitos.......................................................................... 84 2.4.1 Uma Pausa no Tempo....................................................................... 98 2.5 A Presença da Morte........................................................................... 105 CAPÍTULO III A FANTASIA RESISTE.......................................................................................................121 3.1 Entre os Loucos, os Mortos e as Crianças.......................................... 121 3.2 Quem Faz um Poema Salva um Afogado........................................... 134 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................147 BIBLIOGRAFIA...................................................................................................................149 1. OBRAS DE MARIO QUINTANA....................................................................................149 1.1 Publicações em seqüência cronológica............................................... 149 1.2 Edições utilizadas neste estudo........................................................... 150 2. BIBLIOGRAFIA SELECIONADA SOBRE O AUTOR.................................................151 3. BIBLIOGRAFIA GERAL................................................................................................153 1 INTRODUÇÃO “- Eu amo o mundo! Eu detesto o mundo! Eu creio em Deus! Deus é um absurdo! Eu vou me matar! Eu quero viver! - Você é louco? - Não, sou poeta.” Mario Quintana, “Simultaneidade”. O Aprendiz de Feiticeiro é a quarta obra da carreira literária de Mario Quintana, publicada em 1950, após os sonetos dA Rua dos Cataventos (1940), as Canções (1946) e os poemas em prosa do Sapato Florido (1948). O título do livro faz referência a uma antiga narrativa alemã, imortalizada pelo poeta romântico Goethe em sua balada Der Zauberlehrling 1 e, posteriormente, por Walt Disney, num longa-metragem em que o seu famoso personagem Mickey fazia o papel do aprendiz de mago. Segundo Quintana mesmo explicaria em um depoimento posterior, 2 o nome do livro se deve ao fato de que, ao conhecer essa narrativa, ele se identificou com a aventura vivida pelo personagem. Lembremos, brevemente, o enredo: Encarregado de limpar o laboratório na ausência de seu mestre, o aprendiz resolve usar um feitiço às escondidas, fazendo com que uma vassoura crie braços e pernas e vá buscar água para que seja feita a limpeza. Tudo corre normalmente, até que ele percebe que deve fazer a vassoura parar, pois o laboratório poderá ser inundado. Não conhecendo as palavras mágicas para contê-la, tem a infeliz idéia de parti-la ao meio. Ocorre, então, uma multiplicação de vassouras, pois cada pedaço transforma-se em outra, que recomeça a tarefa. No final, tendo o ambiente já sido tomado pela água, aparece o Mestre Feiticeiro, que resolve a situação com suas palavras mágicas. Conforme Quintana, no seu caso, ao lidar com forças desconhecidas (as forças da linguagem, sempre imprevisíveis, mesmo para o poeta), o que ocorreu foi uma “multiplicação de poemas”, em vez de uma “incontrolável multiplicação de vassouras”. É como se as palavras fugissem ao seu controle, tornando-se as “palavras em liberdade” que buscavam os poetas surrealistas nos seus exercícios de “escrita automática”. Conforme já observou Gilberto Mendonça Teles, Quintana se coloca como aquele que se surpreende com a própria criação, com a magia da palavra poética, a qual acaba por assumir vida própria, multiplicando os poemas, em aparente desordem, no laboratório do 1 Em português, O Aprendiz de Feiticeiro. 2 A explicação consta em um texto publicado em Porta Giratória (p. 21). 2 livro. 3 Da mesma forma, estamos certos de que o autor poderia ser comparado, igualmente, ao Mestre Feiticeiro, àquele que manipula com precisão as forças desconhecidas da linguagem, consciente do resultado de seus atos. O poeta demonstra ter o controle racional de seu instrumento – a palavra – e utilizar intencionalmente as suas magias. Essa ambigüidade pode ser verificada a partir da leitura da obra escolhida, em que o aspecto aparentemente espontâneo dos poemas não resiste a um exame mais atento, o qual revela o trabalho cuidadoso do autor na elaboração de seus versos. Desde a sua publicação, O Aprendiz tem-se consagrado como um momento importante na carreira de Quintana. Críticos e outros poetas, como Manuel Bandeira, Augusto Meyer e Carlos Drummond de Andrade, consideraram o livro como aquele em que melhor pode ser reconhecida a “voz genuína” 4, do poeta gaúcho. Talvez isso se deva à própria característica múltipla da obra, que revela exemplarmente as várias faces da poesia quintaneana. Nela, Quintana exercita o livre trânsito pelo verso livre e pelo metrificado, pela realidade cotidiana e pela imagem da fantasia, pela alegria dos versos iluminados e coloridos e também por aqueles que revelam o lado sombrio de sua personalidade lírica. Denunciam-se, na obra, características que seriam recorrentes em publicações posteriores, como a maior liberdade formal e certo “tom” surrealista, o qual não estava ainda tão evidente nos livros anteriores e passou a ser, desde então, um traço sempre ressaltado no estilo do autor. Segundo as palavras de Fausto Cunha, um dos críticos que primeiro se dedicou a exames mais atentos da obra de Quintana, na poesia do autor gaúcho podem ser identificadas características que revelam tanto o seu forte contato inicial com a estética simbolista quanto os posteriores influxos surrealistas, instaurando o que Cunha chamou de “dualismo sideral”, dada a natureza “cósmica” da poesia desses dois estilos 5. Fiel à sua apregoada fama de “gazeador de todas as escolas”, Quintana consubstancia em sua obra elementos que podem ser diretamente relacionados com a poesia produzida nos primeiros anos de nosso modernismo 6, como os temas cotidianos e a simplicidade de linguagem, e outros que remontam à tradição anterior, como as formas fixas, que ele jamais abandonou por completo. No decorrer de nossas leituras 3 TELES, Gilberto Mendonça. A Enunciação Poética de Mario Quintana. In: Retórica do Silêncio I: Teoria e Prática do Texto Literário. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1989, p. 255. 4 A expressão foi usada por Augusto Meyer ao comentar o lançamento da obra no artigo “O Fenômeno Quintana”, publicado em diversos jornais e, posteriormente, também na coletânea Mario Quintana: Vida e Obra, de Nelson Fachinelli (Porto Alegre: Ed. Bels, 1976, p. 63-67) 5 CUNHA, Fausto. Assassinemos o Poeta. In : FACHINELLI. Op. Cit., p. 43. 6 Sempre que, neste trabalho, mencionamos características modernistas na obra de Quintana, estamos nos referindo àquelas que marcaram a literatura brasileira posterior à Semana de Arte Moderna de 1922, como o verso livre, o humor, a ironia, a fragmentação, os poemas curtos, os temas cotidianos e a simplicidade de linguagem. 3 dos poemas dO Aprendiz de Feiticeiro, neste trabalho, procuramos chamar a atenção para esse diálogo com os diversos estilos. Como bem definiu Regina Zilberman 7, o que se observa na poesia de Mario Quintana é uma “diversidade sempre fiel a si mesma”, ou seja, a confluência de perspectivas diversas, que se harmonizam a partir de uma atitude criadora comum, a qual se encarrega de anular as aparentes contradições presentes na obra. Em nosso entender, essa atitude é a procura, constante em toda a trajetória do autor, pela liberdade criadora, pela autenticidade e pela individualidade. E isso está diretamente ligado ao modo com que Quintana compreende a poesia – uma atividade essencialmente recriativa. Através do exercício da arte poética, ele recria formas já consagradas, apropria-se de recursos da tradição, renovando-os e dando-lhes novo fôlego, recorre aos temas convencionais, revestindo-os de originalidade e, acima de tudo, recria o mundo cotidiano, dando origem ao universo único de sua fantasia. Sendo O Aprendiz um momento que denuncia exemplarmente a multiplicidade do estilo do autor, consideramos que o livro é de fundamental importância para qualquer estudo que espere conhecer a natureza da poesia quintaneana. Devido às características que mencionamos, representativas de toda a produção poética do autor, e considerando a ausência de estudos acadêmicos que tenham O Aprendiz como objeto central de interesse, motivamo- nos a abordá-lo de modo específico nessa dissertação. A obra tem chamado a atenção dos leitores da poesia de Quintana pelo grau de arbitrariedade de muitas de suas imagens em relação à lógica do mundo sensível. A atitude do poeta é claramente antimimética, se considerarmos o sentido de mimese a partir da idéia renascentista que a tornou equivalente à imitatio, ou seja, à imitação passiva do real. Sua poesia parece querer desligar-se completamente do universo referencial, criando um mundo imaginário com leis próprias. A imaginação, afinal, é o centro da poética quintaneana. O autor reflete sobre a relação entre a fantasia e a criação poética em muitos dos seus textos metalingüísticos, os quais são muito freqüentes em sua obra. Ele elabora uma espécie de “teoria poética” própria através desses textos que, por sua vez, também são essencialmente poesia. A eles recorremos muitas vezes ao longo deste trabalho, buscando verificar o modo como a concepção particular do poeta acerca de sua arte se concretiza em seu processo de criação. Temos consciência de que, por si, esses textos apenas revelam a opinião do escritor sobre os assuntos relacionados a sua obra. Por isso, procuramos demonstrar como essa “teoria”, cuja base é o vínculo entre 7 ZILBERMAN, Regina. Diversidade sempre fiel a si mesma. In: Literatura Comentada: Mario Quintana. São Paulo: Ed. Abril, 1982.
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